Regulação Responsiva no âmbito da Anatel

Por Fabiana Marques*

A teoria da Regulação Responsiva, conforme delineada por Ayres e Braithwaite (Responsive Regulation: Transcending the Deregulation Debate. Oxford University Press, 1992), surge da necessidade de transcender o debate entre os que defendem uma regulamentação estatal robusta da atividade econômica, command and control, e os proponentes da desregulação. De acordo com a visão command and control a resposta regulatória é, em geral, fixada ex ante, sem prejuízo, é claro, de aplicação de punições ex post.

A teoria da Regulação Responsiva proporcionou estruturas regulatórias flexíveis e adaptativas, que combinam punição e persuasão, permitindo a criação de formas de regulação que se alinham com a realidade percebida e os objetivos desejados, partindo do pressuposto de que a abordagem regulatória não deve ser uma reação dicotômica (persuasão versus punição) nem estar vinculada a ideologias dos reguladores. Pelo contrário, uma boa regulação é fundamentada na observação cuidadosa do mercado, o que implica em oferecer diferentes respostas para situações diversas; em outras palavras, às vezes punir, às vezes persuadir.

Diante desse cenário, o desafio reside em determinar quando aplicar punição e quando empregar persuasão. Nesse sentido, a teoria propõe a implementação de um desenho regulatório em formato piramidal, permitindo que o regulador possa avançar em uma hierarquia de sanções e estratégias regulatórias predefinidas, com o intuito de induzir o cumprimento das normas estabelecidas ou atribuídas ao agente regulado. Essa pirâmide segue um modelo dinâmico, no qual o comportamento dos regulados determina a resposta a ser adotada pelos reguladores, sendo fundamental iniciar com a abordagem regulatória mais branda, baseada na presunção da virtude ou ao menos boa fé dos regulados. A pirâmide vai sendo escalada na medida em que a resposta do regulado às ações do regulador começam a não surtirem os efeitos almejados. Do mesmo modo, se for constatado que as medidas resultaram em mudança positiva no comportamento do regulado, ocorrerá o caminho oposto, havendo um movimento no sentido da base da pirâmide. Assim, se um ator for identificado cometendo uma infração, ele poderá receber uma advertência do órgão regulador sem repercussões adicionais. Caso essa abordagem inicial não gere o efeito desejado, a pirâmide será ascendida e outras técnicas mais intervencionistas serão aplicadas.

O objetivo principal da regulação responsiva é incentivar os regulados a cumprirem as regras, ao mesmo tempo em que os motivam a continuarem agindo da maneira correta, atendendo ao interesse público.Contudo, é importante que o regulador seja transparente quanto à modelagem adotada pois, tendo a teoria fundamento comportamental, o regulado deve ter pleno conhecimento do modelo adotado; precisa entender a escalada de punição e persuasão e que sua postura virtuosa, o seu comportamento regular, e não o pontual, o reposiciona na pirâmide.

Em 2015, a Anatel iniciou um processo de reavaliação de seus procedimentos de fiscalização e de acompanhamento e controle de obrigações. Inicialmente, foram apresentadas duas iniciativas de proposição de projetos no âmbito do Planejamento Estratégico da Anatel 2015-2024: (i) Sistematização de Análise e Acompanhamento da Prestação do Serviço, apresentada pela Superintendência de Controle de Obrigações, justificado pela necessidade de padronização da forma de atuação no acompanhamento e controle; e (ii) Modernização da Fiscalização, apresentado pela Superintendência de Fiscalização, que apresentava como escopo a normatização, redesenho, automação e implantação do processo da Fiscalização da Agência. Contudo, ao longo das discussões verificou-se que havia um alinhamento significativo entre as duas propostas de maneira que passaram a ser tratados unicamente como o “Projeto Estratégico: Evolução do Modelo de Acompanhamento, Fiscalização e Controle” – voltado, entre outros, à revisão ampla, à racionalização dos processos da Anatel, à sistematização e à busca de eficiência e ganhos de sinergia, compreendendo todo o macroprocesso de acompanhamento, fiscalização e controle da Agência.

