Quem paga a conta na Reforma Tributária*

Por Marcos Mendes* *

É importante lembrar o que significa uma sociedade discutir a organização de seu sistema tributário. Embora o assunto seja complexo, cheio de detalhes técnicos, ao fim e ao cabo o que nós estamos discutindo é quanto cada cidadão vai pagar da conta total de financiar os governos, as políticas públicas.

Em uma dimensão muito menor, é o que fazem os moradores de um condomínio em uma reunião para definir a taxa mensal a ser paga por cada morador, para manter, limpar e reformar as áreas comuns do prédio.

Em um sistema tributário, pela sua dimensão, muitas consequências decorrem da forma como a conta é dividida e cobrada. Ela afeta como as empresas se organizam, que setores elas escolhem para trabalhar, quanto investem, quanto contratam de trabalhadores etc.

Um bom sistema tributário é aquele que interfere o mínimo possível nas decisões das empresas e dos consumidores, deixando que eles se organizem da forma mais eficiente possível conforme os preços de mercado.

Sempre que o sistema tributário favorece um grupo e desfavorece outro, ele cria ineficiências, a economia fica menos produtiva, cresce menos, gera menos emprego e todos perdem.

Aí é que surge o problema. Definir o desenho de um sistema tributário é um processo de escolha coletiva. É o que estamos fazendo aqui. Coletivamente discutindo e decidindo como vão ser pagos os impostos, quem vai pagar mais e quem vai pagar menos.

Cada membro da coletividade tem incentivo a querer pagar menos. E se esforça para convencer o resto da comunidade de que o setor/a empresa/a profissão dele é tão importante para a sociedade, que se ele pagar menos impostos, todos vão ganhar.

Raramente isso é verdade.

Mas como tem muito dinheiro em cima da mesa, vale a pena organizar assessorias de relações institucionais e contratar consultorias caras para montar argumentos sofisticados, sempre para convencer a coletividade de que se eu pagar menos impostos isso vai ser bom para todo mundo: vai gerar mais emprego, vai baratear um serviço essencial etc.

O problema é que se alguém paga menos, e o gasto do governo não diminui, alguém vai ter que pagar mais. Não tem mágica.

E outro problema é que a dona de casa, o pedreiro que trabalha sem carteira assinada ou o lavador de carro não têm assessoria de relações institucionais. Não conseguem um espaço para discutir a divisão da conta do condomínio.

Me permitam aqui ser o “lobista dos interesses coletivos não representados”, para falar um pouco sobre os efeitos nocivos de tratamentos especiais dados a este ou aquele setor ou a esta ou aquela profissão.

Já foi dito inúmeras vezes que a tributação sobre o valor agregado (IVA), que é o modelo adotado na reforma, não tributa a produção. As empresas que estão no meio da cadeia de produção, e não vendem ao consumidor, atuam apenas como recolhedores de impostos e imediatamente se compensam, com créditos acumulados de impostos pagos nas transações anteriores.

Então, só tem que se preocupar com maior ou menor incidência de impostos quem está na transação final com o consumidor. Neste caso, a lei da oferta e da demanda vai dizer quem arca com o custo do imposto, se é o consumidor (repasse do imposto para o preço) ou se é a empresa que está vendendo ao consumidor (redução da margem de lucro). Mas isso é a economia de mercado. É a regra do jogo. Não temos que criar leis para proteger setores que não conseguem repassar a conta para o consumidor.

Estabelecer alíquotas diferenciadas gera uma série de problemas:

  • estimula empresas a investirem mais nos setores com alíquotas favorecidas, distorcendo a alocação do capital  – uns setores produzem muito e outros produzem pouco – tornando a economia menos produtiva, com menor capacidade de crescer e gerar empregos;
  • distribui de forma injusta o ônus de pagar a conta da ação pública;
  • aumenta o custo de fiscalização, as oportunidades de elisão e sonegação.

