Reforma Tributária: perspectivas do debate em 2023

Por Lucíola Calderari da Silveira e Palos*

1. Considerações iniciais

Há muito se discute a crescente obsolescência do sistema tributário nacional. Apesar do intenso debate na Constituinte de 1988 sobre as competências dos entes federados e a forma de financiamento das políticas públicas, não se logrou êxito eminstituir um sistema tributário moderno, alinhado às melhores práticas internacionais. Exemplo disso foi a falta de avanço no debate sobre a tributação do consumo no destino.

Assim, a Constituição Federal foi promulgadaem 1988 já desatualizada na parte que trata da estrutura tributária brasileira. Tanto é que, apenas três anos depois, falava-se em Reforma Tributária. Desde então, houvediversas propostas de ampla mudança na tributação do consumo, com previsão de modelos variados, mas todos fundados nos pilares da simplicidade, da eficiência e da transparência. Aprovaram-se algumas mudanças em nível constitucional, que associadas à profusão de normas infraconstitucionais pouco harmônicas entre si, resultaram em um sistema tributário gradualmente mais complexo, ineficiente e pouco transparente.

A par do número crescente de regras tributárias a serem observadas pelos contribuintes,aumentoua quantidade dos beneficiados com normas de exceção, como alíquotas e base de cálculo diferenciadas e isenções.Passados mais de trinta anos da promulgação da Lei Maior, o país experimentou outras reformas importantes, menos a tributária, embora tanto se tenha discutido a sua necessidade e os meios de se implementar um modelo que efetivamente contribua para o desenvolvimento do país.

Nos últimos anos, o debate sobre Reforma Tributáriase concentrou em duas iniciativas: a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 45 e a PEC nº 110, ambas de 2019 e originadas da deliberação da PEC nº 293, de 2004,[1] em Comissão Especial da Câmara dos Deputados. A PEC nº 45, de 2019, reproduz o texto de uma emenda substitutiva global[2] à PEC nº 293, de 2004, apresentada em agosto de 2018, e a PEC nº 110, de 2019, corresponde ao substitutivo[3] aprovado pela Comissão Especial em dezembro daquele ano.

Em 2023, mais uma vez, o tema se torna alvo de atenção dos Poderes Legislativo e Executivo. Esse artigo, em vez de descrever a evolução do debate sobre o sistema tributário nacional no período pós-constituinte, busca situar o leitor sobre o estágio das propostas em discussão no parlamento, uma vez que o governo federal anunciou que elas servirão de base para o novo modelo a ser apreciado no Congresso Nacional.

2. PEC nº 45, de 2019

Em 3 de abril de 2019, foi apresentada a PEC nº 45,[4] na Câmara dos Deputados. A iniciativa prevê a criação de umimposto sobre valor adicionado (IVA) nacional, denominado Imposto sobre Bens e Serviços (IBS)de base ampla e não cumulativo, que substituiria progressivamente outros cinco tributos hoje incidentes sobre o consumo: a Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins), a Contribuição para o Programa de Integração Social (PIS), o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), o Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS) e o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS). Além do IBS, a PEC nº 45, de 2019, prevê a criação de impostos seletivos, com a função de desestimular o consumo de determinados bens, serviços ou direitos.

Instituído e regulamentado por lei complementar, o IBS incidiria com uma alíquota uniforme, sem previsão de isenções, incentivos ou benefícios tributários ou financeiros. As microempresas e as empresas de pequeno porte poderiam escolher a forma de pagamento do IBS, apartado ou unificado com os demais tributos, de acordo com o Simples Nacional. A carga tributária incidente sobre os contribuintes de baixa renda poderia ser suavizada de maneira focalizada, na forma da devolução parcial do imposto.

União, Estados, Distrito Federal e Municípios exerceriam as suas competências por meio da alteração das alíquotas, que somadas comporiam a alíquota final. A distribuição da receita arrecadada observaria o princípio do destino. Um comitê gestor nacional, com representantes dos três entes federados, seria responsável basicamente por regulamentar o IBS, gerir a arrecadação centralizada do imposto e operacionalizar a distribuição da receita.