Em 2016, foi elaborado o relatório de Análise de Impacto Regulatório (AIR) do “Projeto Estratégico: Evolução do Modelo de Acompanhamento, Fiscalização e Controle”, dividido em dois grandes temas: (i)efetividade das atividades de Fiscalização Regulatória (acompanhamento, fiscalização e controle) e (ii) integração e encadeamento das atividades de Fiscalização Regulatória (acompanhamento, fiscalização e controle).

Vale lembrar que a AIR segue metodologia própria, tendo início a partir da identificação de um problema. Passo seguinte é estabelecer o objetivo que se deseja alcançar com a ação regulatória e descrever e analisar as alternativas apuradas para se alcançar tal objetivo. Por fim, uma vez escolhida a melhor alternativa, é preciso apontar como tal alternativa será operacionalizada.

No tocante ao primeiro tema, o relatório de AIR citou que “historicamente, as atividades de acompanhamento, inspeção e controle, baseadas nas obrigações impostas nos Regulamentos, possuem um foco reativo (após as infrações já terem sido cometidas). Ocorre que, analisando o histórico de descumprimentos, observa-se que para muitos casos o sancionamento não alterou o comportamento dos regulados. Há uma grande dificuldade na avaliação de desempenho das empresas, visto que o esforço da Agência é direcionado para analisar obrigação a obrigação, com o foco na conformidade com as regras e pouco direcionado aos resultados a serem alcançados. O problema parece ter diversas causas, que podem decorrer da própria regulamentação, da preferência por mecanismos reativos ou da ausência de uma metodologia de priorização de ações (…)”

Sobre o segundo tema, o relatório de AIR ressaltou que, à época, as atividades de acompanhamento, inspeção e controle possuíam interdependência direta, sendo desenvolvidas por diversas áreas da Agência de forma pouco coordenada e não estruturada, inexistindo uma visão ampla e encadeada do processo o que, consequentemente, prejudicava o alcance de resultados mais efetivos.

Das opções regulatórias apontadas para os temas analisados no relatório de AIR, a alternativa sugerida para o primeiro tema foi a “definição e adoção de metodologia de priorização para as ações de Fiscalização Regulatória”; e, para o segundo tema, a “sistematização da Fiscalização Regulatória, por meio da definição de fluxo dos processos, do planejamento coordenado e da expedição de Regulamento sobre o tema, substituindo o atual Regulamento de Fiscalização.”

A expedição de Regulamento deveria considerar como premissas, dentre outras, a aplicação de conceitos de regulação responsiva, com a adoção de medidas proporcionais ao risco do evento identificado e à postura dos entes regulados bem como a implementação de ações de controle com base em conceitos de regulação responsiva, por meio da escalada das ações a partir da avaliação de riscos e comportamento do regulado.

O relatório de AIR também adotou o conceito de “Fiscalização Regulatória” para referir-se ao conjunto de atividades de acompanhamento, inspeção e controle realizadas pela Agência. Importante ressaltar que a nomenclatura “inspeção” se refere às atividades desempenhadas pelos agentes de fiscalização em sentido estrito, credenciado para tanto, quando em efetiva ação de fiscalização. Deste modo,as formas de fiscalizar criadas pelo Regulamento de Fiscalização Regulatória são: “ação de fiscalização regulatória” e “inspeção” sendo a última, privativa de agente de fiscalização e a primeira, passível de ser exercida por qualquer servidor da Anatel.

