Por Christianne Dias*
De acordo com a Medida Provisória 1.154, de 1º de janeiro de 2023[1], a ANA deixou de ser a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico para ser tão-somente a Agência Nacional de Águas, agora vinculada ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, e não mais ao antigo Ministério do Desenvolvimento Regional.
Infelizmente a alteração no nome decorre de uma alteração muito mais profunda! A ANA perdeu sua competência, instituída pelo Novo Marco Legal do Saneamento Básico[2], a Lei n° 14.026, de 15 de julho de 2020, de editar normas de referência sobre o saneamento básico, com a finalidade de uniformizar as regras no âmbito de uma regulação extremamente fragmentada, exercida pelas chamadas agências infranacionais.
O art. 60 da MP 1.154/2023 alterou o art. 3º da Lei nº 9.984/2000 assim dispondo:
“Art. 3º Fica criada a Agência Nacional de Águas – ANA, autarquia sob regime especial, com autonomia administrativa e financeira, vinculada ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, com a finalidade de implementar, em sua esfera de atribuições, a Política Nacional de Recursos Hídricos, integrante do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.
O inciso V do art. 20 da referida MP, ao ressaltar competir ao Ministério das Cidades a regulação e normatização do saneamento básico e ambiental,não deixa dúvidas de que a intenção por trás de uma alteração na estrutura organizacional feita às pressas era realmente a deatacar o novo modelo, o qual impediu a prorrogação dos chamados “contratos de programa” ao estabelecer a necessidade de um processo competitivo em igualdade de condições na escolha do melhor prestador de serviços.
Transferir competências regulatórias de uma agência reguladora para uma secretaria do Executivo em tudo revela uma vontade de enfraquecer um modelo que contempla a autonomia e a imparcialidade no exercício da atividade. Entretanto, verdade seja dita, em que pese a ANA ter recebido novas competências, não recebeu uma estrutura material correspondente para fazer frente ao desafio imposto, senão poucos cargos comissionados. Apesar dos inúmeros pedidos, jamais foi autorizadaà realização de concurso público para a seleção de servidores com expertise específica para trabalhar com regulação econômica, atividade bem diferente daquela que até então a agência exercia.
A ANA originalmente foi criada para fazer a gestão e regulação de recursos hídricos, os quais possuem duplo domínio: federal e estadual. Logo, cabia à ANA, antes do advento da Lei 14.206/2020, fazer a gestão e regulação dos rios federais.
A agência dedicou-se a estabelecer programas, parcerias e integração com os atores do Sistema Nacional de Recursos Hídricos em atenção à uma política descentralizada e participativa (Art. 1º, VI da Lei 9.433/1997). Entretanto, se do ponto de vista da gestão acumulou grandes avanços, do ponto de vista da regulação desempenhou um papel peculiar de conceder outorgas de água (concessão pelo uso de recursos hídricos), negociar alocações de água e estabelecer marcos hídricos.
Mesmo diante de um cenário desfavorável e da falta de recursos, a agência esmerou-se em atrair servidores do Governo Federal e colocou a mão na massa: estabeleceu e publicou agenda regulatória e iniciou o processo de elaboração das nomas de referência, nos exatos moldes em que se exige: com participação da sociedade, transparência, segurança jurídica e previsibilidade.
Confabular se, de certa forma, o papel que vinha sendo exercido pela agência até o dia de hoje contribuiu de alguma forma para a brusca mudança de paradigma que se observa é no mínimo uma covardia. Diante das condições e do curto período de tempo em que passou a exercer suas novas atribuições, a agência demonstrou seriedade e maturidade regulatória condizentes com sua capacidade laboral e orçamentária.
A ANA alterou o seu Estatuto para equilibrar cargos e funções, atualizou seu Planejamento Estratégico, desenvolveu massa crítica e interagiu com o setor. Logo, a agência hoje é a instituição que está mais preparada para contribuir com a regulação do setor, mormente por sua capacidade de diálogo e interação com todos os estados e municípios brasileiros.
Mas, transferir as competências do ente regulador implica no fim do marco do saneamento básico? Por certo que é o primeiro de muitos outros passos que estão por vir. A Lei 14.206/2020 estabeleceu basicamente o prazo para a universalização dos serviços até 2033 e o fim da prorrogação dos contratos de programa, tendo sido previsto a ANA como uniformizador da regulação e a regionalização dos municípios como medida de organização para o exercício da competência. Foram duas medidas provisórias e um projeto de lei até a finalização do trâmite legislativo que culminou com a aprovação do novo marco legal do saneamento básico. Ou seja, Executivo e Legislativo tiveram tempo suficiente para aprimorar e amadurecer a norma.
Todos esses pilares foram pensados para sustentar uma mudança de paradigma, onde não se pode prescindir do setor privado para fazer o investimento na infraestrutura, especialmente porque o país, sabidamente, não tem condições de arcar com esses custos. Esvaziar o papel do regulador, passando para um ente que não tem autonomia financeira, administrativa e técnica pode comprometer todo o processo.
Ademais, os leilões de saneamento básico já são uma realidade. Estão acontecendo e confirmam o apetite do investidor que procura, acima de tudo, encontrar segurança jurídica e estabilidade no processo de elaboração de normas.
Entretanto, algumas atecnias também foram encontradas na medida provisória de organização básica dos Ministérios, o que não geram em si grandes surpresas, não fosse pela complexidade de uma legislação cuja interpretação desafia a teoria da hermenêutica jurídica.
Não constituiu objeto de revogação o art. 25-A da Lei 11.445/2007, que estabelece que “A ANA instituirá normas de referência para a prestação dos serviços públicos de saneamento básico por seus titulares e suas entidades reguladoras e fiscalizadoras”.No mesmo sentido, o art. 4º-A da Lei 9.984/2000 e o inciso III do art. 50 da Lei 11.445/2007 não foram revogados:
Art. 4º-A. A ANA instituirá normas de referência para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico por seus titulares e suas entidades reguladoras e fiscalizadoras, observadas as diretrizes para a função de regulação estabelecidas na Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007.
Art. 50. A alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou com recursos geridos ou operados por órgãos ou entidades da União serão feitos em conformidade com as diretrizes e objetivos estabelecidos nos arts. 48 e 49 desta Lei e com os planos de saneamento básico e condicionados:
III – à observância das normas de referência para a regulação da prestação dos serviços públicos de saneamento básico expedidas pela ANA;
Ou seja, se por um lado a presença de dispositivos legais controvertidos enseja um último suspiro de esperança de que talvez esta não tenha sido a intenção do Poder Executivo, por outro, o inciso XVII do art. 22 do Decreto 11.333, de 1º de janeiro de 2023, que aprova a Estrutura Regimental do Ministério das Cidades, põe fim definitivamente à controvérsia ao dispor:
Art. 22. À Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental compete:
XVII- instituir as normas de referência para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico e acompanhar o seu processo de implementação;
A outra conclusão não se poderia chegar, até mesmo porque decreto executivo é uma norma expedida pelo Chefe do Executivo com a intenção de pormenorizar as disposições gerais e abstratas de uma lei. Se, porventura, lei não existisse, também não haveria de existir decreto.
Perde a ANA, perde o setor, perde o País.
[1]http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2023/Mpv/mpv1154.htm
[2]https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l14026.htm
* Christianne Dias é ex-presidente da ANA.
Pingback: ANA perde a competência de editar normas de referência para o saneamento básico – Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial