Impacto da Desregulamentação da Franquia de Bagagem no Brasil
Por Mário Sérgio Rocha Gordilho Jr* e Vinícius Medeiros de Lima**
1. Introdução
A função da regulação econômica é promover o interesse público, viabilizando os investimentos privados e garantindo o bem-estar dos consumidores por meio da disponibilidade e qualidade dos serviços,em condições adequadas de preço. Para isso, é necessário incentivar a livre concorrência. Ela catalisa a competitividade, estimulando as empresas a buscarem o melhor desempenho econômico e garantindo aos consumidores preços mais baixos, variedade e qualidade. Quando o mercado falha em garantir tais benefícios, é necessário a intervenção do Estado, de maneira subsidiária e excepcional, como consagrado na Lei nº 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica), que em seu artigo 2º, III, inclusive, estabeleceu essa ideia como princípio orientador da ação estatal.
A regulação econômica é um mecanismo para corrigir falhas de mercado, a fim de emular as condições de concorrência e, assim, propiciar aos consumidores produtos e serviços de qualidade a preços acessíveis. No entanto, o Estado deve ter cuidado ao implementar regulações econômicas, a fim de evitar a ocorrência de “falhas de governo”, pois elas podem resultar em efeitos negativos para o mercado e para a sociedade em geral. Portanto, em determinadas situações, como a que veremos a seguir, a desregulamentação de mercados apresenta-se como uma melhor solução para aumentar o bem-estar econômico dos consumidores e alocar recursos de maneira mais eficiente, atendendo de maneira mais efetiva o interesse público.
2. Características do Mercado Brasileiro de Aviação Civil
Para o setor de aviação comercial de passageiros no Brasil, que conta com três players principais, formando um oligopólio concentrado, embora marcado por intensa rivalidade entre os três, é importante que se mantenham condições de contestabilidade a esse mercado, com a redução das barreiras à entrada e à saída, possibilitando tanto estratégias do tipo “hit and run”, notadamente em rotas específicas por outros concorrentes já estabelecidos no país, quanto a atratividade de novas empresas ao setor.
A teoria da contestabilidade reforça a importância da cobrança de franquia de bagagem para a manutenção da pressão competitiva no mercado brasileiro de aviação civil. O modelo de negócio das empresas “low cost” se baseia na diferenciação de produto e de preço, permitindo que os consumidores escolham serviços adicionais que desejam adquirir. A determinação da franquia obrigatória, ao contrário do senso comum, representa um custo para as empresas, ao incentivar os passageiros a viajarem com um peso extra (risco moral), gerando aumentos nos custos de combustível e, ainda, impactando negativamente a possibilidade de rentabilização do porão das aeronaves com transporte de cargas. Com a desregulamentação, o espaço no porão da aeronave é alocado de forma mais eficiente e isso possibilita o transporte de cargas em rotas rentáveis, melhorando a conectividade da malha.
A desregulamentação da cobrança da franquia de bagagem despachada está inserida em um cenário de gerenciamento de receitas. Por meio desta prática, as companhias aéreas buscam otimizar a ocupação de suas aeronaves, alcançar rentabilidade e oferecer serviços que atendam às necessidades dos passageiros. A discriminação de preços e a diferenciação dos produtos são as práticas mais perceptíveis aos consumidores, pois é possível, ao realizar uma busca de passagens, ter diversas opções com preços e condições de aplicação diferentes. Essas estratégias geralmente beneficiam os consumidores, que se veem diante de diversas possibilidades para aquisição de passagens aéreas, maximizando o seu bem-estar econômico.
O gerenciamento de receita se baseia em três fundamentos: discriminação de preços, diferenciação de produtos e sistema de controle de estoque de assentos. A desregulamentação da cobrança da franquia de bagagem despachada configura-se como mecanismo de discriminação de produtos, onde tarifas mais baratas são associadas a regras tarifárias mais rígidas, enquanto tarifas mais elevadas são associadas a regras mais flexíveis. Esses conjuntos de regras diferentes geram produtos diferentes com preços diferentes, atingindo públicos distintos.
Neste ponto, é importante ressaltar que tanto a discriminação de produtos quanto a de preços, esta consequência direta daquela, possuem o condão de gerar maior bem-estar econômico aos consumidores, pois estes possuem maior opção de escolha, tanto em termos de serviços a serem oferecidos pelas companhias aéreas quanto em termos de preços, desde os mais acessíveis, que geram maior inclusão social a esses serviços, até os mais sofisticados, que entregam serviços mais completos, em geral voltados a um público disposto a adquirir um serviço diferenciado a uma tarifa mais alta. Conforme Hovenkamp (1999), a maior parte das estratégias de discriminação de preços não é ilegal e geralmente beneficia, e não prejudica, os consumidores no agregado.