A PEC nº 45, de 2019, propõe um novo modelo de vinculaçãode receitas, com a criação de alíquotas singulares, definidas como parcela da alíquota do IBS destinadas a certas finalidades.Em outras palavras, a alíquota fixada por cada ente federativo corresponderia à soma das alíquotas singulares vinculadas às respectivas destinações hoje previstas na Constituição, com a diferença de que União, Estados, Distrito Federal, e Municípios teriam maior grau de liberdade para estabelecer a proporção de cada umadessas destinações, desde que observados os limites constitucionais previstos para as transferências intergovernamentais e para as despesas com saúde e educação.

Assim, a alíquota da União equivaleria ao conjunto das alíquotas singulares vinculadas à seguridade social, ao financiamento do programa do seguro-desemprego e do abono salarial, ao financiamento de programas de desenvolvimento econômico, ao Fundo de Participação dos Estados, ao Fundo de Participação dos Municípios, aos programas de financiamento do setor produtivo das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, à transferência aos Estados e ao Distrito Federal, na proporção das exportações de produtos industrializados, à manutenção e ao desenvolvimento do ensino, a ações e serviços públicos de saúde e à aplicação livre de vinculações.

No caso dos entes subnacionais, as alíquotas dos Estados e do Distrito Federal decorreriam das alíquotas singulares vinculadas à manutenção e ao desenvolvimento do ensino, a ações e serviços públicos de saúde, à transferência aos municípios de cada Estado, a outras destinações previstas na Constituição do Estado ou do Distrito Federal e à aplicação livre. Por sua vez, a alíquota dos municípios seria composta por alíquotas singulares vinculadas à manutenção e ao desenvolvimento do ensino, a ações e serviços públicos de saúde, a outras destinações previstas na Lei Orgânica do município e à aplicação livre.

A implementação do IBS seria gradual, com a fixação de uma alíquota de 1% no primeiro e no segundo anos, acompanhada da correspondente redução das alíquotas da Cofins, de modo a manter a mesma proporção de receita arrecadada. A partir do terceiro ano, o IBS passaria a substituir progressivamente, até o final do nono ano não apenas a Cofins e a Contribuição para o PIS, mas também o IPI, a Contribuição para o PIS, o ICMS e o ISS. É a denominada transição para os contribuintes.

Paralelamente à transição para os contribuintes, haveria a transição federativa por cinquenta anos, assim que o IBS passasse a substituir o ICMS e o ISS. Nos primeiros vinte anos desse período, parcela da receita do IBS seria transferida a Estados e Municípios de forma a compensar a perda de arrecadação com a redução das alíquotas dos tributos substituídos. Nos trinta anos seguintes, essa compensação seria paulatinamente diminuída até se alcançar a aplicação integral do princípio do destino. Além disso, durante toda a transição federativa, eventuais ganhos arrecadatórios que superassem a perda de arrecadação com o ICMS e o ISS também seriam distribuídos conforme o referido princípio.

A tramitação da PEC nº 45, de 2019, teve início como a das demaisproposições legislativas desse tipo na Câmara dos Deputados. A proposta teve a sua admissibilidade – constitucionalidade, juridicidade e técnica legislativa – aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) em 22 de maio de 2019.

Algumas semanas depois, em 10 de julho de 2019, foi instalada uma Comissão Especial para apreciação do mérito da PEC. Foram apresentadas mais de duzentas emendas e, nos meses subsequentes, foram realizadas diversas reuniões, audiências públicas e seminários regionais para amplo debate da proposta, até a instalação da “Comissão Mista Temporária destinada a consolidar o texto da Reforma Constitucional Tributária” em 19 de fevereiro de 2020, ato conjunto dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal à época.

A PEC nº 45, de 2019, não teve substitutivo na Comissão Especial, mas, após a leitura do relatório da Comissão Mista, detalhado mais adiante, foi avocada para o Plenário da Câmara dos Deputados por transcurso de prazo e, desde então, está apta para ser incluída na pauta das sessões deliberativas.

3. PEC nº 110, de 2019

Simultaneamente à tramitação da PEC nº 45, de 2019, na Câmara dos Deputados, ocorria o debate sobre a PEC nº 110, de 2019,[5] no Senado Federal. Em 9 de julho de 2019, foi protocolada a PEC nº 110, no Senado Federal, pouco mais de três meses após a apresentação da PEC nº 45, de 2019, na Câmara dos Deputados.

Assim como a PEC nº 45, de 2019, a PEC nº 110, de 2019, busca contemplar as regras inerentes a um bom IVA: base ampla, não cumulatividade, crédito integral e imediato na aquisição do ativo imobilizado como forma de incentivo ao investimento, tributação uniforme, regulamentação única, desoneração das exportações e princípio do destino.

