Por Roberto Padovani*
O Brasil mostrou avanços institucionais importantes desde 2016.
Foram aprovados o teto de gastos, o fim dos subsídios do BNDES, o cadastro positivo, a revisão da Lei de Falências, a reforma do ensino médio, as reformas trabalhista, tributária e da Previdência, a Lei de Licitações, a autonomia do Banco Central, os novos marcos regulatórios do gás e do saneamento, além da volta da agenda de privatização e concessões.
Não foi pouca coisa. A escolha por uma agenda de estabilização e de reformas, no entanto, não foi gratuita. Foi resultado de um ambiente de recessão e escândalos de corrupção, incentivando eleitores e investidores a pressionar o Estado por respostas.
Com maior penalização de erros, o populismo econômico foi abandonado e as escolhas de gestão passaram a ter maior disciplina e reponsabilidade. Em grande medida, as reformas feitas trouxeram maior estabilidade econômica. É o caso da autonomia do Banco Central (BC).
Ao evitar o aparelhamento da administração pública em suas áreas centrais, a autonomia contribui para trazer maior racionalidade na gestão econômica, limitando estratégias que estimulem a economia no curto prazo sem considerar restrições fiscais, monetárias e de oferta.
Justamente por isso, é possível que este conjunto de mudanças tenha reduzido as incertezas e elevado a resistência da economia a choques. Mesmo diante destes supostos benefícios, porém, o incômodo político é grande e, por isso, a independência formal da autoridade monetária vem sendo submetida a diferentes testes.
Desde o final de 2022 foram, pelo menos, três desafios importantes. O primeiro ocorreu durante as eleições de 2022. Tão logo o período eleitoral foi superado, um novo teste foi enfrentado com os duros ataques à instituição. Neste momento, a transição no comando do BC é mais um desafio a ser superado.
O saldo, no entanto, parece positivo. Aos poucos, a importância da agenda de um BC independente vai se consolidando como um importante avanço institucional do País.
Na experiência eleitoral de 2022, pela primeira vez a política monetária não fez parte dos discursos de campanha. O período foi acompanhado por relativa tranquilidade financeira e econômica, mesmo diante das incertezas naturais associadas à transição de governo.
Da mesma forma, as respostas aos ataques em 2023 podem ser bem avaliadas. As críticas do Executivo acabaram funcionando como um coordenadorda agenda de parte da mídia, do sistema político e de setores empresariais contra o nível da taxa de juros e das metas de inflação.
Como estes temas não estavam presentes durante o aperto monetário em 2021 e 2022, o episódio revelou o desconforto político gerado pelas novas restrições institucionais.
As respostas, no entanto, foram firmes. O Congresso fez uma defesa enfática da autonomia, não houve mudanças de equipe e as estratégias do BC foram pouco afetadas. Se houve alguma influência sobre as decisões de política monetária, ela ocorreu no sentido oposto ao desejado pelos críticos, uma vez que a necessidade de preservar a credibilidade na gestão acabou por atrasar o início do processo de corte de juros.
Por último, a transição no comando tem gerado surpresas positivas. Depois de forte pressão política, seria natural esperar que a próxima gestão adotasse outras estratégias, mais alinhadas às escolhas econômicas do governo.
A visão majoritária dos analistas, explicitada diante do dissenso da reunião do Copom de maio de 2024, era a de que o BC iria ser mais tolerante com a inflação. Isso porque a opção política por mais gasto público implica também a escolha da forma de financiamento, que inclui aumentos em impostos, dívida e inflação.
Ao contrário do esperado, no entanto, a condução atual da política monetária não parece compartilhar da opção política por mais gasto e inflação. A necessidade de construir reputação tem feito com que a troca de equipe seja acompanhada por uma postura cautelosa na gestão monetária por todo o colegiado do Copom, os mais antigos e os mais novos. Uma estratégia compatível com a experiência internacional.
Além do problema da credibilidade da nova diretoria, há motivos sólidos para uma postura mais conservadora. Os dados indicam que o atual nível da taxa básica de juros é insuficiente para desacelerar a economia, permitir a convergência da inflação e ancorar as expectativas.
