No Brasil existem dois regimes de previdência pública: o dos servidores públicos e o do INSS. Além disso, há a previdência privada. Já empreendemos duas reformas da previdência social, uma no Governo FHC, outra no Governo Lula. No entanto, ambas repercutiram basicamente no regime próprio de previdência dos servidores e, em menor proporção, no regime privado de previdência complementar, deixando as condições que regem o regime geral de previdência social praticamente inalteradas.
Enquanto isso, a restrição fiscal que motivou o encaminhamento ao Congresso Nacional da primeira proposta de reforma previdenciária, em 1995, continua. Agora potencializada pelo aumento dos gastos do INSS.
Entre 1988 e 2009, a despesa do INSS triplicou seu peso relativo na economia, passando a comprometer 7,2% do PIB e perto de um terço da despesa não financeira da União (despesa total menos juros). É o maior item de despesa da União, superando os gastos com o pagamento de pessoal (4,8% do PIB) e com juros (4% do PIB).
Quase metade da receita líquida federal é hoje destinada à previdência (36,8% para o INSS e 10,2% para inativos e pensionistas). A metade que sobra tem, assim, que custear todos os outros gastos da máquina pública, cuja maioria não pode ser descontinuada. Resultado: nosso ajuste fiscal acaba sendo feito pela compressão do investimento público, que representa apenas 1% do PIB e menos de 7% da despesa primária.
Estudos mostram que, embora ainda sejamos um país jovem, gastamos com previdência o mesmo que gastam países desenvolvidos e com estrutura etária já envelhecida, como o Reino Unido, e que, para custear tal nível de despesas, também aplicamos elevadíssimas alíquotas de contribuição previdenciária.
Essa asfixia fiscal, ao comprometer a necessária expansão dos investimentos em infraestrutura, educação e capacitação da mão-de-obra (afora outras áreas fundamentais, como saúde e segurança pública), compromete nosso potencial de crescimento e de melhoria da qualidade de vida da população mais pobre.
A situação é ainda mais grave quando confrontada com os prognósticos demográficos. A população brasileira está envelhecendo, e a uma velocidade mais rápida do que a verificada nos países do Velho Mundo, que, ao contrário de nós, enriqueceram antes de envelhecer. A proporção de idosos (indivíduos com mais de 60 anos) na população total do Brasil triplicará nos próximos quarenta anos, passando de 6,8% para 22,7%. O impacto desse envelhecimento na previdência social é grande.
Sendo nossa previdência pautada pelo “regime de repartição”[1],
é a população em idade ativa que sustenta a inativa. Isso significa que, enquanto hoje 6,45 indivíduos em atividade potencialmente podem gerar recursos para cada beneficiário, em 2050 deverão ser apenas 1,9. Em outras palavras, haverá cada vez menos pessoas trabalhando e, assim, sustentando o crescente número de idosos no Brasil.
Nesse contexto, fica evidente que, se nada fizermos agora, nossas despesas previdenciárias simplesmente explodirão, comprometendo o futuro das próximas gerações de brasileiros.
O irreversível envelhecimento da população no mundo representa uma questão tão grave, que pode hoje ser considerada como uma das principais variáveis a definir o futuro econômico e social das nações. Diante disso, muitos países se encontram engajados na reformulação dos seus sistemas de previdência, movidos pela assunção de que é melhor aumentar agora os anos de contribuição em relação aos de aposentadoria, bem como reduzir um pouco o benefício em relação ao salário, do que, daqui a alguns anos, ser forçado a elevar sobremaneira as contribuições sociais e/ou diminuir o valor dos benefícios previdenciários em manutenção.
Suas experiências constituem importantes ensinamentos. Em primeiro lugar, mostram que as idades de aposentadoria nos países avançados são bem maiores do que as relativas à aposentadoria por tempo de contribuição dos trabalhadores brasileiros da iniciativa privada (54 anos para homem e 52 para mulher). Isso ocorre porque continuamos a ser um dos únicos países do mundo que concede aposentadoria sem impor limite mínimo de idade (os outros são Nigéria, Argélia, Turquia, Eslováquia e Egito). Ademais, ao contrário do que aqui ocorre, muitos países aplicam a mesma idade mínima para homens e mulheres.
