Uma nova âncora fiscal para o Brasil
Por Bruno Magalhães D’Abadia*
Ebule a discussão sobre a principal regra fiscal brasileira, o chamado Teto de Gastos, e seu possível abandono. Instituído pela Emenda Constitucional nº 95/2016, o Novo Regime Fiscal(NRF) foi aprovado em decorrência do rápido crescimento da dívida pública federal a partir de 2013, ameaçando a sustentabilidade desta dívida e colocando em xeque a solvência do país, bem como sua capacidade de manter a inflação sob controle.
À época da sua discussão, a então PEC 241/2016 contou com apaixonados discursos totalmente favoráveis e totalmente contrários, o que afastou a possibilidade de se discutir premissas mais sensíveis da proposição, bem como sua aptidão para resolver os problemas não endereçados pelas regras anteriores. E este último ponto merece destaque.
Não faltaram ao Brasil regras fiscais ao longo das últimas décadas. Algumas mais rigidamente obedecidas, outras praticamente elementos figurativos. No entanto, desde a Constituição de 1988 o cenário foi se cristalizando. De pronto o texto constitucional trouxe a chamada Regra de Ouro do orçamento, a qual visa impedir que o ente público contraia dívidas para o pagamento de despesas correntes. Para tanto, vedou a realização de operações de crédito em volume maior do que o volume total das despesas de capital, salvo condição excepcional. Embora seja de fato uma regra muito salutar, salvo em raríssimos exercícios, ela nunca foi restrição fiscal efetiva, tampouco tem a habilidade de garantir trajetória sustentável da dívida pública.
Na sequência, e no contexto do tratamento das causas que implicaram na hiperinflação brasileira, cresceu sobremaneira a preocupação com a política fiscal nacional. Para além de várias medidas de saneamento dos micro aspectos de geração do gasto público, se mostrou indispensável uma regra fiscal moderna que norteasse este caminho. Desta necessidade, nasceu a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) em 2001. Em que pese sua eficácia sobre Estados e Municípios ainda poder ser questionada, ou ao menos relativizada, no nível federal a regra se mostrou eficaz e auxiliou no processo contínuo de redução, a partir de 2002, da razão dívida/PIB.
Pautada na necessidade de se cumprir uma meta de resultado fiscal, bem como na disciplina para a criação ou expansão das despesas com pessoal, a LRF obteve sucesso até 2010, muito em decorrência de um ciclo econômico mundial positivo. No entanto, metas de resultado fiscal são regras fiscais pró-cíclicas, ou seja, tendem a reforçar os ciclos econômicos de curto prazo de expansão e contração do PIB em torno do seu patamar chamado de PIB potencial. A partir do momento em que houve desaceleração da economia mundial, e mais ainda da economia nacional, as regras da LRF ficaram incompatíveis com a crescente demanda por atuação estatal na economia.
Visando garantir a possibilidade de atuar fiscalmente sobre a demanda agregada, tentando manter o seu nível e por consequência o nível de emprego no País, ano após ano desde 2011, o governo federal alterou as metas de resultados fiscais, inseridas em anexos da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), a fim de acomodar mais gastos ou de regularizar frustrações de receitas públicas. O primeiro e maior efeito desta prática, mesmo que legalmente prevista, é o descrédito da âncora fiscal. E o descrédito desta referência gera muitos custos ao governo, uma vez que aumenta sobremaneira o custo da dívida pública, medido por meio da chamada “taxa implícita”, a qual se afastou fortemente da taxa básica de juros da economia, a SELIC, em decorrência da percepção de que emprestar para o governo está sujeito a um risco maior de inadimplência.
Em face deste cenário, e da forte deterioração das expectativas econômicas, em 2016, a equipe do então novo governo buscou retomar a fé na sustentabilidade da política fiscal com a criação do NRF, vulgo Teto de Gastos. Mas o remédio ultrapassou a dose recomendada. Se por um lado, a regra do teto de gastos é anticíclica, pois aumenta os superávits nos ciclos positivos, e permite déficits nos ciclos negativos, ela não está atrelada à sustentabilidade da dívida pública, tampouco possui mecanismos razoáveis de flexibilização.
Em que pese o teto de gastos ter sim contribuído para a redução da razão Dívida/PIB desde 2019, esse fenômeno decorreu basicamente do fato de que a receita pública cresceu a taxas mais elevadas do que a despesa pública. Caso o fenômeno tivesse sido o oposto, o endividamento teria sido crescente, mesmo com a regra em pleno vigor. Ou seja, a regra desconsidera a receita pública, logo desconsidera a dívida pública.
Outro ponto que merece destaque é a qualidade do ajuste realizado. Como trata das despesas primárias de forma indiscriminada, não separando obrigatórias de discricionárias, ou despesas correntes de despesas de capital, o NRF não ofereceu ferramentas e incentivos suficientes para um ajuste fiscal economicamente viável. Pelo contrário, houve achatamento do já baixo volume de investimentos públicos, os quais devem ter contabilidade final de 2022 em cerca de 1,7% do PIB, abaixo do mínimo de 2,1% considerados necessários para simplesmente repor a depreciação do capital físico de infraestrutura instalado no País.
