Por Cristiane Alkmin Junqueira Schmidt*
Dentre 193 paises da ONU, 174 adotam o IVA. Isto quer dizer que a proposta de Reforma Tributária (RT) em discussão no Congresso Nacional(CN) não é uma jabuticaba. Pelo contrário.Se está copiando um modelo que retrata as melhores práticas internacionais. Além disso, no Brasil, esta temática vem sendo estudada por advogados, economistas, cientistas políticos, acadêmicos e tributaristas há mais de 35 anos, com maior intensidade desde jan/19. Há diversos estudos disponíveis por órgãos de reputação ilibada (Ipea, CCIF, Insper, Ibre/FGV, Banco Mundial, FMI, BID etc.).Feita esta breve introdução, seguem abaixo os 5 principais pontos em discussão no CN.
A primeira questão diz respeito à suposta perda de autonomia dos entes subnacionais por conta do Conselho Federativo (CF). A RT reforça o poder dos entes subnacionais, não o contrário, uma vez que o CF será formado somente por estados e municípios. A união não participa, logo, não opina. Serão os entes que arrecadarão, proporão normativas, regulamentarão o operacional e decidirão suas alíquotas (do IBS), para além da governança, tema fundamental, que está sendo negociada no CN para que seja inserida no texto da Proposta de Emenda Parlamentar (PEC). Neste novo modelo, o papel dos fiscos estaduais mudará completamente seu modus operandi, passando a ser bem mais relevante do que é agora, comum a atuação integrada e harmonizada, jamais vista, em que todos os entes trabalharão em prol de todos os entes, com objetivos convergentes acerca da fiscalização, da autuação e dos contenciosos administrativos[1]. Hoje, a guerra fiscal desune o país e deixa um estado refém do outro, num eterno sentimento de briga. Em teoria dos jogos, no jogo dilema dos prisioneiros, verifica-se que o resultado final é o pior possível para os tesouros estaduais, em especial quando se trata de entes falidos fiscalmente e com elevado grau de renúncia, onerando, destarte,a sociedade, os fornecedores e os servidores públicos. Com esta RT, se está, assim, fortalecendo a federação (não o contrário) e a importante tarefa dos fiscos.
O segundo tema concerne à proposta do governo de São Paulo (SP), numa alternativa ao CF. A proposta da PEC é que o CF aja como um banco: um local de recebimento e repasses (débito e crédito) de uns para os outros (sem um estado mandar mais do que o outro), sob, provavelmente, o sistema do split payment[2] e de acordo com as regras definidas pelos próprios entes. Daí a relevância da governança deste CF ser igualitariamente entre os estados, independente de tamanho de PIB ou da população, mas que considere, também de forma igualitária, os interesses regionais.Neste sentido, há que criar uma forma de votação diferente de como ocorre hoje no Comsefaz/Confaz, em que Norte e Nordeste sempre ganham, pois têm a maioria dos estados.
Além disso, uma das principais belezas do CF é dar a certeza aos empresários de que seus créditos serão devolvidos e de forma rápida, desconsiderando, portanto, problemas fiscais de qualquer ente. Para estados exportadores, este tem sido um problema, dado que eles têm direito a créditos, mas são desonerados ou têm baixa carga tributária. Como nesta RT a base de devolução é ampliada, favorecendo o produtor, este problema amplia também.Se não é através de um CF, estados produtores e exportadores podem não conseguir devolver ditos créditos. O objetivo desta devolução ampla de crédito ao produtor e ao exportador é desonerar totalmente o setor produtivo para que este possa, desta forma, investir e produzir mais, gerando mais emprego e renda.
Se não for via CF, como proposto na PEC, mas via Câmara de Compensação, como propôs o governo de SP, os estados poderão ter a sua autonomia posta em cheque, uma vez que a maioria dos estados ficarão nas mãos de poucos estados produtores (especialmente de SP, grande produtor)e da união (que viria a ser o garantidor, segundo a proposta, podendo, assim,não fazer os repasses de FPE e FPM aos entes). De certo, neste formato, haveria um encontro de contas nas operações interestaduais, em que o estado de origem arrecada o imposto e repassa para o de destino, onde há o consumo e a União ficaria como garantidor. Seria conveniente ter a presença da União garantindo que os débitos e créditos ocorressem da forma correta? Mais ainda: tendo a prerrogativa de punir o estado de origem, não repassando FPE e FPM? Também neste formato, em vez de se ter uma regulamentação apenas, passar-se-ia ter (27+5570) regras e ter que lidar com (27+5570)fiscos: isso é bom?Além disso, qual a segurança dos exportadores terem a devolução de seus créditos,especialmente agora com base ampla, importante ponderação feita pelo governador Casagrande? Além disso, vale lembrar que, se atualmente muitos fiscos não repassam créditos adquiridos, qual a segurança para as empresas de que os teriam, especialmente sob uma base ampliada?Haveria um “calote federativo”, provavelmente! Por todos estes argumentos, o CF, por consequência, é uma solução superior à Câmara de Compensação, pois dá segurança jurídica aos tesouros estaduais e aos empresários. Sem este órgão, o modelo se fragilizaria ou até se inviabilizaria.
