Regulando as Grandes Plataformas Digitais para a Concorrência:
O Projeto de Lei n° 2.768/2022
Por João Maia*
A economia mundial do século XXI é fortemente influenciada pelas chamadas “Big Techs” (grandes empresas de tecnologia), especialmente Google, Facebook, Amazon e Apple.
Tais empresas têm sido cada vez mais questionadas sobre suas estratégias de “estenderem” seu poder de mercado em sua atividade principal para mercados adjacentes, com base no fato de a primeira ser, muitas vezes, um insumo para os segundos, uma questão típica de mercados verticalmente integrados. A Big Tech privilegia sua associada do mesmo grupo econômico em relação às concorrentes, no chamado self-preferencing, literalmente “preferir a si mesmo”, discriminando terceiros. Além de minar a concorrência nos mercados adjacentes, esta conduta pode comprometer o surgimento e o crescimento de terceiros que acabem por oferecer competição no mercado original das Big Techs.
Este tipo de conduta bloqueia o desenvolvimento tecnológico de start-ups ou mesmo de terceiros bem estabelecidos no desenvolvimento de tecnologias digitais no mercado, minando uma das principais fontes de desenvolvimento econômico das economias modernas. É o caso do acesso, por exemplo, às lojas de aplicativos em celulares de Google e Apple, à ferramenta de busca horizontal do Google, ao Buy Box da Amazon ou aos dados acumulados nas redes sociais como fotos e postagens do Facebook.
Wu (2018)[1] aponta que as condutas das Big Techs nos últimos vinte anos permitiram uma grande concentração de mercado: “de repente, não havia uma dúzia de mecanismos de busca, cada um com uma ideia diferente, mas apenas um mecanismo de busca (o Google). Não havia mais centenas de lojas que todos iam, mas apenas uma “loja de tudo” (a Amazon). E evitar o Facebook era como fazer de você mesmo um ermitão digital”.
Relatório do Congresso Americano RCA-(2020)[2] sobre concorrência e Big Techs, organizado pela atual Presidente da Federal Trade Commission (FTC) americana, Lina Khan, descreve o que seriam as condutas anticompetitivas das quatro maiores empresas de tecnologia, propondo linhas de ação para lidar com o problema. Em função deste Relatório foi proposto em 2022 o American Innovation and Choice Online Act[3] que proíbe o self-preferencing, entre outras restrições às condutas das grandes plataformas digitais. O projeto, em novembro de 2022, ainda está em debate no Congresso Americano.
Já na Comissão Europeia, o “Digital Markets Act” (DMA), direcionado aos chamados “controladores de acesso” (gate keepers) no mundo digital, é bastante detalhado e foi aprovado em 2022.
No Projeto de Lei nº 2.768/2022, de minha autoria, proponho uma regulação na linha da Comissão Europeia, mas de forma bem menos detalhada. Isso porque estamos lidando com questões de extrema relevância, que exigem respostas regulatórias ao mesmo tempo novas e muito rápidas. Em particular, evitamos proibições absolutas que coloquem “camisas de força” nestes agentes.
Em lugar de criar um novo regulador, entendemos que a Anatel já possui expertise muito próxima daquela requerida para a missão de regular plataformas digitais. Basta lembrar que boa parte da regulação pró-concorrência da agência se baseou na obrigação de interconexão que nada mais é que requerer dos incumbentes, acesso à sua rede local.
Tal como na nova legislação europeia, neste projeto distinguimos usuários profissionais e finais e colocamos critérios objetivos para a definição de operadores de plataformas digitais que serão considerados como detentores de poder de controle de acesso essencial (receita operacional anual igual ou superior a R$ 70 milhões). Definimos as seguintes obrigações que poderão ser impostas sobre estes agentes para garantir livre acesso e o desenvolvimento da concorrência:
I – transparência e fornecimento de informações sobre a prestação de seus serviços;
II – tratamento isonômico e não discriminatório na oferta de serviços a usuários profissionais e finais;
III – utilização adequada dos dados coletados no exercício de suas atividades;
IV – não recusa de provisão de acesso à plataforma digital a usuários profissionais;
V – separação contábil e funcional;
VI – portabilidade de dados e interoperabilidade entre plataformas.
