Por Natasha Lage de Oliveira França*
O Projeto de Lei nº 2.316, de 19 de agosto de 2022, tem como escopo a instituição de medidas de promoção do acesso de terceiros à infraestrutura de transporte no mercado de combustíveis, com a promoção de significativas alterações na Lei nº 9.478, de 6 de agosto de 1997 (Lei do Petróleo) e na Lei nº 9.847, de 26 de outubro de 1999, para dispor sobre o acesso de terceiro interessado a dutos de transporte e terminais aquaviários.
As alterações se prestam a adequar a referida norma às diretrizes previstas na Lei nº 12.815/2013 (Lei dos Portos) e na própria Lei do Petróleo, para estimular a concorrência por meio de incentivo à participação do setor privado mediante amplo acesso aos portos, instalações e atividades portuárias.
Ainda, o projeto de lei complementa e dá efetividade a vários dispositivos da Resolução nº 881/2022 da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (RANP nº 881/2022), a qual estabelece critérios para o uso dos terminais aquaviários existentes ou a serem construídos, para movimentação de petróleo, seus derivados, e também de gás natural, biocombustíveis e seus derivados.
Em verdade, as entidades que regulam o mercado do petróleo fizeram o caminho inverso ao editarem, em um primeiro momento, a RANP nº 881/2022 – que tratou de assuntos como a preferência do carregador proprietário, a desverticalização legal e o acesso de terceiros –, para somente depois proporem o PL nº 2.316/2022.
Quanto à interação do PL com a RANP nº 881/2022, temas como o livre acesso de terceiros a dutos e instalações portuárias dedicadas a combustíveis, o tratamento a ser dispensado em situações de negativa de acesso e congestionamento contratual, além da limitação ao direito de preferência do
carregador proprietário, têm sua regulamentação no indigitado normativo.
A análise conjunta do PL nº 2.316/2022 e da RANP nº 881/2022 revela o forte impacto das alterações regulatórias no setor de transportes aquaviários, seja no âmbito das competências de regulação e de fiscalização da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ), seja nas licitações e contratações empreendidas pelo Poder Concedente, via Secretaria Nacional de Portos (SNP/MPOR), seja nas atividades desenvolvidas pelos arrendatários e autorizatários de instalações portuárias.
Do ponto de vista da análise econômica da regulação, as inovações pretendidas pelo PL nº 2.316/2022 endereçam importante falha de mercado no setor de óleo & gás, que é o abuso do poder de mercado por agentes econômicos verticalmente integrados que atuam no refino e na distribuição de combustíveis. Isso porque o projeto de lei vai além da desverticalização legal ou empresarial da Petrobras e Transpetro ocorrida no final dos anos 1990, que permitiu o livre acesso de terceiros às infraestruturas e instalações portuárias e a dutos de transporte, adotando a desverticalização como uma política pública setorial.
À míngua de denúncias ou procedimentos administrativos sancionadores que demonstrem a existência de casos concretos nos quais agentes de mercado não verticalizados estiveram impedidos de utilizar a infraestrutura logística em questão, as autoridades públicas pretendem tratar problemas regulatórios como o “fechamento vertical”, definido como uma prática de abuso de poder de mercado na qual uma empresa nega acesso a um insumo ou facilidade essencial como forma de estender o seu monopólio de um segmento do mercado a outro.
Logo após a desverticalização legal da Petrobras, o livre acesso de terceiros às infraestruturas e dutos de transporte de petróleo e seus derivados se deu por meio da Portaria ANP nº 251/2000 (PANP nº 251/2000). Contudo, a regulação mostrou-se pouco efetiva, pois as distribuidoras não demonstraram interesse na realização das operações de midstream, que envolvem a importação, o transporte por navios e a operação de dutos.
Isso porque, historicamente, o mercado regulado se concentra nas operações de downstream – recebimento de produtos em tanques e distribuição a indústrias e postos de combustíveis – e, no caso das instalações aquaviárias multipropósito, prevaleceram as operações com químicos.
A pouca participação de agentes econômicos não verticalizados no mercado de combustíveis perdurou até as primeiras notícias sobre os processos de desinvestimento da Petrobras, pelo Governo Federal, tendo crescido a partir da criação de programas como “Gás para Crescer”, “Combustível Brasil” e “Renovabio”. Além disso, em 2016, foi determinado à Petrobras a criação de uma política de preços de paridade internacional para incentivar as importações de derivados de petróleo por terceiros.
Nesse contexto, a experiência regulatória revela a insuficiência das medidas adotadas até o momento para incentivar e promover a abertura do mercado de óleo & gás e incentivar a realização de investimentos privados em todos os segmentos da cadeia produtiva. Verificou-se, dessa forma, que a regulação por incentivos, pautada pela maior liberdade dos agentes regulados para a escolha de condutas de mercado desejáveis não foi suficiente para fomentar o aumento de players e a salutar competitividade no setor de combustíveis.
Partindo desse pressuposto, o PL nº 2.316/2022 se traduz como uma nova tentativa de desverticalização do mercado de óleo & gás brasileiro através de estratégia regulatória de comando e controle, mais intervencionista, que prevê maior participação dos órgãos setoriais como uma forma de assegurar a efetividade da política pública, possibilitando o acesso de diversos agentes de mercado aos ativos essenciais do midstream, ampliando a participação de empresas menores nesse setor.
De outro lado, a abertura “forçada” do segmento midstream de combustíveis pode ensejar o efeito carona na utilização das infraestruturas de transporte e armazenagem, situação na qual o próprio regulador permitiria a participação dos free riders – terceiros que se beneficiam de um serviço ou equipamento sem que tenham contribuído para tanto – por meio da política de livre acesso. Nesse caso, ainda que sob uma regulação intervencionista, os objetivos almejados para a ampliação do segmento não seriam alcançados e, ao revés, ter-se-ia um estímulo negativo aos agentes de mercado que já investem no midstream.
Diante das externalidades negativas que podem advir da estratégia regulatória de comando e controle, bem assim do incremento burocrático e do custo tributário decorrente da adoção da desverticalização legal como política pública setorial, entende-se que as medidas de promoção de acesso de terceiros a infraestruturas de transporte propostas pelo PL nº 2.316/2022 não merecem aprovação, pois poderão não alcançar os objetivos pretendidos pelo regulador, qual seja, ampliar a participação de novos entrantes no mercado midstream de combustíveis.
Mais que isso, através de uma regulação mais intervencionista, pode-se desestimular a implementação de investimentos privados no segmento midstream de óleo & gás, fomentando a obsolescência dessas infraestruturas, na contramão dos objetivos buscados com o projeto de lei.
* Natasha Lage de Oliveira França é advogada especialista em Direito Administrativo, com atuação focada em regulação do Setor Portuário.