Efeito Fim de Jogo nas Concessões de Eletricidade
Por Joisa Dutra* e Romário Batista**
O término dos contratos é objeto do livro “Concessões no Setor Elétrico Brasileiro – Evolução e Perspectivas”[1], recém-lançado[2]. Passadas quase três décadas desde o início da reestruturação do setor elétrico, os próximos 10 anos são palco do término de 129 contratos de concessão de distribuição(D), geração(G) [3] e transmissão (T)[4]. Representam cerca de 62,6% do mercado das distribuidoras[5], 20 GW de potência hidrelétrica e 9.000 km de linhas de transmissão. A obra é relevante e oportuna, principalmente com o avanço dos debates para aprovação no Legislativo da Modernização do Setor Elétrico (PL 414/21), que inclui propostas de tratamento às concessões vincendas.
As desestatizações ao final da década de 1990 garantiram a outorga de novos contratos por 30 anos. Isso viabilizou a expansão do sistema elétrico, através da implantação de novas instalações de geração e redes de transmissão e distribuição. Alcançamos também a universalização do acesso à energia elétrica, que hoje atende 99.9% da população. Tudo isso é fruto de uma bem-sucedida coexistência de capitais públicos e privados.
O setor elétrico tem papel crítico na transformação da sociedade, rumo à descarbonização, que é chave para enfrentar os desafios da deterioração do meio ambiente. O volume de investimentos previsto no horizonte do Plano Decenal de Energia PDE/2031, elaborado pela Empresa de Pesquisa Energética, é de R$ 3,2 trilhões. Segurança jurídica é fundamental para financiamento e investimentos em qualquer setor de infraestrutura, afetando diretamente o custo de capital.
O que chamamos aqui de as “regras do fim do jogo” fazem parte do que é considerado pelos agentes nas suas decisões de investimento por todo o período da concessão e, especialmente, quando vai chegando ao final, quando podem sobrar “menos anos” para recuperar o que foi investido. É essencial saber as condições que vão pautar a decisão do Poder Concedente sobre licitar ou prorrogar as concessões. Previsibilidade aqui requer o desenho e a implementação de uma política funcional de gestão de outorgas.
A decisão sobre o que fazer no término dos contratos vai além da uma simples dicotomia entre licitar ou prorrogar: a possibilidade de renovar concessões do setor elétrico abre espaço para repactuar a relação contratual entre Poder Concedente e concessionários. A adaptação dos contratos a um mundo em transformação pode garantir melhores incentivos e ganhos de eficiência para a prestação dos serviços e expansão do sistema. Ganham usuários, empresas e o governo.
O contexto atual de transição energética amplia os desafios e dilemas em torno da renovação ou licitação das outorgas vigentes, sobretudo para o segmento de distribuição. Em um mundo descentralizado e digitalizado, a empresa de distribuição de eletricidade se converte em um Operador do Sistema de Distribuição – o DSO, da sigla em inglês.
Flexibilidade para adaptar contratos no advento de seu término é essencial quando a transição energética dá espaço ao DSO. Novos serviços são necessários para o adequado gerenciamento de um ambiente que combina recursos energéticos distribuídos (DER, da sigla em inglês), conceito que inclui a geração distribuída, a resposta da demanda, o armazenamento e veículos elétricos. As redes elétricas são grandes facilitadores dessa transformação. Como isso tudo custa caro, a renovação permite amoldar os contratos a essa nova realidade, que demanda ainda resiliência a eventos como extremos climáticos e ataques cibernéticos em um adequado compartilhamento de risco entre concessionários e poder concedente.
Os investimentos para adaptar as redes de distribuição ao conceito DSO são vultosos e não meramente incrementais. Isso é ilustrado em artigo recente de Anna Brockway e coautores [6], que foca na companhia PG&E, uma das três grandes utilities que operam na Califórnia. A análise mostra que a penetração dos veículos automotores elétricos em patamar coerente com os compromissos climáticos para aquele estado demandaria aumentar muito os investimentos nos sistemas de distribuição. Para ilustrar, os investimentos requeridos para aquele fim até 2025 correspondem ao triplo do projetado pela empresa no período. Análises semelhantes ainda não estão disponíveis por aqui. Mas são essenciais para pactuar as condições entre Poder Concedente e concessionário para viabilizar investimentos consistentes com a almejada “transição energética” para fontes limpas nas próximas décadas.