Conforme destacado por Viscusi et al (2005), a perda do consumidor em casos de imposição de produtos não essenciais na prestação do serviço aéreo está justamente em não ter a opção de se consumir um produto mais simples por um preço menor. Seria um equilíbrio pior para empresas aéreas e passageiros.
A desvinculação da franquia de bagagem da tarifa aérea permite que as empresas aéreas atendam a um contingente de clientes que antes não eram atendidos, além de permitir que os passageiros tenham o direito de escolha sobre a quantidade de bagagem que desejam despachar. Isso possibilita a oferta de tarifas mais baratas para esse nicho de mercado, aumentando a inclusão social no setor. Dessa forma, o usuário passa a ter a possibilidade de escolher o nível de serviço que melhor atende às suas necessidades, de forma transparente, exercendo a sua própria ponderação em relação ao valor que está disposto a pagar, reforçando o papel do consumidor na construção das relações de consumo.
Vale destacar também que as receitas auferidas com bilhetes mais caros e com serviços comercializados à parte (como franquia de bagagem, marcação de assentos, venda de alimentos etc.) contribuem para uma maior viabilidade econômica do voo. Essa viabilidade permite a oferta de tarifas mais baratas (com vistas a uma maior taxa de ocupação), gerando inclusão social no setor e diversos benefícios consequentes.
A viabilidade econômica de uma rota é essencial para a sua manutenção. Se uma companhia interromper seus serviços porque a rota se tornou inviável, os consumidores poderão não ter mais atendimento ou, na melhor das hipóteses, ter uma oferta mais restrita, se outras companhias atenderem a rota. Com a redução da oferta, os preços das passagens podem aumentar caso a demanda permaneça inalterada.
3. Estudos Recentes sobre o Impacto da Desregulamentação da Franquia de Bagagem nas Tarifas
A desregulamentação da cobrança da franquia de bagagem despachada tem o potencial de aumentar a acessibilidade aos serviçosaéreos, permitindo a entrada no mercado de consumidores que antes eram impedidos pela estrutura de preços. O aumento da capacidade de diferenciação de produto pode ser verificado tanto pela análise qualitativa, com oferecimento de produtos baseados na desregulamentação em tela pelas empresas aéreas, quanto de forma quantitativa, com esperada redução das tarifas praticadas nos percentis mais baixos, e aumento das tarifas praticadas nos percentis mais altos.
O impacto da desregulamentação da tarifa de bagagem sobre a tarifa média praticada tem sido objeto de diversos estudos acadêmicos, como o de Bruno Resende (EPGE/FGV/RJ), que encontrou redução média de R$ 14,85 nas tarifas,eo de Elísio Freitas (IDP/DF), que apontou na mesma direção, com redução entre R$ 15 e R$ 56 nas tarifas médias cobradas pelas companhias, além da redução no peso média das bagagens despachadas.Em nível internacional, o estudo de Brueckner e seus coautores, com dados do Departamento de Transportes dos EUA em um modelo econométrico, demonstrou uma redução de 3% nas tarifas aéreas em decorrência da adoção da tarifa de franquia de bagagem despachada, com elevação das tarifascobradas de consumidor que despacha bagagem em comparação com o período anterior, sem cobrança de despacho de bagagem.Por fim, estudo realizado pela ANAC em 2020, utilizando modelo econométrico entre jan/16 e fev/19, demonstrou uma redução relativa nos preços menores (representados pelos percentis 5% e 10% das tarifas) e um aumento relativo nos preços maiores (representados pelos percentis 90% e 95% das tarifas) a partir de outubro de 2017, considerando os bilhetes vendidos entre janeiro de 2016 e fevereiro de 2019 e alcançadospela Resolução ANAC 140/2010. Tal redução e aumento teriam sido, em média, da ordem de R$ 20 e R$ 50, respectivamente.
4. Breve Análise Estatística sobre o Impacto da Desregulamentação da Franquia de Bagagens no Mercado Brasileiro de Aviação Civil
Inicialmente, destaque-se que as variações (redução ou aumento) nos preços, apresentadas nas conclusões dos estudos aqui citados, podem não ser percebidas em termos absolutos, considerando que outros fatores contribuem para a sua formação, tal como a demanda, o crescimento vertiginoso do custo do querosene de aviação (QAV) desde 2020, a depreciação cambial pela qual passou o real nos últimos anos, dentre outros. Ademais, é importante ressaltar que a diminuição nas tarifas aéreas em geral não foi o motivador da regulação econômica representada pela adoção da Resolução ANAC 400/2016, como pode-se verificar nos termos da Audiência Pública nº 3/2016, o que não impede que seja uma possível consequência. O objetivo primordial desse dispositivo foi, dentro do prisma de liberdade tarifária e de oferta, reforçar o nível de contestabilidade do mercado brasileiro, respeitando os diversos modelos de negócio das companhias aéreas, evitando-se o subsídio cruzado antes existente, que penalizava justamente o consumidor mais sensível a preço, pois todos pagavam pelo serviço de franquia de bagagens, embutido nas tarifas.
