Planejamento de Médio Prazo do Processo Orçamentário
Por Helio Tollini e Paulo Bijos
Uma parte significativa das decisões relativas a receitas e despesas tem implicações que se prolongam bem além do habitual ciclo de uma lei orçamentária anual (LOA). O horizonte temporal curto da LOA, portanto, não estimula que o planejamento fiscal e o planejamento estratégico das despesas sejam consistentes, pois tende a desconsiderar o impacto plurianual das decisões tomadas no momento presente.
Quando o foco do processo orçamentário é apenas o exercício de referência, o interesse em propor modificações nas legislações que provocam rigidez orçamentária é menor, visto que os ganhos de flexibilidade tendem a ocorrer nos exercícios seguintes. Se o foco orçamentário for o médio prazo, haverá estímulos para que boa parte dos ganhos de flexibilidade seja incorporada ao novo processo alocativo.
Um instrumento adotado por diversos países, chamado Quadro da Despesa de Médio-Prazo – QDMP (em inglês, Medium-Term Expenditure Framework – MTEF)[2], permite ao governo ampliar o horizonte da alocação dos recursos públicos para além do calendário orçamentário anual. O QDMP compatibiliza as prioridades estratégicas de cada setor com limites alocativos plurianuais definidos conforme a capacidade fiscal do Estado. Para tal, estabelece com antecedência, para o médio prazo, tetos gerais anuais em consonância com os objetivos de longo prazo da política fiscal, e subtetos de gastos específicos por área temática conforme as prioridades definidas setorialmente.
O QDMP costuma ser construído com amparo em um Cenário Fiscal de Médio Prazo (CFMP), que dilata o horizonte da política fiscal ao apresentar a estimativa de evolução plurianual dos grandes agregados de receitas e despesas. Nesse modelo de planejamento de médio prazo, a limitação “de cima para baixo” (top-down) oriunda do CFMP interage com a programação setorial de gastos “de baixo para cima” (bottom-up), decorrente do cenário-base (baseline) e das novas iniciativas. Os objetivos da adoção conjunta de um CFMP/QDMP seriam impor, com antecedência, metas fiscais estabelecidas para o médio prazo, em consonância com os objetivos de longo prazo da política fiscal, e alocar recursos públicos em linha com essa restrição fiscal e com prioridades estratégicas definidas de antemão.
- Há diferenças acentuadas entre modelos de QDMP adotados atualmente nos diversos países. Caso venha a ser utilizado no Brasil, tanto no governo federal quanto eventualmente em entes subnacionais, escolhas precisarão ser feitas no que diz respeito:
- À abrangência (inclui ou não a seguridade social; considera ou não somente as despesas primárias; contempla ou não apenas as despesas correntes);
- Ao horizonte temporal (dois, três, quatro ou até cinco exercícios financeiros);
- Ao caráter dos limites impostos aos exercícios futuros (apenas indicativos ou impositivos; irreversíveis ou não);
- À forma de se desdobrar limites (por função, por programa, por ministério, por setor ou por área);
- Ao grau de detalhamento da programação objeto do teto (agregadas por grupo de despesa, desdobradas por programas ou por ações);
- À atualização dos limites (se ajustados pela inflação ou outro critério);
- Às reservas de programação (para atender mudanças na conjuntura econômica; para atender novas políticas públicas);
- À previsão de “gatilhos” (para disciplinar o excepcional descumprimento de limites e suas respectivas consequências); e
- Ao papel do Parlamento (exigência de aprovação; apenas requerimento de ser informado; ou nenhum papel).
Se adaptado com base na exitosa experiência sueca, o teto global de gastos seria de caráter impositivo e irretratável[3], fixado anualmente na LDO para o médio prazo (até o exercício “t+2”), em base móvel, por proposta do Poder Executivo. Os subtetos seriam definidos por área temática, e impositivos apenas entre a LDO recém-aprovada e o projeto de LOA a ser submetido ao Congresso dois meses depois (e de caráter indicativo para os exercícios futuros). As atribuições do Congresso Nacional na aplicação dos recursos públicos seriam reforçadas, pois passaria a definir antecipadamente o montante máximo de gastos e como se daria a divisão desse montante entre as áreas temáticas.
