Estaria a saga da regulamentação do lobby no Brasil perto de seu fim?
Por Ricardo José Pereira Rodrigues
Ao encaminhar à Câmara dos Deputados, em dezembro de 2021, um projeto para disciplinar o lobby no país, o Poder Executivo não apenas adicionou mais um capítulo à verdadeira saga que se tornou a história da regulamentação da atividade no Brasil. A ação legiferante promovida pelo Poder Executivo, de fato, colocou em evidência a importância que a regulamentação da representação privada de interesses junto a agentes públicos assumiu como fator de aprimoramento da imagem e do desempenho do país relativo à integridade de sua governança pública, sobretudo para os organismos internacionais.
Foram muitas as tentativas frustradas de regulamentação do lobby no Brasil. A “saga” teve início ainda nos anos 1980, com a apresentação do Projeto de Lei do Senado nº 25, de 1984, pelo então Senador Marco Maciel. No Senado federal tramitaram, entre 1984 e 2016, quatro outras proposições sobre o tema, incluindo uma Proposta de Emenda à Constituição. Na Câmara dos Deputados, no mesmo período e sobre o mesmo tema, tramitaram nada menos que 7 projetos de lei e 11 projetos de resolução da Câmara. São quase 40 anos de iniciativas parlamentares que não resultaram em norma jurídica, com a maioria das proposições sendo arquivada por falta de deliberação.
Mas por que tem sido tão difícil aprovar no Brasil uma lei do lobby? E, se o país tem vivido sem uma lei de lobby, qual importância teria a regulamentação do lobby? Por que insistir em regulamentar a atividade?
Primeiramente, cabe salientar que a regulamentação do lobby não é uma empreitada fácil de se operacionalizar até porque compreende desafios nada triviais. Não se trata apenas de restringir ou proibir a atividade dos grupos ou de lobistas individuais. Como já tive oportunidade de frisar em outras ocasiões[1], trata-se de viabilizar uma legislação caracterizada por dois objetivos distintos que, para alguns, podem até parecer contraditórios. Por um lado, a regulamentação do lobby deve necessariamente conter dispositivos que estimulem e fortaleçam a pluralidade dos grupos de interesse sem, por outro lado, permitir que tal atuação degenere em tráfico de influência ou corrupção, crimes previstos pelo Código Penal Brasileiro.
O estímulo à representação de interesses no âmbito das esferas públicas, seja realizada por profissionais do lobby, seja realizada por grupos oriundos dos mais diversos setores da sociedade civil organizada, é plenamente amparada por nossa Carta Magna. Tal estímulo deve-se ao caráter pluralista do próprio modelo democrático adotado pelo Brasil. Os constituintes alçaram o pluralismo à condição de princípio fundamental do nosso Estado democrático de direito. A Constituição Federal de 1988 consagra o pluralismo político em seu artigo primeiro, inciso V, como um dos fundamentos da democracia brasileira.
Outros artigos da nossa Constituição reforçam esse estímulo à participação de grupos no processo de tomada de decisão acerca de políticas públicas. O direito de petição, por exemplo, é assegurado pela Constituição como uma das garantias fundamentais da sociedade. O inciso XXXIV do art. 5º garante aos brasileiros “o direito de petição aos poderes públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”[2]. Esse direito é ainda reiterado pela Constituição em seu art. 58, § 2º, inciso IV, quando determina às comissões das Casas do Congresso Nacional “receber petições, reclamações, representações ou queixas de qualquer pessoa contra atos ou omissões das autoridades ou entidades públicas”[3].
Cabe salientar que o assunto tem ocupado a agenda de diversos organismos internacionais. A ONU e a OCDE, por exemplo, defendem a adoção da regulamentação do lobby como um requisito para se alavancar a boa governança de seus países membros. Curiosamente, são poucas as democracias que dispõem de normas legais para disciplinar a atividade de representação de interesses. Neste sentido, continua a valer a conclusão a que chegou Margaret Malone, em 2004, segundo a qual “países com regras específicas para regulamentar as atividades de lobistas e grupos de interesse constituem muito mais a exceção do que a regra”[4]. Tanto assim que na linha do tempo elaborada pela OCDE para detalhar a evolução da regulamentação do lobby no mundo, de 1945 a 2014, constam apenas 15 países. Desses, somente 11 países promulgaram sua regulamentação da atividade depois de 2005. Para a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, apenas uma minoria dos países no mundo adotou o instrumento da regulamentação para reduzir os riscos representados pelo lobby aos seus arranjos de governança. Segundo a organização, “em 2020, apenas 23 de 41 democracias analisadas supria (por meio de legislação) algum nível de transparência às atividades de lobby”[5].