Este artigo visa reforçar o caráter pró-competitivo, e pró-consumidor, da desregulamentação da franquia de bagagem, fato já demonstrado pelos trabalhos aqui citados. Optou-se por uma análise estatística, haja vista que a pandemia de Covid-19 afetou severamente o setor, gerando quebra na série histórica que impossibilita uma modelagem robusta a partir de março/2020.
Utilizou-se o coeficiente de variaçãoreal populacional das tarifas, com a sua distribuição por faixas de preço e posterior divisão entre percentis, adotando-se, aqui, os percentis de 5% (tarifas mais baratas) e 95% (tarifas mais caras).
Para suavização utilizou-se o modelo de regressão local (LOESS), método não paramétrico que estima curvas e superfícies através de suavização em uma espécie de média ponderada dos pontos que compõem a vizinhança do ponto de interesse.
Na breve análise que segue, serão avaliadas duas hipóteses:
- Houve aumento da acessibilidade ao setor?
- Verifica-se aumento da capacidade de diferenciação de produto?
Para cada percentil, analisou-se o comportamento tanto do coeficiente de variação quanto da razão do preço médio do percentil e da população como um todo (todas as passagens comercializadas). A partir daí, fez-se análise comparada entre o período de outubro de 2017 – quando todas as empresas passaram a praticar a desregulamentação da cobrança da franquia de bagagem despachada – e o período de fevereiro de 2020, imediatamente anterior ao início da Pandemia.
4.1. Preços Menores – Percentil5%
Em uma análise das tarifas mais baratas (5%) em comparação com a média geral praticada no mercado, nota-se uma redução do preço em relação à média a partir da desregulamentação, em outubro de 2017 (área roxa do gráfico). No entanto, há quebra a partir de março/2020 com a Pandemia de COVID-19, o que prejudica a avaliação prévia.
4.2 Preços Maiores – Percentil 95%
Já nas tarifas mais caras (5% mais caras – Percentil 95%), houve um aumento da razão do preço do percentil em relação à média (volatilidade dos pontos na área roxa do gráfico), indicando maior diferenciação de produtos (por exemplo, com oferta de franquias melhores de bagagem, refletidas na tarifa final cobrada).
5. Conclusão
É importante salientar, mais uma vez, que este estudo se referea uma análise de estatística descritiva. Qualquer exercício de inferência estatística carece de mais dados para o tratamento da quebra estatística dada pela Pandemia. Contudo, é importante destacar que os resultados alcançados com esta análise vão ao encontro dos estudos aqui citados, inclusive o realizado em 2020 pela ANAC, ou seja, as tarifas mais baratas tiveram redução no período, elevando-se a acessibilidade ao mercado, enquanto as mais altas tiveram aumento, eliminando-se, portanto, as ineficiências advindas do subsídio cruzado que havia antes da entrada em vigor da Resolução ANAC nº 400/2016.
A desregulamentação da franquia de bagagem despachada, permitida pela Resolução ANAC nº 400/2016, tem se mostrado efetiva, aumentando o alcance dos serviços aéreos aos consumidores brasileiros, proporcionando maior benefício aos consumidores que possuem maior restrição orçamentária, ao mesmo tempo em que constrói uma relação de consumo mais transparente e justa nesse mercado. Com isso, cessa-se a prática do empacotamento dos serviços de transporte de passageiros e transporte de bagagem, que gerava um subsídio deletério ao bem-estar do consumidor.
A desregulamentação das tarifas de bagagens despachadas no Brasil trouxe, ainda, maior contestabilidade ao mercado, ao alinhar-se com as melhores práticas internacionais desse mercado, facilitando a potencial entrada de modelos de prestação de serviços de transporte aéreo de passageiros do tipo “low cost”. Além disso, a medida também mitigou um risco moral que gerava custos extras para as empresas aéreas e, consequentemente, para os consumidores finais. O alinhamento de incentivos estabelecido pela desregulamentação tem proporcionado maior bem-estar aos consumidores e uma alocação de recursos mais eficiente para o setor de transporte aéreo, alcançando os objetivos propostos inicialmente pela ANAC.
* Mário Sérgio Rocha Gordilho Jr é eEsspecialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, atualmente exercendo o cargo de gerente técnico de análise econômica da ANAC.
** Vinícius Medeiros de Lima é especialista em regulação de aviação civil da ANAC.