A PEC nº 110, de 2019, prevê a criação de uma Contribuição sobre Operações com Bens e Serviços (CBS), temporária, e do IBS, estadual, instituído por lei complementar, apresentada em até 180 dias, contados da publicação da Emenda Constitucional, de iniciativa privativa de governadores, prefeitos, assembleias legislativas, câmara legislativa, câmaras de vereadores, bancadas estaduais de deputados federais ou senadores, ou comissão mista de deputados federais e senadores, instituída para esse fim, de modo a garantir a representatividade dos entes federados de todas as regiões do País.

A PEC nº 110, de 2019, também prevê a criação de impostos seletivos, conforme um rol taxativo. O novo tributo incidiria sobre petróleo, combustíveis, lubrificantes, gás natural, cigarros, energia elétrica, serviços de telecomunicações, bebidas e veículos automotores.

A transição para os contribuintes ocorreria ao longo de cinco anos. Uma quantidade maior de tributos seria substituída progressivamente: IPI, IOF, ICMS, ISS, Cide-combustíveis, Cofins, Contribuição Social do Salário-educação e Contribuição para o PIS e para o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep). Para garantir a manutenção da carga tributária, as alíquotas do IBS e do imposto seletivo seriam fixadas para compensar a arrecadação dos tributos substituídos. O detalhamento das regras de substituição da arrecadação, inclusive dos instrumentos de aferição da manutenção da carga tributária incidente sobre o consumo, que poderia ser reduzida em caso de aumento da carga relativa aos tributos sobre a renda e o patrimônio, viria em lei complementar.

É prevista a criação do Comitê Gestor da Administração Tributária Nacional, com representantes dos fiscos estaduais, distrital e municipais. As administrações tributárias dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios atuariam em conjunto na regulamentação, na arrecadação, na fiscalização e na cobrança do IBS. A organização e o funcionamento integrados das administrações tributárias e o estabelecimento de regras unificadas para o processo administrativo tributário também seriam normatizadas em lei complementar.

A receita arrecadada com o imposto seletivo e o IBS seria depositada em uma conta unificada e distribuída de acordo com a participação de cada ente na arrecadação, observados o modelo de repartição das receitas tributárias e as vinculações constitucionais hoje existentes. Assim, estariam garantidos os recursos para o financiamento da seguridade social, da educação básica pública, do programa do seguro-desemprego e abono salarial, dos programas de desenvolvimento econômico, por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), e do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). Os entes federados poderiam ainda constituir fundo para reduzir a disparidade da receita per capita entre os Estados e entre os Municípios, cujos recursos deveriam ser destinados a investimentos em infraestrutura.

A iniciativa prevê quinze anos de transição federativa, em que os recursos arrecadados seriam distribuídos, nos últimos nove anos, segundo um coeficiente reduzido gradualmente até a substituição completa do modelo em vigor pela tributação no destino. Portanto, no primeiro ano, a CBS seria instituída com uma alíquota teste de 1%, que substituiria a arrecadação da Cofins no mesmo montante. Entre o segundo e o quinto anos, seria mantida a participação de cada ente na receita. A partir do sexto ano e até o final da transição federativa, a distribuição da receita arrecadada gradualmente passaria a privilegiar o princípio do destino, ao ser atribuída à localidade do consumo do bem ou do serviço.

Não há previsão de regra especial para Zona Franca de Manaus, apenas de regime especial de tributação para alimentos, medicamentos, transporte público coletivo, bens do ativo imobilizado, saneamento básico e educação. Além disso, os critérios e a forma de devolução do IBS para as famílias de baixa renda viriam definidos em lei complementar.

A PEC nº 110, de 2019, alterou ainda algumas regras relativas ao imposto sobre transmissão causa mortis e doação (ITCD), ao imposto sobre propriedade de veículos automotores (IPVA), ao imposto de propriedade predial e territorial urbana (IPTU) e ao imposto sobre transmissão “inter vivos” (ITBI), que acabaram sendo, total ou parcialmente, aproveitadas no substitutivo da Comissão Mista. No ITCD, haveria compartilhamento da competência tributária entre União e Estados ou Distrito Federal; no IPVA, ampliação da base de incidência, hoje restrita aos veículos terrestres, para incluir os aquáticos e os aéreos; e no IPTU e no ITBI, fixação de alíquotas mínimas, limites para concessão de benefícios fiscais, reajustes mínimos da base de cálculo, nas hipóteses de omissão do legislador, com arrecadação, fiscalização e cobrança pela União, mediante convênio.