Dentre outras, destacam-se as seguintes vantagens de se elaborar um QDMP em relação à orçamentação anual tradicional:
- Impor maior disciplina fiscal ao limitar a elaboração e a execução dos orçamentos nos anos seguintes a níveis consistentes com os objetivos fiscais e setoriais de médio e longo prazos;
- Melhorar a priorização estratégica dos gastos ao discutir antecipadamente a programação setorial dos exercícios futuros, expondo de forma clara a evolução das despesas associadas às diversas políticas públicas vis-à-vis as limitações do espaço fiscal disponível;
- Permitir a identificação antecipada de medidas corretivas a serem adotadas para contornar rigidezes, obstáculos e eventual degradação das contas públicas no médio prazo, de forma a viabilizar os subtetos indicativos pretendidos para os exercícios seguintes;
- Fomentar maior eficiência no planejamento intertemporal dos gastos, ao proporcionar maior previsibilidade e transparência aos gestores setoriais quanto aos recursos de que disporão nos orçamentos futuros; e
- Reforçar aspectos antes relegados a segundo plano num ambiente cujo foco é o curto prazo, fomentando melhorias para o planejamento setorial, a avaliação de desempenho, a responsabilização e a transparência do processo alocativo.
Ademais, o arcabouço CFMP/QDMP seria uma alternativa mais interessante do que o atual Novo Regime Fiscal (NRF) para nortear a política fiscal, pois manteria a rigidez fiscal no médio prazo, com a vantagem de ser flexível no longo prazo. Por ter horizonte temporal mais curto e base móvel, admitiria a correção de curso da política fiscal no médio prazo, em sintonia com a alteração dos indicadores econômicos.
Adicionalmente, informaria melhor o Congresso Nacional a respeito da evolução das contas públicas nos anos subsequentes, dotando-o de melhores condições para calibrar o impacto financeiro de suas decisões de acordo com a trajetória desejada de evolução da dívida pública. A participação de uma Instituição Fiscal Independente robusteceria esse modelo com apoio técnico na elaboração e no monitoramento de cenários fiscais.
A mudança fundamental é o deslocamento do foco do processo de elaboração orçamentária do curto para o médio prazo, com afetação direta da forma como os recursos públicos são alocados.
Quanto ao Plano Plurianual (PPA), dentro desse novo arcabouço ele se torna dispensável enquanto instrumento legal de planejamento orçamentário no médio prazo. O PPA possui limitações estruturais que o tornaram ineficaz. Apesar dos diversos formatos tentados desde o início da década de 1990, nunca conseguiu determinar a alocação plurianual dos recursos públicos. No novo modelo de planejamento orçamentário, a tríade de “leis orçamentárias” (PPA, LDO e LOA) cederia lugar a apenas duas – LDO e LOA. A LDO incorporaria as funções de CFMP/QDMP e a LOA continuaria aprovando despesas anuais à luz de uma estrutura fiscal de médio prazo. O planejamento plurianual, em suma, não mais assumiria a forma de “lei de PPA”, mas a atividade de planejamento, evidentemente, não deixaria de existir, sobretudo em nível setorial. O planejamento central, por sua vez, poderia materializar-se por meio do ainda pouco explorado “plano de governo” a que se refere o art. 84, inciso XI, da Constituição. Para esse instrumento já existente poderia ser canalizado todo aprendizado obtido a partir da experiência histórica com o PPA.
Adicionalmente, o modelo trazido à baila deveria ser idealmente complementado por um processo de Revisão do Gasto Público (em inglês, Spending Review), a fim de evitar o comportamento inercial da “base orçamentária” existente. É preciso institucionalizar um processo de reavaliação periódica de programas, ações, vinculações orçamentárias, gastos tributários e subsídios (financeiros e creditícios). A Revisão do Gasto Público teria o objetivo de aprimorar a alocação de recursos escassos em favor de programações que propiciem maiores benefícios à sociedade. Isso permite que a redução de gastos ineficientes abra espaço fiscal para incorporação de outros mais eficientes (evitando-se também os malfadados “cortes lineares”, que muitas vezes atingem despesas correntes essenciais e investimentos). Para tal, propõem-se revisões específicas (de um ou alguns poucos setores escolhidos) no âmbito de cada projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), e uma revisão mais abrangente apresentada juntamente com o projeto de LDO do último ano do mandato presidencial (para que suas conclusões eventualmente sirvam de base para discussões políticas dos candidatos à Presidência nas eleições do mesmo ano).