Estas leituras técnicas estão sendo protegidas pelo desenho institucional. Um BC formalmente independente, com decisões colegiadas, burocracia estabelecida e uma diretoria qualificada que precisa zelar por sua reputação profissional, tende a proteger suas decisões das naturais pressões e ansiedades políticas associadas ao ciclo eleitoral de curto prazo.
As novas regras impõem também alguma disciplina política. Será estranho que a taxa de juros seja alvo de novos ataques, uma vez que foi o próprio governo que indicou os membros do BC. No curto prazo, a política monetária pode contribuir com o esforço do governo em reduzir as incertezas de mercado e ganhar credibilidade na gestão econômica como um todo.
O governo vem se esforçando em indicar que adotará estratégias populistas do passado, indicando compromisso com uma inflação baixa, realismo tarifário e corte de gastos. Uma postura técnica, protegida institucionalmente, reduz a assimetria de informações sobre as reais intenções do governo.
Os ganhos de se proteger parte da gestão econômica dos ciclos eleitorais de curto prazo são vários. A independência do BC não deixa de ser um constrangimento a uma estratégia de expansão fiscal financiada por meio da inflação. Constitui um compromisso crível de que não irá acomodar irresponsabilidades do governo de plantão.
Como há limites para aumento de impostos e endividamento, a postura é um incentivo à disciplina fiscal no médio prazo. Ou, de outro modo, a independência incentiva a racionalidade na gestão e permite um debate público transparente e de melhor qualidade.
O discurso da harmonização entre política fiscal e monetária poderá, finalmente, mostrar a causalidade correta, com os gastos públicos explicando o nível de juros, e não o inverso.
A esperança é que o processo ajude também a popularizar a ideia de que a função do BC não é a de gerar crescimento, mas sim controlar a inflação e suavizar os ciclos econômicos. Ao fazer com que a demanda seja compatível com as condições de oferta, é possível controlar a variação de preços e reforçar a estabilidade.
Ao se comprar a tese de um BC não politizado, a credibilidade se torna um instrumento de gestão, ajudando a ancorar as expectativas e a controlar formação de preços na economia. Este é um tema importante. O histórico de inflação no Brasil faz com que seja difícil convencer os agentes de que uma estratégia de lenta convergência é diferente da simples opção de não convergência, como observado, por exemplo, entre 2007 e 2016.
Neste momento, em particular, a convergência da inflação pode ser um marco importante. Apesar de o Plano Real ter rompido uma tendência histórica de alta da inflação, os últimos 25 anos mostraram um IPCA oscilando mais próximo a 6,5%. Por muito tempo, a meta de inflação foi de 4,5%. Alcançar a meta contínua de 3,0% não deixa de ser um salto de qualidade do debate público.
Com inflação ancorada, a renda e as condições de consumo podem ser preservadas. Caso o BC tenha sucesso nesta tarefa, o resultado irá comprovar a tese de que a independência, efetivamente, limita o governo e traz estabilidade econômica.
Por último, fica também uma lição para o BC. Com a autonomia, as nomeações para a diretoria passaram a ter mais visibilidade, gerando, deste modo, maior interesse e peso político. Justamente por isso, a diretoria precisa cuidar de sua exposição política e evitar que suas preferências ideológicas sejam motivos de ataques à instituição.
Ao final, o aprendizado é que a autonomia formal do BC é um avanço que reduz as chances de recaídas populistas e traz maior racionalidade e qualidade ao debate público.
Com maior estabilidade, as vantagens de um BC independente vão ficando mais claras e ajudam a consolidar a agenda na sociedade e no meio político. Foi o caso do regime econômico dos últimos 25 anos, o chamado tripé macroeconômico. Pode ser a vez do BC neste momento.
* Roberto Padovani é economista formado pela FEA-USP, administrador pela Fundação Getulio Vargas e mestre em economia também pela FGV. Economista-chefe do Banco Votorantin, atual BV, fez parte do time global do Banco WestLB, foi sócio por 10 anos da Tendência Consultoria e assessor do Ministério da Fazenda durante o Plano Real.