O livro oferece ainda contribuições metodológicas para subsidiar a decisão quanto à renovação ou licitação das outorgas, como os modelos de: (i) avaliação das condições de prestação serviços – se adequada ou não –, mensurável através de índices de sustentabilidade; e (ii) análise financeira de valuation para usinas hidrelétricas, que daria pistas da duração ótima da concessão.
O livro apresenta, ainda, proposta de instrumento normativo infralegal, destinado a reduzir incertezas e assegurar um procedimento mais estruturado, previsível e transparente para regulamentar a prorrogação, bem como o pagamento de indenizações por investimentos não amortizados em bens reversíveis.
Na síntese de Ricardo Brandão[7], que escreve na contracapa, “O estudo oferece as balizas para o Poder Concedente em seu processo de tomada de decisão, posto que traz a ótica do regulador, a visão dos órgãos de controle externo e a jurisprudência dos tribunais; mas é também um guia para concessionários, investidores e consumidores, para melhor compreender todas as camadas que envolvem esta discussão. Sem dúvidas, esta obra já nasce como referência obrigatória para os que desejam se debruçar sobre o tema das concessões e das prorrogações de seus contratos”.
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Resultado de pesquisa (P&D ANEEL), o livro visa lançar sólido alicerce para que floresçam as discussões sobre as transformações em curso no contexto da transição energética e o desafio de refleti-las em direitos e obrigações nos instrumentos de outorga. Isso reforça e se coaduna com as novas práticas adotadas a partir dos “Princípios para Atuação Governamental no Setor Elétrico” (Portaria do Ministério de Minas e Energia (MME) 86/18), em especial os da “transparência e participação da sociedade nos atos praticados”, autorizando, desse modo, a legítima aspiração dos agentes, consumidores, entidades representativas e demais segmentos interessados, de participarem desse debate, de forma estruturada e tempestiva.
É preciso, no entanto, vigilância quanto a possíveis recaídas ou compromissos com o passado de improvisações e arranjos de última hora. Circularam na mídia, nos últimos meses, notícias de iminente edição de (i) Medida Provisória para dispor sobre a renovação antecipada de concessões de geração e (ii) Decreto para regulamentar a renovação de concessões de distribuidoras privatizadas, prescindindo de qualquer debate com os atores envolvidos e efetivamente comprometidos com soluções estruturais e harmônicas[8]. Setembro próximo “comemoramos” 10 anos da edição da Medida Provisória 579/2012, o 11 de setembro do setor elétrico, que tentou – e falhou – aproveitar a oportunidade de renovação de concessões para alcançar redução de tarifas e preços de eletricidade tão somente por motivações eleitorais.
A despeito desses ruídos, há sinalizações do MME para uma regulamentação, até dezembro de 2022, de diretrizes e metas para eventual renovação dos contratos de concessão de distribuição, alinhadas com a modernização e com os novos paradigmas do setor, e que tragam benefícios efetivos ao consumidor. Tal processo estaria sendo desenvolvido com base em estudos e avaliações específicas, em observância às determinações e recomendações constantes do Acórdão TCU nº 2.253/2015-Plenário e dos relatórios técnicos que o subsidiaram[9].
Embora possa representar um avanço em relação a práticas anteriores, é preciso ainda assegurar o diálogo e a participação nesse processo dos diversos atores envolvidos e/ou afetados, de forma estruturada e transparente. Esse é, sem dúvida, o melhor caminho para que as “regras do fim do jogo” possam ser consideradas desde o princípio, em prol da segurança jurídica e da viabilidade de vultosos investimentos na adaptação e modernização das redes e demais instalações de energia elétrica no ambiente digitalizado e descentralizado da transição energética!