Assim, após Consulta Pública, foi aprovado, por meio da Resolução Anatel nº 746, de 22 de junho de 2021, o Regulamento de Fiscalização Regulatória, cujos procedimentos nele previstos visam à proteção dos direitos dos usuários, ao acompanhamento do cumprimento das obrigações legais, regulamentares e contratuais das prestadoras e dos usuários dos serviços de telecomunicações e à fiscalização da exploração dos serviços de telecomunicações e da utilização do espectro de radiofrequência, priorizando medidas de educação, orientação, monitoramento, melhoria contínua, prevenção, coordenação e regularização de condutas em desconformidade, mediante a reparação voluntária e eficaz, em respeito aos princípios da transparência e da cooperação.

O novo normativo introduziu, no âmbito da Anatel, regramento geral de regulação de modelagem responsiva, substituindo o Regulamento de Fiscalização e alterando o Regulamento de Aplicação de Sanções Administrativas (RASA); trouxe um conjunto de atos abrangentes de monitoramento, de controle e de acompanhamento, baseados em princípios de responsividade. Também, reclassificou o significado de regulação,saindo da regulamentação de tipificação detalhista de condutas esperadas, fundamentada sob inspiração coercitiva do modelo clássico de regulação estatal para um ambiente de normas regulatórias abertas e flexíveis, destinadas, de modo pragmático e finalístico, ao estabelecimento de padrões, objetivos e parâmetros a serem perseguidos pelos entes regulados na prestação dos serviços de telecomunicações.

O Regulamento descreve o Planejamento, o processo de Acompanhamento e o processo de Controle da Fiscalização Regulatória.

O Planejamento objetiva programar e priorizar as medidas necessárias para atuação da Anatel, promovendo o alinhamento dos objetivos, recursos e esforços, mediante aplicação de metodologia de priorização. Para compor o Planejamento de Fiscalização Regulatória, são apresentadas propostas com indicação: (i) dos temas e subtemas; (ii) dos problemas identificados; (iii) dos objetivos que se pretende alcançar; (iv) dos indicadores ou parâmetros a serem utilizados para medir a efetividade e resultados da ação, quando disponíveis; e, (v) da análise de risco de evolução da conduta. O Planejamento apresentará, dentre outros, o cronograma de execução das iniciativas de Fiscalização Regulatória e a indicação da necessidade de Inspeções.

O processo de Acompanhamento abarca o conjunto de medidas destinadas ao acompanhamento, monitoramento, análise e verificação do cumprimento da legislação e da regulamentação e das condições de prestação dos serviços, incluindo aquela realizada mediante Inspeção, bem como de medidas de prevenção e de reparação. Acontece por ações de fiscalização regulatória e poderá ser realizado no âmbito de qualquer das Superintendências da Anatel, quanto às matérias de sua competência. No bojo deste processo serão requeridos e analisados dados, realizadas Inspeções e aplicadas medidas preventivas ou reparatórias, sempre em diálogo com as prestadoras, com o intuito de formar um diagnóstico e solucionar problemas na prestação dos serviços de telecomunicações. O processo de Acompanhamento pode resultar, isolada ou conjuntamente, em imposição de medidas preventivas ou reparatórias;imposição de medidas de controle;composição de base de dados para reavaliação nos próximos ciclos; e,arquivamento do processo. Ressalta-se que as medidas preventivas ou reparatórias têm o intuito de evitar ou cessar a prática de infrações administrativas verificadas no processo de Acompanhamento onde a Agência busca promover a solução de problemas, para melhor execução dos serviços de telecomunicações e benefício aos usuários.

O processo de Controle abarca o conjunto de medidas destinadas à reação da Anatel perante condutas que estejam em desacordo com a legislação e a regulamentação. As medidas de controle são a divulgação de informações, medida cautelar, instauração de Procedimento para Apuração de Descumprimento de Obrigações – PADO[i] e assinatura de Termo de Ajustamento de Conduta (TAC).

Por meio do Regulamento de Fiscalização Regulatória, a Agência passou a definir suas prioridades de ciclos de fiscalização e planejamento regulatório.

