Twin Peaks no sistema financeiro brasileiro: em busca de lições da experiência internacional

Por Marcio Valadares*

O noticiário recente desafia a máxima de que a existência de reguladores e supervisores financeiros[1] apenas é notada em tempos de crise. Mesmo sem sinal de turbulências, repercutiu a informação de que o Ministério da Fazenda pretende reformar a arquitetura do sistema financeiro brasileiro[2]. A ideia cogitada é substituir a atual estrutura fragmentada, em que os mercados bancário, de capitais, de seguros e de previdência complementar estão sob cuidado de entidades distintas – Banco Central do Brasil (BCB), Comissão de Valores Mobiliários (CVM), Superintendência de Seguros Privados (Susep) e Superintendência de Previdência Complementar (Previc) –, por uma estratégia de supervisão por objetivos. Neste modelo, duas autoridades dividiriam responsabilidades sobre todo o sistema financeiro: uma focada na solvência, liquidez e viabilidade de bancos, seguradoras e demais instituições, a chamada supervisão prudencial; outra voltada à análise de como tais firmas conduzem negócios com os seus clientes, a supervisão de condutas, que pode compreender preocupações com a proteção de investidores e clientes de forma geral, a integridade do mercado e a concorrência. Por separar as funções prudencial e de condutas com o propósito de otimizá-las, a supervisão por objetivos foi apelidada de Twin Peaks[3].

A percepção de que a forma como atribuições supervisóriassão distribuídas influencia a eficiência e estabilidade do sistema financeiro levou diversos países a reorganizar suas estruturas institucionais de supervisão nas últimas décadas – entre 1998 e 2017, quase 80% dos membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) seguiram esse caminho[4]. As tendências observadas entre eles ajudam a entender as limitações da atual arquitetura financeira brasileira, avaliar a conveniência de modificá-la e identificar questões a serem enfrentadas caso tal iniciativa seja levada a cabo.

A experiência internacional compreende dois movimentos distintos. Em um primeiro momento, a formação de conglomerados e o aumento da complexidade de produtos financeiros apagaram a fronteira entre os mercados bancário, de capitais, de seguro e de previdência complementar e provocaram a migração de estratégias de supervisão fragmentada, em que cada setor (modelo de supervisão setorial) ou tipo de instituição (modelo institucional) fica sob cuidados de supervisores distintos, para a supervisão integrada, em que uma autoridade zela pelo bom funcionamento de mais de um setor (integração parcial) ou de todo o sistema financeiro (integração total ou unificação). Singapura (1984) e os países nórdicos (de 1986 a 1991) foram pioneiros no emprego desta estratégia, que ganharia tração em 1997, quando foi criada a Autoridade de Serviços Financeiros do Reino Unido (Financial Services Authority ou FSA). A FSA passou a ser a única entidade de supervisão financeira daquela jurisdição e, dada a influência britânica nesse campo, uma referência internacional. Em 2004, ao menos 50 jurisdições apresentavam algum grau de integração da função prudencial – por exemplo, um mesmo supervisor responsável pelos mercados bancário e de seguros – e no mínimo 29 países atribuíam a uma única autoridade competências prudenciais sobre todos os setores do sistema financeiro[5].

Diante de disputa teórica sobre as vantagens e desvantagens da supervisão integrada em relação aos modelos setorial e institucional, Čihák e Podpiera[6] buscaram avaliar os efeitos da integração nos 29 países que haviam instituído um único supervisor prudencial. Em seu estudo, encontraram evidências de relação entre a presença de um supervisor prudencial único e a qualidade da supervisão – medida pela adequação a padrões internacionais – e a sua maior consistência entre setores do sistema financeiro. Por outro lado, não identificaram associação entre integração e redução de gastos com pessoal envolvido na supervisão. Ou seja, a integração não necessariamente geraria economias de escala, o que infirmavaum dos argumentos defendidos por seus proponentes. No caso da integração de supervisores nos países escandinavos, porém, acredita-se ter havido tanto aumento da qualidade da supervisão quanto economias de escala[7].

A segunda tendência de restruturação de arquiteturas financeiras deu-se a partir do fim da década de 2000. A Crise Financeira Internacionalevidenciou limitações da supervisão unificada, especialmente o potencial conflito entre as funções prudencial e de condutas. No Reino Unido, o Turner Review,um dos mais difundidos relatórios sobre a Crise, identificou um viés na atuação da FSA em favor da supervisão de condutas: a solidez de instituições supervisionadas havia sido preterida por preocupações com a proteção de consumidores e a competividade dos mercados britânicos. Na supervisão do Northern Rock, o primeiro banco britânico a sofrer uma corrida bancária em cerca de 150 anos, constatou-se que a FSA frequentemente adotava iniciativas direcionadas à proteção de consumidores, enquanto considerações relativas à capitalização e liquidez eram objeto de reuniões prudenciais realizadas a cada três anos.