Atualmente a PEC nº 110, de 2019, está pronta para deliberação da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado. Recebeu até o momento mais de 250 emendas. Obteve o primeiro parecer em 18 de setembro de 2019 e o relatório mais recente data de 16 de março de 2022. Nesse interregno, houve alterações no texto apresentado, como resultado do debate sobre a tributação do consumo no Parlamento,o qual ganhou intensidade com a instalação da “Comissão Mista Temporária destinada a consolidar o texto da Reforma Constitucional Tributária”.

4. Comissão Mista da Reforma Tributária

No final de 2019 e no início de 2020, meses que antecederam a eclosão da pandemia da Covid-19, o debate sobre a Reforma Tributária se aprofundou tanto na Câmara dos Deputados com a PEC nº 45, de 2019, como no Senado Federal com a PEC nº 110, também de 2019. Vislumbrou-se que a criação da Comissão Mista poderia conjugar esforços das duas Casas para acelerar a aprovação de um novo modelo de tributação do consumo.

Assim, a Comissão Mista da Reforma Tributária foi instalada em 4 de março de 2020, composta por Deputados e Senadores. Pouco mais de duas semanas de sua instalação, teve as suas atividades suspensas em função da pandemia de Covid-19, entre 20 de março a 31 de julho daquele ano. Retomados os trabalhos, realizouonze audiências públicas, nas quais se debateu a Reforma Tributária, sob perspectivas variadas, a partir das contribuições de especialistas em sistema tributário europeu, dos governos federal, estaduais e municipais, e do setor privado. Em 12 de maio de 2021, foi apresentado o relatório final, com substitutivo que buscou consubstanciar as mudanças previstas na PEC nº 45 e na PEC nº 110, ambas de 2019, além de incorporar sugestões de aperfeiçoamento apresentadaspontualmente até então.[6]

Uma demanda recorrente era a redução do prazo para implementação total da nova forma de tributar o consumo, de modo a garantir a máxima segurança no período de transição. Em vista disso, o substitutivo da Comissão Mista estabeleceu outro prazo e modelo para substituição dos cinco tributos sobre o consumo – Cofins, Contribuição para o PIS, IPI, ICMS e ISS – pelo IBS.

A transição para os contribuintes ocorreria em duas fases. Na primeira delas, o IBS substituiria completamente a Cofins e a Contribuição para o PIS. Com a medida, a transição dos tributos federais promoveria uma simplificação imediata do sistema tributário nacional, que seria complementada pela segunda fase, na qualICMS e ISS seriam gradualmente substituídos nos três anos seguintes. Desse modo, no início do sexto ano, a Cofins, a Contribuição para o PIS, o ICMS e o ISS estariam todos extintos. O IPI também estaria extinto ao final do período da transição para os contribuintes, por outra sistemática. Viria sendo substituído pelos impostos seletivos federais incidentes sobre a importação, a produção ou a comercialização de cigarros, bebidas e outros produtos considerados prejudiciais à saúde e ao meio ambiente.

Por sua vez, a transição federativa permaneceria por cinquenta anos, dividida em dois momentos. Após a fase federal, no ano em que iniciasse a substituição do ICMS e do ISS pelo IBS, parcela do produto arrecadado com a aplicação das alíquotas estadual e municipal seria retidapara Estados e Municípios segundo uma alíquota de referência, cujo percentual seria calculado pelo Tribunal de Contas da União de forma a compensar a redução da receita dos impostos substituídos. Tal parcela seria distribuída,a cada ano, entre os entes subnacionais proporcionalmente às receitas observadas nos cinco anos anteriores à promulgação da nova regra constitucional. A parcela não retida aumentaria progressivamente e passaria a refletir, juntamente com o ajuste pela diferença entre a alíquota fixada pelo ente e a de referência, o modelo de tributação no destino, com a arrecadação convergindo para a localidade do consumidor final.

