Desencarceramento não é a chave, mas sim um cavalo de troia de impunidade e seletividade penal
Por Fillipe Azevedo Rodrigues*
Na edição de 26 de outubro deste ano, a revista The Economist publicou um artigo intitulado Decarceration is the key to better prisons, cujas conclusões do autor já são adiantadas, como se vê, no próprio título.[1]
O caso principal abordado está anunciado no subtítulo, Britain is not the only rich country that needs a radical change in approach, referindo-se à crise de superlotação prisional na Inglaterra (ocupação de 110% da capacidade existente de vagas), que recentemente ganhou maior notoriedade com o anúncio de soltura em massa de apenados para custodiar manifestantes presos em várias cidades britânicas.[2]
Alguns argumentos no artigo de The Economist são igualmente corriqueiros entre autoridades brasileiras sobre a realidade do sistema penitenciário brasileiro e as regras de progressão entre os regimes de execução penal no País.[3]
A premissa que orienta políticas de desencarceramento no Brasil e em outros países ocidentais consiste em um discurso ideológico contra a pena de prisão, dividido em correntes denominadas de abolicionismo penal e teoria agnóstica da pena (de prisão). Para os adeptos dessas correntes teórico-ideológicas a pena de prisão deve ser extinta e, para os mais radicais, todo o Direito Penal.
O cariz ideológico dessas teorias decorre da total ausência de empiria que sustente seus fundamentos e iluminem a plausibilidade de suas alternativas ao modelo de crimes e penas que predomina na legislação ocidental.
Não raro, surgem defesas de medidas de desencarceramento baseadas em dados estatísticos manipulados ou não contextualizados, a exemplo dos números de população carcerária brasileira, frequentemente divulgados como a terceira maior do mundo, sem maiores detalhamentos sobre o quanto isso é representativo da realidade prisional dos países comparados e de como isso se contrasta com a própria dimensão de cada país.[4]
Nesse contexto, tornou-se comum autores de crimes mais variados não serem recolhidos a prisão, mesmo após a condenação por sentença irrecorrível, o que corresponde a uma nova dinâmica de cumprimento da pena de prisão fora dela, chamada regime semiaberto harmonizado, conforme normativas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e decisões tanto do Supremo Tribunal Federal (STF) quanto do Superior Tribunal de Justiça (STJ).[5]
O novo regime semiaberto harmonizado no sistema punitivo brasileiro levanta uma série de questões que desafiam os limites entre justiça, segurança e impunidade. Em estudo recente de mestrado, um magistrado estadual reveloudados que descrevemcomo essa forma de liberdade precária vem se consolidando no aís. Embora o autor conclua favoravelmente ao instituto, não se pode ignorar os aspectos surpreendentes dos dados apresentados.[6]
Por exemplo, em muitos estados brasileiros, presos que progridem do regime fechado para o semiaberto são automaticamente colocados em liberdade, com ou sem tornozeleira eletrônica. Isso contradiz o próprio fundamento da privação de liberdade, que deveria assegurar uma transição controlada entre o cumprimento da pena em diferentes regimes e a reintegração social, realizada, no semiaberto, com a custódia diuturna do apenado em colônias agrícolas ou industriais voltadas para o trabalho do preso (art. 33, § 1º, “b”, do Código Penal – CP).
A origem dessa situação pode ser rastreada até o julgamento do RE 641320 pelo STF em 2016. Naquela ocasião, decidiu-se que a falta de vagas no sistema prisional justificaria a colocação de presos em liberdade. Tal decisão, posteriormente consolidada pela Súmula Vinculante nº 56, criou um precedente para o que se tornou uma prática generalizada de desencarceramento, mesmo para crimes graves.
A situação foi agravada com a reforma na Lei de Execução Penal, promovida pela Lei 14.843/2024. Apesar de extinguir as “saidinhas” – permissões temporárias concedidas a presos do regime semiaberto –, a nova legislação acabou por legalizar o chamado “saidão”, ou seja, a mesma medida criada pelo STF como alternativa à falta de vagas, consolidou-se como regra na execução penal brasileira.
Os efeitos dessa política são claros: dos 849 mil apenados reportados oficialmente, 201 mil estão em liberdade, sendo que metade deles não utiliza tornozeleira eletrônica para monitoramento. Isso significa que regimes como o semiaberto e o aberto harmonizado têm sido aplicados de forma a permitir que apenados permaneçam completamente soltos, contradizendo a própria essência desses regimes.
Um exemplo ilustrativo é o caso de um condenado pelo crime hediondo de estupro, cuja pena não é incomum transitar entre 6 e 8 anos de reclusão (art. 213 do CP). Nessa situação, o condenado cumprirá sua “pena” do primeiro ao último dia solto, considerando que o regime inicial para sanções de até 8 anos é o semiaberto (agora “harmonizado”). Se o estuprador ainda levar à vítima da violência sexual à morte, poderá cumprir apenas 6 anos em regime fechado, passando os outros 6 anos solto, conforme a nova hipótese do art. 112, VI, “a”, da Lei de Execução Penal.