Esse episódio foi interpretado como a confirmação de que a combinação de funções prudenciais e de conduta na mesma entidade comprometeria uma delas. Esse era um ponto ressaltado pelos proponentes do Twin Peaks, um modelo de supervisão financeira concebido por um britânico, Michael Taylor, em meados da década de 1990, e que não havia angariado muitos seguidores até então – fora adotado na Austrália em 1998 e nos Países Baixos em 2002. A proposta de separação daquelas duas funções supervisórias baseava-se na premissa de que a preservação da estabilidade financeira e a proteção dos usuários do sistema financeiro demandariam habilidades e culturas diferentes.E, também, na observação de que, num supervisor integrado, os conflitos entre as funções prudencial e de condutas seriam resolvidos por critérios políticos.OTwin Peaks busca remediar tais problemas atribuindo as funções prudencial e de condutas a duas entidades distintas, responsáveis por supervisionar todo o sistema financeiro.Essa tornou-sea escolha preferencial de países que reformaram suas arquiteturas financeiras a partir de 2008.

É preciso ter presente que a reforma de modelo de supervisão financeira envolve custos. No Reino Unido, a criação de um novo supervisor prudencial (a Prudential Regulation Authority) e a conversão do antigo supervisor integrado (a FSA) em autoridade de condutas (a Financial Conduct Authority) foram orçadas entre 90 e 175 milhões de libras pelo Tesouro britânico[8]. Além das despesas esperadas, riscos da mudança de modelo de supervisão precisam ser considerados. Um deles é que fatores cruciais para o desempenho da supervisão do sistema financeiro, como a existência de ferramentas legais adequadase a disponibilidade de pessoal e recursos para os supervisores, podem acabar ofuscados por discussões sobre alocações de competências. Por fim, como em qualquer discussão sobre políticas públicas, o debate sobre a conveniência de se reformar a arquitetura financeira não se resume a uma questão binária sobre a adoção ou não de determinado modelo. Não existe apenas um Twin Peaks, mas variações do modelo abstrato de supervisão por objetivos.

E como esse panorama internacional se relaciona com o caso brasileiro?

Quando a atual arquitetura financeira do País foi estabelecida, nas décadas de 1960 e 70, a adoção de modelo de supervisão setorial ou institucional era natural, dada a segregação das atividades bancária, de investimento, de seguros e previdência complementar. Originalmente, a Reforma Bancária de 1964 pretendeu mesmo compartimentalizar o sistema financeiro brasileiro, por meio da criação de tipos especializados de instituições[9]. Contudo, o cenário financeiro brasileiro mudaria nas décadas seguintes. O regime militar incentivou a concentração bancária como forma de elevar a eficiência operacional e a mobilização de recursos para a economia[10]. Além da formação de conglomerados, o aumento da complexidade de produtos financeiros é outro fator a aproximar o quadro brasileiro daquele que, em outros países, motivou o abandono da supervisão setorial ou institucional. Por exemplo, com o florescimento do mercado de capitais do País, foram criadas novas alternativas não apenas para a captação de recursos por empresas, como para a realização de investimento por pessoas físicas que, anteriormente, apenas acessavam produtos mais simples, como contas de depósito. Os desafios à supervisão fragmentada verificados nesse novo cenário tornam oportuno o debate sobre a reforma da arquitetura financeira brasileira.

Considerados os seus custos e riscos potenciais, o avanço de uma proposta desse gênero requer clareza sobre as deficiências da atual estrutura institucional, a capacidade de a supervisão por objetivos remediá-las e sobre o desenho pensado para o Twin Peaks brasileiro. Menções iniciais já foram feitas a possíveis sobreposições, lacunas, obstáculos à inovação e à atuação de supervisores em relação à estabilidade sistêmica e ao monitoramento de condutas irregulares.

Um dos pontos a merecer atenção diz respeito ao potencial conflito entre as funções prudencial e de conduta em um mesmo supervisor, destacado pelos proponentes do Twin Peaks. No modelo fracionado brasileiro, ele está presente em cada um dos supervisores, como observou Marcelo Trindade[11]. Porém, ao contrário do que aconteceu no Reino Unido e em outras economias desenvolvidas nos anos que antecederam a Crise Financeira Internacional, a inclinação das autoridades brasileiras não necessariamente é em direção à supervisão de condutas. No campo de atuação do BCB, por exemplo, questões prudenciais parecem receber mais atenção do que a proteção a consumidores.

Quanto aos riscos da mudança de abordagem, é preciso cuidado para que discussões sobre o Twin Peaks não posterguem o enfrentamento de outras questões fundamentais. Duas delas são a falta de recursos à disposição da CVM[12] e a insuficiência de mecanismos de proteção de investidores, fatores que podem ser relacionados ao alto índice de extração de renda de acionistas minoritários por controladores verificado em nossa jurisdição.

Por fim, quanto ao desenho do Twin Peaks, uma questão candente é se haverá integração do mercado de previdência complementar, especialmente das entidades fechadas de previdência complementar, no modelo de supervisão por objetivos, em razão da tensão existente entre a solidez financeira de fundos de pensão e o seu envolvimento no financiamento de políticas públicas.

* Marcio Valadares é mestre em Direito e Finanças pela Universidade de Oxford, mestre em Direito pela UnB. Foi procurador do Banco Central do Brasil.