Destaque-se ainda que o substitutivo da Comissão Mista, em vez de reproduzir o modelo de alíquotas singulares para a distribuição da receita do IBS, busca adaptar o modelo de transição federativa à forma como a Constituição de 1988 trata as destinações de recursos para os fundos constitucionais e para determinadas áreas, como saúde e educação.

Em relação à gestão e à administração do IBS, lei complementar regularia a atuação integrada dos fiscos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Na fase federal, essas competências seriam exercidaspelo fisco federal. Quando iniciasse a substituição do ICMS e do ISS pelo IBS, efetivamente ocorreriam a gestão e a administração compartilhadas do novo imposto, com participação de todas as esferas federativas.

Além de regulamentar o IBS e a atuação integradados fiscos federal, estaduais, distrital e municipais, lei complementar estabeleceria tratamento tributário específico para combustíveis e lubrificantes, serviços financeiros, operações com bens imóveis e operações contratadas pela administração pública direta, em virtude das peculiaridades dessas cadeias.A norma poderia preverainda regimes especiais de tributação pelo IBS para atividades agropecuárias, agroindustriais, pesqueiras e florestais, serviços de educação e saúde, transporte coletivo e rodoviário de cargas e entidades beneficentes de assistência social. Assim, seria possível adaptar a incidência no imposto a situações específicas, mas isso em um período limitado de doze anos, na forma de regras especiais de creditamento e de alíquotas, aplicáveis de maneira uniforme em todas as esferas federativas. Essas regras, juntamente com a transição para os contribuintes e a transição federativa, permitiriam a adaptação gradual dos diversos setores ao novo modelo, como uma espécie de transição setorial.

Ainda como parte da transição para o novo modelo de tributação do consumo, o texto apresentado na Comissão Mista possibilita que lei complementar estabeleça tratamento tributário diferenciado à Zona Franca de Manaus (ZFM), inclusive mediante alterações nas regras de creditamento ou nas alíquotas do IBS.

O substitutivo também prevê mecanismo para suavizar a carga tributária suportada pelos contribuintes de baixa renda. A cobrança de um adicional de alíquota do IBS viabilizaria a aplicação da receita arrecadada com esse adicional em programas de devolução do imposto.

Por fim, cabe ressaltar que, enquanto o texto original da PEC nº 45, de 2019, tratou eminentemente da tributação do consumo, o substitutivo da Comissão Mista buscou incorporar medidas para ampliar a progressividade do sistema tributário nacional, com base na PEC nº 110, de 2019, que tramitava no Senado Federal, e nas diversas emendas apresentadas na Comissão Especial da Câmara dos Deputados. Além de buscar uma tributação do consumo mais eficiente, o substitutivo incluiu medidas voltadas à preservação do meio ambiente.

5. Substitutivo da PEC nº 110, de 2019

Após a finalização dos trabalhos da Comissão Mista da Reforma Tributária, teve início nova rodada de discussões para apreciação da PEC nº 110, de 2019, no Senado Federal. Alguns dispositivos constantes do substitutivo apresentado na Comissão Mista foram aproveitados na versão mais recente do substitutivo[7] da PEC nº 110, de 2019, apresentado em março de 2022, tal como a concessão de incentivos regionais considerados critérios de conservação do meio ambiente.

Previsto o modelo de IVA dual, com a CBS na competência da União e o IBS na competência dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, o substitutivo da PEC nº 110, de 2019, trata em maiores detalhes que os textos anteriores da forma como Estados, Distrito Federal e Municípios exerceriam as competências administrativas relativas ao IBS, agora denominado Imposto sobre Operações com Bens e Prestações de Serviços.

Para a gestão do novo imposto, seria criado o Conselho Federativo do IBS, entidade pública de regime especial, dotada de independência técnica, administrativa, orçamentária e financeira, que seria financiada com parcela do produto da arrecadação do imposto destinado a cada ente federativo. A instância máxima de deliberação e a autoridade orçamentária do Conselho seria aassembleia geral, com votos distribuídos de forma paritária entre o conjunto dos Estados e o conjunto dos Municípios. Tal assembleia exerceria as suas competências com auxílio dos Tribunais e Conselhos de Contas dos Municípios no controle externo e atuaria de modo coordenado com as administrações tributárias e as procuradorias dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

O Conselho Federativo do IBS passaria a integrar o rol de titulares da competência privativa para apresentação de projeto de lei complementar sobre o IBS. A espécie normativa definiria a forma de representação dos entes subnacionais na assembleia geral, a estrutura e a governança do Conselho, e os critérios de distribuição dos votos. O seu corpo funcional seria composto por servidores em exercício na entidade e servidores de carreira da administração tributária dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, que estariam sujeitos ao limite de remuneração aplicável aos servidores da União.