Infelizmente a Câmara dos Deputados já concedeu tratamento privilegiado para muitos setores.Vou listar todos os tratamentos favorecidos para que fique claro como a lista já está longa:

  • teremos regimes específicos para: hotelaria, parque de diversão, parque temático, bares, restaurantes, aviação regional;
  • tratamento em separado para as empresas do SIMPLES;
  • alíquota reduzida para: cesta básica, serviços de educação, serviços de saúde, dispositivos médicos e de acessibilidade para pessoas com deficiência, medicamentos e produtos de cuidados com a saúde menstrual, serviços de transportes coletivos rodoviário, ferroviário e hidroviário, produtos agropecuários, aquícolas, pesqueiros, florestais e extrativistas, insumos agropecuários e aquícolas, alimentos destinados ao consumo humano, produtos de higiene pessoal, produções artísticas, culturais, jornalísticas, e audiovisuais, atividades desportivas, bens relacionados à segurança nacional e à soberania, segurança da informação e segurança cibernética.

Parece que a Câmara foi bem longe em aceitar o argumento de muita gente que acha que se eles pagarem menos imposto a sociedade vai ganhar com isso.

Cada um desses que pagar a menos vai empurrar a conta para a dona de casa, para o ajudante de pedreiro que trabalha sem carteira assinada. Pior ainda, vai distorcer a estrutura produtiva do país e diminuir o nosso potencial de crescer e criar um emprego com carteira assinada para o pedreiro.

Os argumentos usualmente aplicados para requerer um tratamento especial são do tipo:

  1. A tributação do meu setor vai aumentar muito – de duas uma, ou quem reclama está fazendo a conta errada (não levando em conta que no imposto sobre valor agregado serão descontados créditos que hoje não são descontados) ou, se estiver fazendo a conta certa,estará revelando que temos um caso de privilégio que tem que acabar. Não é porque é privilegiado hoje, pagando menos impostos que os demais, que o setor ou profissão tem direito a continuar pagando menos no futuro. Uma das funções da reforma é equalizar: quem paga pouco hoje, pagará mais, e vice-versa.
  2. Desonerar bens e serviços consumidos pelos pobres. Ora, a literatura já deixou claro que é muito mais eficiente combater a pobreza transferindo renda e fazendo programas focalizados. Rico também come feijão com arroz. Desonerar cesta básica sai caro e é ineficiente para reduzir pobreza.
  3. CPMF e desoneração da folha de pagamentos seria mais importante que reformar a tributação do consumo. Sinto muito: CPMF é um péssimo imposto. Desonerar folha de pagamento é importante, mas precisamos decidir como substituir a receita de forma eficiente (e não com um tributo ruim como a CPMF) ou aceitar reduzir o gasto público antes de desonerar a folha.
  4. Permitir abater do IVA créditos relativos a outros impostos, sobre renda, patrimônio e faturamento. Isso é, no mínimo, um absurdo. Contraria qualquer lógica de tributação uniforme do consumo. Cada modalidade de tributação deve ser tratada de forma separada.
  5. Dar tratamento especial para serviços porque eles representam 73,35% do PIB e geram 69% do emprego. Quando retiramos todos os serviços que não serão tributados pelo IBS[1]/CBS[2] (como a “administração pública”), os que estão em regimes específicos ou incluídos em tratamento favorecido, inclusive o SIMPLES, os que prestam serviços a empresas e não arcarão com o ônus tributário e os que estão na informalidade, restam apenas 0,6% do PIB.
  6. Permitir que micro e pequenas empresas gerem créditos maiores que os tributos que efetivamente pagaram. Isso é uma distorção enorme. Vai criar vantagens competitivas para quem tem o subsídio tributário e estimular sonegação e elisão.

Em resumo: imposto sobre consumo bom é aquele que não incide sobre a produção, tem alíquota única e devolve todos os créditos de impostos pagos ao longo da cadeia.

Isso é que aumenta a eficiência da economia.

Tratamentos diferenciados criam distorções. Os benefícios que se diz querer obter com esses tratamentos diferenciados (atender os mais pobres, gerar emprego, estimular a economia) não são obtidos. O que se tem, ao final, é o efeito contrário. Políticas setoriais e redistributivas devem ser feitas via orçamento, pelo lado do gasto, de forma transparente.

* Fala em audiência pública sobre o tema na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, no dia 19/9/23, da qual participaram mais de dez representantes de setores econômicos e categorias profissionais que falaram em favor de tratamento favorecido aos seus respectivos setores.

* * Marcos Mendes é doutor em economia. Pesquisador associado do Insper.


[1] O que seria o futuro “Imposto sobre Bens e Serviços” na reforma proposta.

[2] O que seria o futuro “Contribuição sobre Bens e Serviços” na reforma proposta.