Por fim, a própria duração do Regime, de 20 anos, com revisão após o décimo exercício, somada à imprecisa e volátil regra de créditos extraordinários tida como exceção permitida, nos indicam que o país necessita de arcabouço fiscal mais moderno e economicamente mais inteligente, embora reconheça-se o papel que o teto de gastos cumpriu ao tornar público o debate sobre as restrições orçamentárias e fiscais, e de como o Estado Brasileiro precisa se planejar melhor e ser mais eficiente no processo de alocação de recursos públicos, os quais ainda contribuem mais para a desigualdade de renda do que o contrário, pois ainda privilegia pequenos grupos de pressão.
Nesse sentido, é imprescindível reforçar e lutar para que a oportunidade de se revisar a atual âncora fiscal não seja tão dicotômica quanto a sua aprovação, ou seja, que o governo que conduzir este processo entenda a importância de se pensar na sustentabilidade do endividamento, no caráter anticíclico da nova regra, assim como nas evidentes e cruciais necessidades de atendimento das demandas sociais, bem como do resgate do investimento público. Para tanto, algumas premissas devem ser colocadas em destaque.
A primeira delas é que não só se pense nas macro regras que incidem sobre os agregados fiscais, mas nos mecanismos atuantes sobre as principais rubricas da despesa pública que são as reais pressões sobre o orçamento público. Isto é, qualquer âncora fiscal nova só terá sucesso se estiver associada a regras objetivas que promovam mais eficiência das despesas com pessoal, previdência, juros e investimentos. E por mais eficiência não se leia redução de custos de curto prazo mediante canetadas indiscriminadas, mas sim mediante mecanismos de produtividade, no que tange a pessoal, ou mecanismos de redução de incertezas globais, no que tange aos juros, para dar dois exemplos claros de reduções de custos sustentáveis e não arbitrárias.
A segunda premissa para uma melhor regra fiscal é que ela consiga ao mesmo tempo tratar o problema da sustentabilidade da dívida pública, ou seja, da solvência do país, e que seja anticíclica, ou seja, vede o aumento irresponsável da despesa pública em tempos de aumento de arrecadação, para que, igualmente, seja possível a realização de déficits em períodos de recessão econômica, nos quais a receita apresenta desempenho aquém do esperado, mas também nos quais se evidencia grande demanda social por atuação governamental.
Por fim, a terceira premissa a ser garantida é que os waivers ou as válvulas de escape da regra fiscal sejam mais bem previstos. E fazer melhor previsão não significa que a regra deva ser mais ou menos rígida ou inflexível, mas tão somente que a regra de exceção seja definida com mais clareza, com requisitos objetivos e, de preferência, quantitativamente estabelecidos. Desta forma, restarão eliminados, ou ao menos mitigados, os debates políticos entre situação e oposição sobre o uso eleitoreiro e populista dos mecanismos de flexibilização da âncora fiscal. Exemplo claro de como regras claras e quantitativamente bem definidas tendem ser mais eficazes pode ser encontrado na própria LRF, quando esta trata dos limites das despesas de pessoal. Não só os volumes máximos são claramente definidos, como as vedações decorrentes do seu descumprimento, e tudo isso torna bem menos ruidosa a aplicação da regra.
Alguns modelos podem ser pensados sob essas três premissas, dos quais citamos: a combinação de limites de endividamento com regra para crescimento da despesa, excluídos os investimentos; e o estabelecimento de metas de resultados fiscais estruturantes. Pessoalmente, entendemos que o nível de complexidade de se trabalhar com resultados fiscais estruturantes, bem como a maturidade demandada para tanto, tornam a primeira opção mais atraente para o caso brasileiro.
Para encerrar, cabe destacar que os ajustes não devem parar por aí. É preciso que todo o modelo de investimento público seja repensado, que seja criado sistema efetivo de análise ex-ante e ex-post das alternativas de investimento, que estas alternativas estejam compatíveis com os ainda não existentes planos de desenvolvimento setoriais e regionais, que o Plano Plurianual (PPA) seja totalmente repensado, ou abandonado em favor dos planos supramencionados, e que seja editada a Lei Complementar Geral sobre Finanças Públicas prevista nos arts. 163, I, e 165, § 9º, da Constituição Federal, em substituição à anacrônica, formalista e ineficiente Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964.
* Bruno Magalhães D’Abadia é engenheiro e mestre em Economia pela UnB. Ex-secretário de Administração do Estado de Goiás. Professor. Consultor do Banco Mundial. Consultor Legislativo em Finanças Públicas da Câmara dos Deputados (Um dos técnicos responsáveis pelos estudos e assessoramento para o texto final na Câmara dos Deputados da PEC 241/2016 que resultou na EC 95/2016).