A experiência internacional também mostra que o valor dos nossos benefícios previdenciários como proporção dos salários é muito elevado. No caso da aposentadoria, embora muitos países permitam aposentadoria antecipada aos 60 anos de idade (vejam bem: antecipada), depois de 40 anos de contribuição (enquanto aqui o máximo exigido são 35 anos), isso implica redução de 40% no valor de benefício. No Brasil, um homem na mesma situação não terá qualquer perda monetária. Ou seja, sua aposentadoria equivalerá a 100% do salário.
Além disso, em relação à aposentadoria por idade, embora haja limite etário para a concessão do benefício, exige-se apenas quinze anos de contribuição, o que é muito pouco, especialmente quando se compara ao que ocorre no mundo. Afinal, um homem que espere 50 anos para começar a contribuir para a previdência poderá se aposentar aos 65 anos e receber o benefício por mais 16,3 anos, de acordo com sua expectativa de sobrevida. No caso da mulher, serão 15 anos de contribuição versus 19,1 de recebimento do benefício. Ademais, esses segurados receberão aposentadorias equivalentes a 100% de seus salários, enquanto que, se forem empregados, terão recolhido 8%, 9% ou 11% dos salários, de acordo com o rendimento que tinham, que, somados aos 20% do empregador, corresponderão à contribuição mensal de apenas 28%, 29% ou 31% do salário. É fácil perceber que a conta não fecha e será cada vez mais inconsistente, em vista dos prognósticos populacionais.
No caso das pensões, a situação é ainda mais discrepante. Representamos um dos poucos países que não exige qualquer condição de qualificação para a concessão do benefício. Não há, por exemplo, qualquer limitação relacionada à carência contributiva, ao tempo de casamento ou união, à idade do cônjuge sobrevivente e dos filhos, ao número de filhos, à renda do cônjuge sobrevivente, ao período de recebimento do benefício ou ao seu acúmulo com outros benefícios. Como resultado, nosso gasto com pensões é tão significativo que representa o segundo maior na estrutura de despesas do INSS, e, em termos de participação no PIB, representa o triplo da média internacional.
Mas é na indexação do piso previdenciário ao salário mínimo onde reside o maior propulsor da elevação das despesas com benefícios. Entre 1995 e 2010, o salário mínimo teve um aumento real de 122% (44% no Governo FHC e 54% no Governo Lula). Como o piso da previdência social é vinculado a esse salário, isso significa que o valor do piso foi elevado na mesma proporção; o que também é verdade para o benefício de prestação continuada da assistência social (que favorece idosos e deficientes físicos de baixa renda), igualmente atrelado ao mínimo.
A despesa da previdência social é fortemente influenciada pelo piso dos benefícios, já que dois em cada três segurados o recebem. A receita, por outro lado, depende principalmente dos benefícios superiores. Por isso, a elevação do salário mínimo impacta mais a despesa que a receita: a cada R$ 1 real de aumento do salário mínimo, os gastos com benefícios previdenciários sobem R$ 198 milhões e as receitas, apenas R$ 14 milhões, fazendo com que o déficit cresça em R$ 184 milhões. Agregando as despesas da previdência e da assistência social, observa-se que o déficit do INSS cresce R$ 230 milhões a cada R$ 1,00 de elevação no valor do mínimo.
É importante sublinhar que, no âmbito da assistência social, a vinculação do benefício de prestação continuada ao salário mínimo, além das implicações fiscais diretas, carrega consigo outro importante condicionante: desestimula a inclusão previdenciária, limitando, assim, o universo de contribuintes e, consequentemente, a elevação das receitas do sistema.
Isso ocorre porque a maior parte dos trabalhadores informais, mesmo sem qualquer contribuição prévia, quando atingirem 65 anos (mesma idade exigida dos homens para efeito de concessão da aposentadoria previdenciária por idade), poderão pleitear um benefício assistencial de valor idêntico ao piso da previdência social, desde que comprovem possuir renda familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo.