Essa realidade também afeta as estatísticas de encarceramento. Dados do Relatório de Informações Penais de 2024 indicam que o Brasil possui oficialmente 663.387 presos de fato,[7] uma população carcerária que nos coloca na 31ª posição global se considerado o número de presos para cada 100 mil habitantes. Um verdadeiro contraste com os números frequentemente citados na mídia e por autoridades, que consideram mais de 200 mil indivíduos soltos como se encarcerados estivessem.
Diante desse cenário, é urgente repensar as diretrizes que regem o sistema prisional brasileiro. O regime semiaberto, em sua concepção original, deveria proporcionar uma transição segura e gradual, garantindo que apenados trabalhem e contribuam para a sociedade. Em vez disso, tem sidotransformado em um instrumento de desencarceramento e renúncia estatal da execução da pena de prisão, promovendo uma liberdade precariamente monitorada que alimenta a sensação de impunidade.
A maior falácia está em insistir que o problema reside no aumento do número de presos em vez de reconhecer que esse número cresce em proporção inferior ao aumento do número de delitos. Ao contrário do que foi defendido no 3º Fórum Nacional de Alternativas Penais (3º Fonape), evento realizado pelo CNJ, o problema real é o crime e a violência e não a pena privativa de liberdade em si mesma.
A lógica mais elementar afirma que as prisões são a consequência do crime e não sua causa. Mesmo que se considere a possibilidade de ineficiência da prisão como forma de ressocialização, as alternativas de desencarceramento, no Brasil, expandem-se desde 1984 – penas restritivas de direitos, multa, transação penal, sursis penal e processual penal, acordo de não persecução penal eo novo regime semiaberto harmonizado (soltura em massa de presos com somente algo entre 1/3 e metade da pena cumprida) – sem que, nesses quarenta anos de hegemonia de ideias anti-prisão, tenha havido um recrudescimento do crime – ocorreu o oposto, número recorde de homicídios (e.g.) em 2017.
Prender mais não é necessariamente a solução. Mas é certo que prender menos tampouco o é – incentivos e desincentivos ainda importam, tal como teorizou Gary Becker.
Essa conclusão é obtida das próprias idiossincrasias do Relatório do 3º Fonape,[8] que se contradiz ao defender mais rigor punitivo no combate à violência contra a mulher para depois alarmar-se com o aumento do número de mulheres presas e envolvidas com o crime. Para tais eruditos, a pena de prisão é indispensável desde que o(a) criminoso(a) tenha praticado delito contra mulher ou outros tipos de infrações que pertençam a certa agenda de justiçamento social. Afora isso e todo o resto de intermináveis pautas prioritárias, volta-se a defender o fim das prisões, isto é, uma espécie daquilo que os próprios abolicionistas chamam de seletividade penal.
No livro Análise Econômica da Expansão do Direito Penal (Del Rey, 2021), defendo que não se pode continuar ignorando o impacto dessas políticas na segurança pública e na confiança da população no sistema de justiça. A solução não está em desencarcerar a qualquer custo, mas em garantir que a transição do cárcere para a liberdade seja aplicada de maneira responsável e alinhada aos princípios da execução penal.
O País precisa reavaliar suas escolhas e buscar um equilíbrio entre o respeito aos direitos fundamentais e a proteção da sociedade.
* Fillipe Azevedo Rodrigues é professor de Direito Penal da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Campus Caicó. Líder do Grupo de Pesquisa em Direito e Economia do Crime (DECrim). Doutor e mestre pela UFRN. Contatos: rodrigues.cgern@gmail.com; @fillipeazevedorodrigues (instagram).
[1] Disponível em: https://www.economist.com/leaders/2024/10/24/decarceration-is-the-key-to-better-prisons. Acesso em 9 dez. 2024.
[2] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=m6oy4Oo-vjc. Acesso em 9 dez. 2024.
[3] Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/republica/cnj-soltou-21-mil-presos-em-2023-e-decisao-do-stf-pode-ampliar-mutirao-de-desencarceramento/. Acesso em 9 dez. 2024.
[4] Disponível em: https://www.cnj.jus.br/superlotacao-prisional-judiciario-brasileiro-apresenta-iniciativas-em-evento-nas-filipinas/#:~:text=De%20acordo%20com%20os%20dados,total%20est%C3%A3o%20em%20pris%C3%A3o%20preventiva. Acesso em 9 dez. 2024
[5] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-mar-23/pena-no-semiaberto-pode-comecar-a-ser-cumprida-sem-recolhimento-previo/ . Acesso em 9 dez. 2024.
[6] Disponível em: https://bdjur.stj.jus.br/jspui/handle/2011/194968 . Acesso em 9 dez. 2024.
[7] Disponível em: https://www.gov.br/senappen/pt-br/servicos/sisdepen/relatorios/relipen/relipen-1-semestre-de-2024.pdf . Acesso em 9 dez. 2024.
[8] Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/05/3-forum-nacional-de-alternativas-penais.pdf . Acesso em 9 dez. 2024.