Se, de um lado, é fundamental garantir um ambiente de livre concorrência, estamos cientes dos riscos que um tipo novo de regulação pode trazer para um setor em constante estado de “destruição criativa” (usando o termo consagrado por Schumpeter) em que a competição se desenvolve por meio de inovações disruptivas. Sendo assim, todo o cuidado é pouco, pois não só o Brasil, como os reguladores de todo o mundo terão que iniciar um processo de “aprendizado” de como assegurar que nem o desenvolvimento de terceiros no mercado seja artificialmente bloqueado e nem as próprias Big Techs se vejam tolhidas em seu esforço inovador. Desta forma, deixamos claro que a regulação de acesso das grandes plataformas digitais será orientada pela (o):
I – adoção de critérios técnicos, isonômicos e não arbitrários;
II –respeito às características de cada plataforma digital;
III – intervenção proporcional ao risco existente;
IV – avaliação dos impactos, custos e benefícios das obrigações;
V – nível de competição atual na oferta de cada modalidade de plataforma digital.
Dadas as novas atribuições da Anatel, entendi ser fundamental dotar a agência de recursos suficientes para o cumprimento de suas novas missões. Assim, estou propondo a criação do Fundo de Fiscalização das Plataformas Digitais – FisDigi com fontes constituídas por uma nova taxa de fiscalização das plataformas digitais, dotações do Orçamento Geral da União, créditos especiais, transferências e repasses, dentre outras.
A taxa de fiscalização das plataformas digitais será devida anualmente pelos operadores de plataformas digitais que oferecerem serviços ao público brasileiro, detentores de poder de controle de acesso essencial, correspondente a 2% (dois por cento) da receita operacional bruta.
Além dos recursos do FisDigi terem como destino o financiamento aos novos serviços prestados pela Anatel, também previmos a possibilidade de o Poder Executivo destinar parte dos valores ao Fundo de Garantia de Operações – FGO para serem utilizados como garantia ao desenvolvimento de produtos e serviços digitais inovadores, o que financiaria um “FGO Digital”.
As sanções por descumprimento a esta lei seguirão a lógica de “regulação responsiva”, calibrando o seu rigor conforme o comportamento do agente regulado. Assim, serão aplicadas de forma isolada ou cumulativa:
I – advertência, com indicação de prazo para adoção de medidas corretivas;
II – multa de até 2% (dois por cento) do faturamento do grupo econômico no Brasil no seu último exercício, excluídos os tributos, considerados a condição econômica do infrator e o princípio da proporcionalidade entre a gravidade da falta e a intensidade da sanção;
III – obrigação de fazer ou não fazer;
IV – suspensão temporária das atividades;
V – proibição de exercício das atividades.
Visando garantir a proporcionalidade da multa, a Anatel poderá incidi-la sobre o faturamento de todo o período em que a conduta foi praticada, reduzindo-se o seu teto para um (1%) por cento.
Enfim, estamos colocando para debate um tema urgente que já está sendo enfrentado em outros países e blocos. Constitui uma regulação focada na mitigação dos efeitos negativos derivados do controle de acesso a insumos essenciais pelas grandes plataformas digitais. Dada a participação crescente destes agentes na nova economia, considero esta discussão inadiável e, por esta razão, apresentei este projeto.
* João Maia é deputado federal.
[1]Wu, T.: “The Curse of Bigness”. Antitrust in the New Gilded Age. Columbia Global Reports.
[2] Investigation of Competition in Digital Markets. competition_in_digital_markets.pdf (house.gov)
[3]H.R.3816 – 117th Congress (2021-2022): American Choice and Innovation Online Act | Congress.gov | Library of Congress