Por Felipe Tavares*
Introdução
Em 2015 a Organização das Nações Unidas por meio de um acordo firmado pelos seus 193 Estados-membros criou um plano de ação global voltado para o desenvolvimento sustentável. Esse acordo ficou conhecido como ODS – Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, sendo composto por 17 objetivos e 169 metas.
De forma geral, a agenda do ODS abrange as três dimensões do desenvolvimento sustentável – social, ambiental e econômica – podendo ser aplicadas por governos, empresas e sociedade civil. Deste modo, a agenda do ODS é um compromisso da sociedade com o planeta, trabalhando em busca da garantia de condições para um futuro digno.
O objetivo 6, ou ODS 6 como é mais conhecido, congrega as metas relacionadas à água de forma ampla, tendo como missão assegurar a disponibilidade e a gestão sustentável de água e saneamento para todos. São metas do ODS 6 a universalização dos serviços de água e esgoto, a busca pela qualidade de água dos corpos hídricos, segurança hídrica, uso eficiente da água e gestão dos recursos hídricos.
O ODS 6 conecta o desafio endereçado pelo Novo Marco do Saneamento Básico com a agenda de desenvolvimento sustentável das Nações Unidas.
A discussão do novo marco legal do saneamento escancarou a situação medieval que o Brasil vive no que tange ao atendimento de água e esgoto, tendo mais de 100 milhões de brasileiros sem acesso à coleta e tratamento de esgoto e mais de 35 milhões sem acesso à água tratada.
O ODS traz como meta de universalização 2030, enquanto o novo marco do saneamento 2033. A verdade é, seja em 2030 ou 2033, a vitória para o país seria enorme se a meta fosse alcançada, pois teremos ganhos expressivos com menores índices de abstinência do trabalho, diminuição da mortalidade infantil, melhoria do desempenho escolar das crianças e adolescentes e diminuição com gastos em saúde devido à diminuição de doenças.
A meta é ousada e o desafio é grande. Para cumpri-lo estimamos que precisamos de cerca de R$ 750 bilhões em investimentos até 2033. O investimento multibilionário mostra o tamanho do desafio que o Brasil tem pela próxima década.
Mas a pergunta que importa é temos condições de cumprir a nossa meta?
A resposta a essa pergunta é sim, entretanto, temos que enfrentar os desafios como eles verdadeiramente são. Esse é o objetivo do presente texto, discutir esses desafios e como superá-los.
Os desafios centrais referem-se à viabilidade financeira, ambiente regulatório e legal, qualidade da informação e qualidade de água.
Os desafios
1, Viabilidade financeira
A viabilidade financeira é um dos grandes desafios do Brasil, pois sustentar altas taxas de investimentos tornou-se um gargalo quase insuperável na história recente do país.
O primeiro motivo para não conseguirmos superar tal gargalo é o custo de capital no Brasil, que resumidamente é representado pela taxa de juros básica, ou SELIC.
O Brasil é reconhecidamente um dos países mais caros do mundo para se financiar, devido àSELIC elevada e aos juros bancários ainda maiores.
Embora a taxa de juros seja um problema para o país, baixar a taxa discricionariamente, de uma canetada, não é o caminho. É importante ter em mente que a SELIC representa o equilíbrio não inflacionário no mercado monetário, sendo o “preço” de equilíbrio do dinheiro.
Desta forma, toda vez que há menos dinheiro disponível, o custo desse dinheiro aumenta, ou seja, a taxa de juros aumenta. Além disso, as expectativas sobre o aumento do custo do dinheiro também importam, de forma que se há uma convergência de opiniões sobre o aumento do custo do dinheiro no futuro, esse custo aumenta.
Nesses dois aspectos mencionados, o comportamento do governo importa. Esse é um fato pouco lembrado nas discussões sobre o desenvolvimento sustentável, mas a sustentabilidade financeira do governo é fundamental para a garantia de um futuro melhor, pois se o governo é um grande gastador, ele precisa se financiar, diminuindo a quantidade de dinheiro disponível para ser alocada em outros projetos.
Assim, ter o governo como concorrente para financiamentos é extremamente prejudicial para o desenvolvimento sustentável, pois inviabilizamos projetos e não conseguimos entregar o que mais importa, que são serviços de qualidade para a população.