O texto final não especifica os produtos que poderiam ser gravados pelos impostos seletivos, federais. Estes incidiriam segundo uma lista aberta, sobre a produção, a importação ou a comercialização de bens e serviços prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. O prazo e as condições para extinção do IPI seriam estabelecidos na lei que instituísse os impostos seletivos.

Permaneceria o modelo atual de distribuição das receitas, com a inclusão dos impostos seletivos no fundo de participação dos Estados (FPE) e no fundo de participação dos municípios (FPM).

O substitutivo prevê ainda alguns regimes diferenciados de tributação pelo IBS. Combustíveis, lubrificantes, produtos dos fumo, serviços financeiros e operações com bens imóveis estariam submetidos a regras específicas. Determinados adquirentes de bens e serviços poderiam receber a devolução total ou parcial do imposto, por meio da concessão de isenção ou de alíquotas reduzidas. As operações e as prestações contratadas pela administração pública direta dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, autarquias e fundações por elas mantidas, consistiriam em hipóteses de não incidência do imposto ou a totalidade do produto da arrecadação do imposto seria destinada ao ente federativo adquirente ou contratante. Além disso, a ZFM receberia tratamento tributário favorecido, inclusive mediante alterações nas alíquotas ou nas regras de creditamento, e parte do IBS arrecadado com operações e prestações interestaduais originados dela seria destinado ao Estado do Amazonas. As zonas de processamento de exportações também poderiam receber tratamento específico.

A transição para os contribuintes ocorreria em seis anos. No primeiro e no segundo anos da promulgação da PEC, o IBS seria cobrado a uma alíquota de 1% e a receita arrecadada seria compensada com o montante devido a título de ICMS e ISS. Nos quatro anos seguintes, haveria a substituição gradual dos impostos estadual e municipal, com redução proporcional nos respectivos benefícios ou incentivos fiscais ou financeiros.A transição federativa proposta se aproxima do modelo trazido pelo substitutivo da Comissão Mista: nos primeiros vinte anos, com a garantia do valor real da receita com ICMS e ISS para os entes subnacionais e o aumento real da receita distribuído pelo princípio do destino; nos vinte anos subsequentes, haveria a redução progressiva da parcela que repõe o valor real da receita, até sua extinção. Adicionalmente, foi previsto mecanismo de compensação para os entes com maior perda na participação no total da receita, custeado por 3% da parcela do IBS distribuída pelo destino.

Lei complementar poderia instituir ainda o Fundo de Desenvolvimento Regional (FDR), financiado pelo IBS, com percentual do produto arrecadado, entre 3% e 5%, que pode variar em função do aumento real da arrecadação. Os recursos do FDRseriam alocados no fomento a atividades produtivas de elevado potencial de geração de emprego e renda, estudos, projetos e obras de infraestrutura, inovação e difusão de tecnologias e conservação do meio ambiente.Seriam garantidos aos Municípios 30% dos recursos eseriam entregues 10%, no mínimo,aos Estados exportadores de produtos primários. Até 2032, a prioridade na alocação seria para a manutenção da competitividade das empresas com benefícios de ICMS reconhecidos nos termos da Lei Complementar nº 160, de 2017.Por fim, no que se refere aos impostos sobre o patrimônio, permanece a previsão de base ampla para o IPVA, para incluir os veículos aquáticos e os aéreos. Além disso, o IPTU teria a base de cálculo atualizada, pelo menos, uma vez a cada quatro anos.

6. Considerações finais

Como se depreende da análise das sucessivas propostas de reforma da tributação do consumo nos últimos anos, o debate de cada uma delas propiciou o amadurecimento de diversos aspectos que precisam ser enfrentados na mudança de modelo, em especial a transição para os contribuintes, a transição federativa, a transição setorial e a administração do novo tributo. Nos textos originais e nos substitutivos apresentados, é possível identificar a influência mútua das discussões na Câmara dos Deputados e no Senado Federal.