Por fim, a LOA precisa dialogar melhor com a abordagem da orçamentação por desempenho (em inglês, performance budgeting). Em sua estruturação moderna, por programas, a LOA deve ser encarada como leis de fins. Isso significa que as ações orçamentárias não são “peças soltas” no ambiente de planejamento governamental. As ações finalísticas do orçamento têm compromisso com entregas na forma de bens e serviços, que por sua vez visam contribuir para a melhoria das condições socioeconômicas do País. Por isso as ações finalísticas da LOA são expressamente dotadas de produtos e respectivas “metas físicas”, que quantificam as entregas associadas a cada dotação orçamentária. Essa informação deve ser levada mais a sério. A fixação e a execução das metas físicas precisam ser consistentes e transparentes, de forma a permitir o acompanhamento da eficácia das ações orçamentárias. A LOA já divulga metas físicas, desde 1987, mas não há qualquer justificativa para os valores fixados para as metas das despesas discricionárias, nem controle social sobre a execução delas. O ideal é que haja divulgação de justificativa específica para o valor de cada meta física fixada, assim como a publicização de sua execução ao longo do ano, de forma a permitir o controle social da eficácia da ação governamental. O argumento de que tal informação eventualmente “burocratizaria” o processo orçamentário não procede. No mundo contemporâneo, altamente digitalizado, não deveria haver óbices para a disponibilização dessas informações à sociedade.
Referências
ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (OCDE). Budgeting and public expenditures in OECD countries. Paris: OECD – Publishing, 2019.
Obs.: aos leitores interessados nos temas tratados neste artigo, sugerimos adiante algumas referências pertinentes, em caráter não exaustivo:
AFONSO, José Roberto; RIBEIRO, Leonardo. Revisão dos gastos públicos no Brasil. Revista Conjuntura Econômica, set. 2020.
ALMEIDA, Dayson P.B.; BIJOS, Paulo R.S. Planejamento e orçamento no Brasil: propostas de inovação. In: SALTO, Felipe S.; PELLEGRINI, Josué A. (org.). Contas públicas no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2020.
BIJOS, Paulo R.S. Spending Review e MTEF – caminhos para maior estabilidade? [Publicação preliminar]. In: Governança Orçamentária no Brasil. COUTO, Leandro F.; RODRIGUES, Júlia M. (org.). Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 2021.
COURI, Daniel V.; BIJOS, Paulo R.S. Subsídios para uma reforma orçamentária no Brasil. In: Reconstrução: o Brasil nos anos 20. SALTO, Felipe; VILLAVERDE, João; KARPUSKA, Laura (org.). Brasília: Série IDP/Saraiva, 2022.
FORTIS, Martin; GASPARINI, Carlos E. Plurianualidade: marcos de gasto de médio prazo. In: GIMENE, Márcio. (org.). Planejamento, orçamento e sustentabilidade fiscal. Brasília, DF: Assecor, 2020.
MACIEL, Pedro J.; ARAÚJO, Rafael C. Regras fiscais no Brasil: proposta de harmonização do arcabouço fiscal de médio prazo. In: GIAMBIAGI, Fábio. (org.). O futuro do Brasil. São Paulo: Atlas, 2021.
SALTO, Felipe S. O tripé orçamentário Couri-Bijos. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 15 mar. 2022.
TOLLINI, Hélio. Deslocando o foco orçamentário do curto para o médio prazo. In: GIAMBIAGI, F.; FERREIRA, S.G.; AMBRÓZIO, A.M.H. (org). Reforma do Estado brasileiro: transformando a atuação do governo. São Paulo: Atlas, 2020.
[1] Consultores de Orçamento da Câmara dos Deputados.
[2] Estudo da OCDE realizado em 2019 examinou 34 países membros e concluiu que 31 deles adotam o QDMP. Desses, 25 praticam um modelo de base móvel, em que anualmente o exercício financeiro transcorrido é retirado e outro futuro acrescido. Os demais seis países utilizam periodicidade fixa, normalmente coincidente com o ciclo político (OCDE, 2019).
[3] O que não se confunde com ausência de válvulas de escape no modelo.
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