A Pirâmide de responsividade da Anatel ficou assim aplicada:

Reúne as medidas cautelares aplicáveis pela Agência e está dividida entre medidas preventivas ou reparatórias, como: composição de base de dados para futuras fiscalizações e planos de conformidade; e medidas sancionatórias, que vão de advertências e multas a intervenções e declaração de caducidade.

O Regulamento de Fiscalização Regulatória gerou um incentivo à solução da irregularidade e não à litigiosidade administrativa.

Vale ressaltar que antes mesmo da publicação do Regulamento de Fiscalização Regulatória, a Anatel já vinha aplicando princípios de regulação responsiva, seja na edição de regulamentos específicos, como o novo Regulamento de Qualidade dos Serviços de Telecomunicações (RQual), seja na implementação, em 2017, de projetos piloto do macroprocesso de Fiscalização Regulatória

Por fim, faz-se necessário citar a palestra sobre “Responsividade dinâmica: regulação responsiva na Anatel”, realizada no âmbito do XIV Ciclo de Palestras do Núcleo de Direito Setorial e Regulatório da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, em julho de 2021.A palestra contou com a participação de servidores da Anatel, responsáveis pela elaboração de um artigo que propôs investigar a instrumentalização da regulação responsiva e sua eficiência por meio de mensuração objetiva a partir do caso concreto da Agência Nacional de Telecomunicações. O artigo apresenta os principais instrumentos adotados pela Agência na regulação responsiva, antes mesmo da publicação do Regulamento de Fiscalização Regulatória. Também, apresenta o modelo construído para avaliação da eficiência desses instrumentos.

Como resultado, o estudo concluiu que os instrumentos de regulação responsiva apresentaram, no conjunto, scores de eficiência elevados e efeitos positivos na redução dos registros de reclamações na Agência. Contudo, foram percebidas evidências que, em alguns casos, os instrumentos tendem a perder eficiência relativa com o tempo, o que demonstra a necessidade de modernização desses instrumentos de modo a acompanhar a evolução do próprio mercado.

Referências

ARANHA, M.I. Manual de Direito Regulatório. 4. ed. Londres: Laccademia, 2018.

AYRES, I., BRAITHWAITE, J. Responsive regulation: transcending the deregulation debate. Oxford: Oxford University, 1992.

ANATEL. Planejamento Estratégico Anatel: 2014-2024. Processo 53500.001469/2015-86.

ANATEL. Projeto “Evolução do modelo de acompanhamento, fiscalização e controle”. Processo nº 53500.205186/2015-10.

ANATEL. Execução do projeto piloto de implantação do macroprocesso de Fiscalização Regulatória. Processo 53500.046278/2017-13.

ANATEL. Regulamento de Aplicação de Sanções Administrativas (RASA), aprovado pela Resolução nº 589, de 7 de maio de 2012. Processo 53500.020772/2005-14.

ANATEL. Regulamento de Qualidade dos Serviços de Telecomunicações (RQual), aprovado pela Resolução nº 717, de 23 de dezembro de 2019. Processo 53500.006207/2015-16.

XIV Ciclo de Palestras do Núcleo de Direito Setorial e Regulatório da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Responsividade dinâmica: regulação responsiva na Anatel. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=JpCjtTmIqO4&t=4266s>. Acesso em: 20/02/2024.


[i]PADO – Procedimento para Apuração de Descumprimento de Obrigações. Destina-se a averiguar o descumprimento de disposições estabelecidas em lei, regulamento, norma, contrato, ato, termo de autorização ou permissão, bem como em ato administrativo de efeitos concretos que envolva matéria de competência da Agência, e será instaurado de ofício ou a requerimento de terceiros, mediante reclamação ou denúncia, compreendendo as fases de instauração; instrução; decisão e recurso. Artigo 80 do Regimento Interno da Anatel, aprovado pela Resolução nº 612, de 29 de abril de 2013.

* Fabiana Marques é economista e especialista em Regulação da Anatel.