O terceiro tópico refere-se aos benefícios fiscais.Estes estarão garantidos até o final de 2032 (prazo da transição dos contribuintes), respeitando a LC 160, um pedido – justo, diga-se de passagem- dos contribuintes e que passou a ser contemplado na nova redação da PEC. O financiamento será de responsabilidade da União, onde o valor está sendo negociado, assim como se o instrumento será por um fundo próprio, chamado de Fundo de Compensação ou pelo Fundo de Desenvolvimento Regional (FDR). Observa-se, porém,que qualquer governador ou prefeito terá autonomia plena para conceder benefícios a setores ou a empresários, não perdendo suas prerrogativas como gestores eleitos. A diferença, contudo,serána forma. No modelo vigente, tal benefício é dado via crédito outorgado/redução de base de cálculo (lado da receita).Após a RT, será via despesa orçamentária, como uma política pública qualquer, a qual constará nas leis orçamentárias (LDO e LOA), aprovadas nas assembleias, dando maior transparência à sociedade acerca do uso dos escassos recursos públicos.
O quarto item toca no prazo da transição de 40 a 50 anos (ainda em discussão), referente à mudança origem-destino, que afeta a arrecadação dos tesouros, e a um “seguro-receita”.Durante este período,um recurso federal poderá ser alocado (está em discussão) no ressarcimento dos cofres estaduais perdedores (3 a 4 estados). Discute-se se este repasse de fato ocorrerá e, em caso positivo, se será via um “seguro-receita”(3% do IBS) ou alocado junto ao FDR. O prazo longo, importante mencionar, é para que o crescimento econômico ajude no processo de transição.
O quinto e último ponto de discussão é sobre o FDR. Até dez/2022, este fundo era a única fonte de recurso federal que estava sendo discutida e tinha destino genérico (para tesouros perdedores na transição, empresários com benefícios fiscais e políticas para desenvolvimento). Agora, o FDR provavelmente destinar-se-á aos investimentos em infraestrutura e na área social, se houver os outros dois mecanismos (fundo de compensação e seguro-receita). O montante anual e os critérios de repartição ainda estão sendo definidos.
Este é o resumo dos principais pontos de discussão. O fato curioso é que, em 1967, com a criação do ICM, os estados temiam perda de arrecadação, o que não houve, e no ano seguinte reduziram a alíquota.Por isso, conquanto as incertezas sejam naturais, há que se ter coragem em evoluir. O status quo fracassou, o gap de conformidade (sonegação) é alto(e será eliminado pelo split payment que possivelmente será implementado) e o Brasil tem produtividade estagnada há 20 anos. Perquirir por seu aumento, dado que o bônus demográfico se exauriu, é um dever de todo brasileiro.Ninguém aguenta mais este manicômio tributário, exceto os consultores na área. Para além do número de regras que são criadas frequentemente nos 27+5570 entes (ex: Mc Donald’s não vende mais sorvete, mas sobremesa; sonho de valsa não é mais bombom!!), gasta-se R$ 7,5 tri de contencioso tributário. Empresários e governos perdem.É necessário simplificar, desburocratizar e trazer segurança jurídica para fomentar os investimentos.Neste sentido, o deputado Reginaldo Lopes (líder do GT da RT), o relator Aguinaldo Ribeiro e o secretário Appy estão ouvindo todas as partes, analisando as inquietações setoriais, refazendo as contas e mudando o texto da PEC sob muitos aspectos, o que mostra comprometimento com um debate real, não protocolar.
A China em 2003 era nosso par e hoje é uma potência. Coreia já passou e outros países, como Índia, estão nos passando. O Brasil não pode ficar para trás: precisa crescer e promover justiça social. A RT, ainda que não seja perfeita, é necessária, sendo a alavanca que o país precisa, ainda que outras reformas sejam imprescindíveis, como a administrativa. Em uma democracia, é natural as divergências, embora consensos têm sido feitos. O CN tem sido protagonista e aprovado reformas importantes, como a do saneamento e a trabalhista. A ver o placar da maioria desta RT.
* Cristiane Alkmin Junqueira Schmidt é mestre e doutora em Economia pela EPGE/FGV, visiting scholar em Columbia e consultora sênior para o Banco Mundial. Ex-secretária-ajunta da SEAE/MF, ex-conselheira do CADE e ex-secretária da Economia de Goiás.
[1] O CCiF tem estudos de como pode ser esta nova forma de atuação conjunta e harmônica entre todos os fiscos, para coibir a sonegação e a “fábrica” de notas frias.
[2] Split payment é um serviço que será realizado pelo CF, quando este distribuir (através de algoritmos e de maneira automática)os débitos e créditos entre os players envolvidos em uma transação, seja um ente federado, seja uma empresa.