Todo o comportamento pouco prudente, ou austero na linguagem econômica, gera sinalizações negativas para a sociedade, impactando negativamente a expectativa dos agentes econômicos, encarecendo novamente o custo do dinheiro por um fator muito simples, o risco.
Desta forma, em vista a melhorar o custo de capital no Brasil, é fundamental que tenhamos uma política fiscal responsável, de forma que o governo deixe de ser um concorrente para os recursos disponíveis no Brasil e passe a ser uma fonte poupadora.
A austeridade do governo traria inúmeros benefícios adicionais para o custo de capital brasileiro, melhorando a expectativa dos investidores, diminuindo o risco país e possibilitando a atração de capital estrangeiro que não investe no Brasil pelo país ser considerado de alto risco.
2. Ambiente Regulatório
Hoje no Brasil temos mais de 90 Entidades Reguladoras Infranacionais – ERI –, constituindo um cenário complexo e disforme em relação às regras que os operadores de saneamento básico estão sujeitos.
Na prática, temos a possibilidade de ter para cada tema regulatório, como custos operacionais, WACC[1], custo de capital, etc, uma regra para cada entidade reguladora. No limite, temos a possibilidade de um cenário caótico com 97n normas, onde n é o número de ERIs.
Além disso, o tema saneamento é usualmente foco de pautas políticas e eleitoreiras, sendo as agências reguladoras, que são as guardiãs das tarifas, o vetor da atuação e interferência política no setor.
O Novo Marco do Saneamento buscou endereçar esse problema, atribuindo à Agência Nacional de Águas (ANA), a edição das normas de referência para a regulação do setor. Embora as ERIs tenham autonomia e independência, a existência de um Benchmark produzido pela agência federal traz uma referência para o setor, diminuindo os espaços para arbitrariedade, independente do modelo regulatório posto.
O enforcement posto pelo Novo Marco do Saneamento foi o spending power, ou seja, o poder do gasto. Com efeito, apesar da independência das ERIs em relação à adoção das normas, a não adoção impossibilita o acesso a recursos públicos federais, incluindo emendas parlamentares, Orçamento Federal Direto e BNDES.
3. Qualidade da informação
A pouca qualidade das bases de dados do saneamento básico é notória e amplamente conhecida pelos stakeholders do setor, impactando a qualidade dos estudos de modelagem das concessões e afetando o conhecimento da realidade do setor.
Em relação às modelagens e às bases de dados, o Novo Marco do Saneamento previu a criação de um novo sistema, o SINISA[2], sendo este fundamental para a melhoria da qualidade dos dados disponíveis.
Essa melhoria inclui a criação de um novo modelo de governança para a declaração das informações epara atestar a acurácia dessas informações. Com esse ajuste, será possível alcançar um outro patamar sobre o planejamento no saneamento básico.
A baixa qualidade das bases de dados existentes não afeta somente a modelagem dos novos projetos, poisessa qualidade ruim dos dados gera divergências entreos indicadores divulgados pelos principais relatórios sobre o setor no Brasil.
De um lado, há a metodologia dos indicadores do ODS 6, amplamente baseada na PNAD e contemplando o atendimento por rede e as soluções individuais. Do outro, existem os relatórios e estudos baseados no SNIS, que é composto pela autodeclaração das companhias e restritoao atendimento por rede.
Infelizmente, ambas bases são ruins, gerando imprecisões e distorções em relação à realidade brasileira.
Pelo lado da PNAD, o problema maior refere-se ao próprio formato da pesquisa, pois as perguntas relacionadas ao atendimento de água e esgoto são muito técnicas e os respondentes muitas vezes não tem o conhecimento necessário para responder adequadamente. Ademais, a PNAD contempla a amostragem buscando a representatividade estadual, gerando ruídos e perdas de acurácia devido ao serviço ser de titularidade municipal.
Já pelo SNIS, grande parte dos operadores não respondem adequadamente ao questionário, tendo uma imprecisão significativa nos resultados.
A busca pela convergência desses indicadores de atendimento e outros indicadores operacionais é fundamental para trazer o diagnóstico real dos desafios para a universalização do saneamento básico no Brasil.