Assim, o texto original da PEC nº 45, de 2019, traz dispositivos inspirados no substitutivo da PEC nº 293, de 2004, aprovado na Comissão Especial da Câmara dos Deputados em 2018, que, por sua vez, é reproduzido na versão inicial da PEC nº 110, de 2019. O substitutivo apresentado na Comissão Mista da Reforma Tributáriaincorporou dispositivos da PEC nº 110, de 2019, cujaversão mais recente reproduz dispositivos constantes do substitutivo da referida Comissão.

A apresentação de diferentes modelos para implementação de um IVA moderno no país em muito contribuiu para o estágio em que se encontra o debate sobre a Reforma Tributária. A intensidade e a profundidade das discussões nas duas Casas do Congresso Nacional se traduzem na convergência das contribuições.Esta é uma indicação clara do amadurecimento do debate: cada proposta não parte do zero, mas evidencia a confluência de ideias. Naturalmente o texto definitivo a ser votado pelo parlamento deve seguir a mesma linha, com a combinação das propostas descritas neste artigo e a incorporação de elementos pontuais, necessários para a composição política qualificada exigida por uma reforma constitucional dessa magnitude.Transcorridos mais de trinta anos da promulgação da Constituição Federal, agora o país reúne condições para avançar na Reforma Tributária, com a mobilização de parlamentares, do governo federal, de especialistas dos setores público e privado, e acadêmicos.

Resistências localizadas são previstas e inevitáveis, mas é importante destacar o progresso significativo do tema nos últimos anos. Para transpor essas resistências, é preciso considerar, além do impacto positivo na taxa de crescimento potencial da economia brasileira, o efeito distributivo da Reforma Tributária, em duas dimensões, social e regional. Resta cada vez mais claro que as distorções na tributação do consumo podem ser um dos entraves a serem atacados para se alcançar um sistema tributáriomais justo também, com uma maior focalização das políticas de benefícios, uma vez que o fim da guerra fiscal repercute positivamente na capacidade financeira dos entes, o que abre espaço para a ampliação de serviços públicos básicos.

Uma das principais críticas à Reforma Tributária consiste na percepção de que os entes federados poderiam perder autonomia para exercer as suas competências tributárias. No entanto, hoje se verifica a concentração da arrecadação própria decorrente da tributação do ICMS e do ISS em algumas regiões e localidades, o que impede a efetiva autonomia de vários Estados e Municípios sem condições de prover serviços públicos de qualidadepara financiar as políticas públicas locais.

Essa pseudo-autonomia federativa reforça e aprofunda a dependência das transferências governamentais, uma vez que a tributação do consumo no país não eflui da localidade do consumo do bem ou do serviço. Ao fim e ao cabo, a concentração da arrecadação própria decorrente da tributação do consumo em algumas regiões deriva das grandes diferenças entre as suas economias. Isso agrava não apenas a desigualdade regional, mas também a social, uma vez que torna limitada a possibilidade de inserção de um número maior de cidadãos em economias locais mais dinâmicas e em condições de oferecer serviços públicos melhores,que se tornariam mais factíveis simplesmente pelo efeito da descentralização de recursos.

* Lucíola Calderari da Silveira e Palos é bacharel em ciências econômicas pela Universidade de Brasília (UnB) e especialista em Direito e Política Tributária pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/Brasília). Consultora Legislativa da Câmara dos Deputados desde 2003, atuou como coordenadora da área de Direito Tributário e Tributação e no assessoramento à PEC nº 45, de 2019, tanto na Comissão Especial da Câmara dos Deputados como na Comissão Mista da Reforma Tributária, entre 2019 e 2021. Foi assessora especial da Diretoria-Geral da Câmara dos Deputados e atualmente ocupa a função de diretora-geral adjunta do órgão.

A autora agradece as valiosas contribuições de Aurélio Guimarães Cruvinel e Palos e de Murilo Rodrigues da Cunha Soares.


[1]https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=259094

[2]https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1680893&filename=EMC+7/2018+PEC29304+%3D%3E+PEC+293/2004

[3]https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1700223&filename=SBT-A+1+PEC29304+%3D%3E+PEC+293/2004

[4]https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2196833

[5]https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/137699

[6]https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2334

[7]https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9090455&ts=1675310528137&disposition=inline&_gl=1*7yuxdq*_ga*NDE5MTU3MDc1LjE2Njc1NTY1MDI.*_ga_CW3ZH25XMK*MTY4MjE5NDExNC4yLjAuMTY4MjE5NDExNC4wLjAuMA..