Daí cabe perguntar: qual o incentivo que esses trabalhadores têm para contribuir para a previdência social quando sabem que poderão usufruir, a partir da mesma idade (no caso dos homens), da mesma aposentadoria que será concedida à maioria dos trabalhadores do mercado formal de trabalho, que, com muito esforço, contribuem sistematicamente sobre seus rendimentos mensais de um salário mínimo?
Outro importante ponto a destacar é que o efeito do salário mínimo sobre a pobreza é quase residual atualmente e, no que diz respeito à pobreza extrema, é nulo. Resultado da expressiva escalada de aumentos reais verificada nos últimos anos, quem hoje recebe aposentadoria não mais pode ser considerado pobre.
Assim, defender os elevados gastos com a previdência social sob o argumento de que constituem importante instrumento de redução da pobreza esconde uma grande verdade: se parcela dos gastos redundantes do sistemático aumento do piso previdenciário for alocada na expansão de programas sociais focalizados nos estratos inferiores de renda, como por exemplo, o Programa Bolsa Família, que representa menos de 2% da despesa primária da União, a pobreza e a miséria diminuirão muito mais
As constatações apresentadas reclamam a urgente modificação de parâmetros básicos no âmbito da previdência dos trabalhadores da iniciativa privada, a maior parte de cunho constitucional, com destaque para as seguintes alterações:
a) aposentadoria por tempo de contribuição: imposição de idade mínima;
b) aposentadoria por idade: aumento da carência para concessão do benefício;
c) pensão por morte: imposição de condicionalidades que reflitam o grau de dependência do cônjuge ou parceiro sobrevivente e filhos;
d) piso da previdência social: fim da vinculação ao salário mínimo (atualização pela inflação passada);
e) diferenças por sexo, setor (rural versus urbano) e categoria profissional (professor em sala de aula versus demais trabalhadores): extinção;
f) benefício de prestação continuada da assistência social: fim da vinculação ao mínimo (atualização pela inflação passada), valor inferior ao do piso previdenciário e elevação da idade de 65 para 70 anos.
Ressalte-se, por fim, que as mudanças propostas não devem afetar os aposentados e pensionistas, devendo ser, em contraposição, integralmente aplicadas aos novos trabalhadores. Com relação aos trabalhadores em atividade, sugere-se o estabelecimento de regras de transição com extensa carência e lenta progressividade. A carência para início da aplicação das regras de transição poderia ser de quatro, cinco ou mais anos e a implantação progressiva dos novos parâmetros poderia ocorrer durante uma ou mais décadas. As únicas alterações que deveriam ter aplicação imediata para todos são as relativas à vinculação dos benefícios ao salário mínimo e às novas regras para concessão de pensão.
A extensa carência e lenta progressividade na aplicação das regras de transição aos trabalhadores já inseridos no mercado de trabalho é fator fundamental para que se consiga apoio político às mudanças. Outra opção, talvez mais pragmática, do ponto de vista político, seja executar imediatamente as mudanças relativas ao mínimo e às pensões e aplicar as demais alterações apenas aos novos trabalhadores.
Se houvéssemos considerado isso em 1995, quando começaram os debates em torno da necessária reformulação da nossa previdência social e o Poder Executivo apresentou sua primeira proposta sobre a matéria, e tivéssemos efetuado uma reforma mais profunda que se aplicasse apenas aos novos trabalhadores, por exemplo, todos aqueles que entraram no mercado de trabalho nos últimos quinze anos já seriam regidos pelo novo sistema. Assim, já teríamos passado pela fase mais dura do período de transição e, certamente, as contas públicas estariam em condições muito melhores, permitindo ao governo investir em infraestrutura e educação, dois itens fundamentais para o sucesso das futuras gerações de brasileiros.
Para ler mais sobre o tema:
AMARO, Meiriane N. Terceira Reforma da Previdência: até quando esperar? Brasília: Centro de Estudos da Consultoria do Senado, fev/2010 (Texto para Discussão nº 84). Disponível no site: http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao.htm