Não obstante o baixo número de países com leis para disciplinar as atividades do lobby, o tema tornou-se central para a agenda da OCDE desde 2009 quando lançou seu primeiro relatório dedicado ao assunto[6]. Para a OCDE, a ausência de uma regulamentação do lobby eficaz tem gerado, em muitos países, alocações equivocadas de recursos públicos, muitas vezes escassos, com redução de produtividade e aumento de desigualdades. De acordo com a OCDE, práticas inapropriadas e censuráveis do lobby contribuem para “debilitar a confiança do cidadão no processo democrático”[7].
Para analistas que acompanham as tratativas do Brasil para integrar a OCDE, a falta de uma regulamentação de lobby representa uma barreira, que embora transponível, dificulta a adesão do país ao organismo. Complementando um conjunto de leis voltado para o controle da corrupção e a melhoria da integridade no serviço público, a aprovação da regulamentação do lobby poria fim a uma defasagem regulatória que vem marcando a experiência brasileira no que concerne à relação dos agentes públicos com o mercado e os grupos de interesse. Também consolidaria a convergência do Brasil com os princípios da OCDE relativos à governança pública. Ressalte-se que numa pesquisa realizada pela OCDE sobre indicadores de regulação de produtos de mercado (PMR) com 46 países, o Brasil obteve a pior colocação do grupo. Segundo manifestação da representante do Ministério da Economia durante a audiência pública realizada na Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público, da Câmara dos Deputados, a aprovação de uma adequada regulamentação do lobby é o caminho para remediar a defasagem regulatória e melhorar o desempenho do país com relação aos índices de PMR (Product Market Regulation) da OCDE.
A apresentação pelo Poder Executivo do Projeto de Lei nº 4.391, de 2021, após quase 40 anos de proposições malogradas por parte de parlamentares, dá revigorada energia ao debate sobre a questão. Com a importância que o tema assumiu para os organismos internacionais, o disciplinamento legal da representação de interesses privados deixou de ser uma preocupação apenas doméstica para o país. A temática passou a ser uma questão de Estado, cuja condução e fecho pode ter influência nos objetivos diplomáticos e de comércio exterior do país.
Apensado ao Projeto de Lei nº 4.391, de 2021, tramita o Projeto de Lei nº 1.535, de 2022, de autoria do Deputado Carlos Zarattini. Ambos são compreensivos e abrangentes, incorporando em seus respectivos textos, princípios e diretrizes da OCDE para a regulamentação do lobby. Espera-se que, desta vez, o Parlamento consiga alcançar um consenso mínimo, para, finalmente, transformar em norma jurídica o disciplinamento de uma atividade que é intrínseca ao processo democrático vigente no país. Constituiria um passo firme na direção do aprimoramento e do aumento da qualidade de nossa democracia.
[1] RODRIGUES, Ricardo J. P. A adoção dos parâmetros da OCDE para a regulamentação do lobby no brasil. Revista Eletrônica Direito e Política, v.10, n.3, 2015, p. 1437-1458; RODRIGUES, Ricardo J. P. A regulamentação do lobby: desafios e parâmetros para sua adoção. STPC Café, Brasília, 2014, p. 27-35.
[2] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Edições Câmara, 2012, p. 15.
[3] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, p. 51.
[4] MALONE, Margaret M. Regulation of lobbyists in developed countries. Current rules and practices. Dublin: Institute of Public Administration, 2004, p. 3.
[5] OECD. Lobbyin in the 21st Centurty: transparency, integrity and access. Paris: OECD Publishing, 2021, p. 15.
[6] OCDE. Lobbyists, government and public trust. Vol. 1: increasing transparency through legislation. Paris: OCDE Publishing, 2009
[7] OCDE, 2021, Ibid, p.
Ricardo José Pereira Rodrigues é doutor em ciência política pela State University of New York, consultor legislativo na Câmara dos Deputados e professor no curso de pós-graduação em Direito e Relações Governamentais do Uniceub em Brasília.