Por exemplo, o ODS reporta que temos 97% da população com acesso à água e 73% à esgoto, enquanto os desafios do Novo Marco são baseados nas informações de 85% de acesso à água e 56% a esgoto. Esse tipo de divergência nos indicadores gera dúvidas sobre o real desafio brasileiro, dissipando energias que são fundamentais para se atingir a universalização até 2033 (ou 2030).
Neste sentido, o primeiro passo é buscar a robustez das bases existentes, de forma a viabilizar a constituição do SNISA. O segundo passo, mas não menos importante do que o primeiro, é buscar a convergência dos indicadores do ODS 6 com os que são divulgados no âmbito do Novo Marco do Saneamento e das concessões, de forma a trazer unicidade para a narrativa e concentraras energias dos stekeholdersno que é fundamental nesse processo: produzir serviços de água e esgoto de qualidade para a maior população possível.
4. Qualidade de Água
O tema qualidade de água é tratado diretamente na política nacional de recursos hídricos, mais especificamente no instrumento de enquadramento de corpos hídricos.
Esse instrumento é responsável por definir as metas de qualidade de água que devem ser alcançadas nos corpos hídricos brasileiros, de forma a enquadrar os parâmetros dos indicadores bioquímicos em classes específicas.
Esse instrumento conecta o saneamento básico com a política nacional de recursos hídricos, provando que a água é uma só. Isto é, caso não tenhamos serviços de esgotamento sanitário apropriados para a população, as cargas poluidoras do saneamento irão comprometer a qualidade dos rios, tendo reflexo novamente na estrutura de tratamento de água, pois será necessário ter um tratamento mais severo para que esta água possa ser utilizada para consumo humano.
Somente com a aprovação do novo marco do saneamento é que a discussão da qualidade de água e do saneamento passaram a ser vistas com uma sinergia maior, pois para a política de recursos hídricos, o saneamento não passava de um usuário de recursos hídricos ou uma carga poluidora. Contudo, atingir as metas de qualidade dos corpos hídricos passa, fundamentalmente, pela universalização do saneamento pois há externalidades evidentes de um em relação ao outro.
Dada a importância do esgotamento sanitário para a qualidade de água no Brasil, fica evidente o peso ambiental que o saneamento possui. Assim, desenvolver políticas e modelagens sinérgicas entre o saneamento e as propostas de enquadramento é fundamental para o desenvolvimento sustentável brasileiro, pois sem água com qualidade, não é possível garantir a segurança hídrica brasileira.
Considerações Finais
O presente texto teve por objetivo apresentar de forma suscinta a relação da agenda de desenvolvimento sustentável da ONU – ODS – com o Novo Marco do Saneamento Básico, de forma a mostrar que a busca pela universalização dos serviços de água e esgoto transcende os desafios de um único setor da economia brasileira, representando uma missão do povo brasileiro.
Os principais desafios em relação à universalização recaem em temas já conhecidos do Brasil, como a dificuldade em sustentar elevadas taxas de investimento, o ambiente regulatório complexo, a pouca disponibilidade de informação e a perspectiva ambiental capitalizada pela qualidade de água.
De forma geral, as soluções são simples, embora não sejam simplórias.
A primeira delas é garantir responsabilidade fiscal, de forma a não afetar a liquidez do país e diminuir a pressão sobre o custo de capital das operações. A segunda tem relação direta com as Normas de Referência da ANA, sendo a manutenção das competências da agência fundamental para a melhoria desse ambiente, ainda confuso, que existe no setor de saneamento no Brasil. A terceira refere-se à busca por bases de dados mais confiáveis, através da governança e de processos bem desenhados para a coleta de dados eficientes, além da convergência dos indicadores de atendimento do ODS e do Novo Marco. Por fim, a quarta refere-se à política de enquadramento, sendo o avanço pragmático dos enquadramentos em todas as bacias hidrográficas federais e estaduais e planos de ação factíveis para a recuperação dos corpos hídricos fundamental para o cumprimento da agenda sustentável.
Portanto, temos a certeza que a água é uma só e os objetivos não serão alcançados sem a universalização do saneamento.
* Felipe Tavares é superintendente de Estudos Hídricos da ANA – Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico.
[1]Weighted Average Cost of Capital, utilizado para a regulação tarifária, dentre outras.
[2]Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento Ambiental.