[1]Os termos regulador e supervisor são frequentemente usados de forma indistinta, já que as tarefas de definir regras a serem observadas por agentes econômicos e de zelar pelo seu cumprimentomuitas vezes são atribuídas às mesmas entidades. No Brasil, BCB, CVM, Susep e Previc têm poder normativo e supervisório. Por isso, apesar de peculiaridades de nossa arquitetura financeira, no restante do texto, optei por usar apenas as expressões supervisor e supervisão.

[2] Ver, por exemplo, a entrevista do Secretário de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda, Marcos Barbosa Pinto, aos jornalistas Lu Aiko Otta e Guilherme Pimenta: “É importante discutir que modelo de regulação queremos para o País, diz Marcos Pinto”, publicada no jornal Valor Econômico em 5 de agosto de 2024,https://shorturl.at/PydNW, e as matérias de Guilherme Pimenta e outros, “Fazenda Planeja transformar BC e CVM em super-reguladores do mercado”, https://shorturl.at/eYJ0E, e Liane Thedim e Guilherme Pimenta, “Proposta de super-regulador no mercado de capitais é ‘padrão ouro’, diz Fraga”, publicadas no mesmo jornal, respectivamente, em 17 e 18 de julho de 2024, https://shorturl.at/KXds8.

[3]Sobre as diferenças e potenciais conflitos entre as funções prudencial e de condutas, ver TAYLOR, Michael W. Regulatory Reform After the Financial Crisis: Twin Peaks Revisited. Institutional Structure of Financial Regulation: Theories and International Experience. Edited by Robin Hui Huang and Dirk Schoenmaker. London: Routhledge, 2015, pp. 9-28, e TAYLOR, Michael W. The Three Episodes of Twin Peaks. The Cambridge Handbook of Twin Peaks Financial Regulation. Edited by Andrew Godwin and Andrew Schmulow. Cambridge University Press, 2021.

[4]Ver GODWIN, Andrew; HOWSE, Timothy; RAMSAY, Ian (2017). A Jurisdictional Comparison of the Twin Peaks Model of Financial Regulation. Journal of Banking Regulation, Vol. 18, No. 2, pp. 103-131, 2017.

[5] ČIHÁK, Martin; PODPIERA, Richard. Is One Watchdog Better Than Three? International Experience With Integrated Financial Sector Supervision. IMF Working Paper. 2006. Outro levantamento, realizado poucos anos mais tarde, identificou 25 países com um supervisor totalmente integrado: James Barth, Gerard Caprio Jr. e Ross Levine. Bank Regulation and Supervision in 180 Countries from 1999 to 2011. NBER Working Paper Series, 2013.

[6]Ver o artigo de Čihák e Podpiera citado na nota anterior.

[7]TAYLOR, Michael; FLEMMING, Alex (1999). Integrated Financial Supervision: Lessons of Scandinavian Experience. Financial & Development. December 1999, Volume 36, Number 4.

[8]HM TREASURY. A New Approach to Financial Regulation: Building a stronger system. February 2011.

[9]YAZBEK, Otavio. Regulação do mercado financeiro e de capitais. São Paulo: Elsevier, 2009. SALAMA, Bruno M.; PRADO, Viviane M. Operações de crédito dentro de grupos financeiros: governança corporativa como complemento à regulação bancária. Os grupos de sociedades: organização e exercício da empresa. Danilo Borges dos Santos Gomes de Araújo e Walfrido Jorge Warde Jr. (organizadores). São Paulo: Saraiva, 2012.

[10]Com atos normativos que limitavam a abertura de agências, a concessão de benefícios tributários para fusões e aquisições, e o fim da emissão de cartas patentes para novos bancos. Após as crises do petróleo, novos estímulos à aquisição de bancos em crise por instituições saudáveis foram concedidos, com uso de recursos públicos – da Reserva Monetária, formada com a receita do Imposto sobre Operações Financeiras – para o saneamento de instituições financeiras ou o pagamento total do passivo daquelas submetidas a intervenção ou liquidação extrajudicial. Ver Gustavo Mathias Alves PINTO. Regulação sistêmica e prudencial no setor bancário brasileiro. São Paulo: Almedina, 2015.

[11]TRINDADE, Marcelo. Ainda o Twin Peaks. Valor Econômico, 6 de agosto de 2024. Ver também, do mesmo autor, Twin Peaks. Valor Econômico, 23 de julho de 2024.

[12]Segundo a Avaliação da estabilidade do sistema financeiro brasileiro realizada em 2018 pelo FMI: “os recursos da CVM não refletem apropriadamente o número de agentes no setor de fundos de investimento que lhe compete monitorar, o crescimento do setor e o papel importante desempenhado pelos fundos de investimento no sistema financeiro. O último concurso público para recrutamento de servidores ocorreu em 2010, tornando desafiador para a CVM a simples substituição de servidores aposentados.” https://www.imf.org/en/Publications/CR/Issues/2018/11/30/Brazil-Financial-System-Stability-Assessment-46411