[1] Synergia Editora (Parceria entre FGV/CERI-FGV/Direito SP e a EDP Energias do Brasil, no âmbito do Programa de P&D da ANEEL).
[2] Webinar do FGV CERI e FGV Direito SP, realizado em 20/7/22, com o apoio e participação da EDP, da ANEEL e do MME.
[3] Inclui as UHEs Tucuruí e Mascarenhas de Moraes, com 8,8 GW de potência, cujas concessões foram renovadas antecipadamente nas condições da Lei nº 14.182/21 (Desestatização da Eletrobras).
[4] Mais de uma centena dessas concessões decorrem de privatizações de empresas federais ou estaduais ao final da década de 1990, bem como de licitações de novas outorgas de geração e transmissão realizadas a partir de 1995.
[5] Relatório de Indicadores de Sustentabilidade Econômico-Financeira das Distribuidoras: ANEEL- Base Set/21; 14ª Edição – Dez/21.
[6] Anna Brockway (2022) et al.. “Can Distribution Grid Infrastructure Accommodate Residential Electrification and Electric Vehicle Adoption in Northern California?” Energy Institute at Haas Business School Working Paper 327.
[7] Diretor Executivo de Regulação da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (ABRADEE). Foi Procurador Geral na Agência Nacional de Energia Elétrica.
[8] Mudanças nos regramentos e nos contratos aplicáveis produziram um arcabouço heterogêneo no tempo (diferentes “safras” de contratos) e mesmo dentro de um mesmo segmento (G/T/D). Defendem os autores do livro o estabelecimento de um procedimento estável e funcional, com anterioridade e previsibilidade, para tomada de decisão pelo Poder Concedente quanto ao futuro das concessões, de modo a alterar o cenário atual de incertezas institucionais e regulatórias.
[9] No julgamento do TC 003.379/2015-9[9], o Plenário da Corte de Contas considerou constitucional a prorrogação de todas as concessões de distribuição de energia elétrica pelo prazo de 30 anos, desde que as empresas concessionárias aceitassem as novas metas de qualidade e de gestão econômico-financeira definidas pela ANEEL. Entendeu, ainda, que estava caracterizada uma situação de excepcionalidade suficiente para afastar a necessidade de realização de nova licitação pública.
O posicionamento dos Ministros contrariou o entendimento das instâncias técnicas no Tribunal de Contas da União, que propugnavam pela inconstitucionalidade da Lei nº 12.783/2013 e insistiam na necessidade de realização de novas licitações.
Para a SeinfraEnergia, unidade do TCU< o poder concedente não teria caracterizado, por meio de estudos técnicos, a situação excepcional capaz de justificar a necessidade de prorrogação. Também não teria sido demonstrada a vantagem da prorrogação, em relação à alternativa de relicitação de todos ou alguns contratos de concessão. De outro lado, o modelo de prorrogação proposto violava a Lei nº 8.987/1995 e a Lei nº 12.783/2013, na medida em que teria caráter gratuito. A definição de novas metas de qualidade e de gestão econômico-financeira para as atuais concessionárias não caracterizava a onerosidade da prorrogação. A prestação de serviço público adequado, segundo os parâmetros estabelecidos pelo poder concedente, constitui a obrigação básica de toda e qualquer concessionária. Tampouco havia previsão de novos investimentos por parte das atuais concessionárias para o cumprimento das metas impostas. O caráter generalizado da prorrogação abrangeria indistintamente as concessionárias que não vinham prestando serviço adequado aos usuários. A sanção de caducidade não constituía mecanismo eficaz para garantir o cumprimento das novas metas de qualidade definidas pela ANEEL.
* Joisa Dutra é diretora do FGV CERI e doutora em economia pela FGV EPGE.
** Romário Batista é pesquisador do FGV CERI e ex-secretário de Parcerias em Energia, Petróleo, Gás e Mineração do PPI.