Emendas parlamentares, aqui e nos EUA
No Brasil, o dinheiro das emendas é pulverizado em pequenos projetos nas bases eleitorais dos congressistas
Por Roberto Macedo
Minha indisposição quanto a essas emendas é antiga. Meu primeiro artigo aqui sobre o assunto foi em 7/7/2011(!), intitulado Porcas emendas parlamentares, inspirado pela forma com que o assunto é encarado nos EUA, onde permanece como problema, ainda que não tão sério como no Brasil. Hoje vou comparar com mais detalhes as emendas nos dois países.
Lá, verbas desse tipo têm via metáfora uma conotação pejorativa, e é comum chamá-las de pork barrel. Consultando dicionário de inglês, vi que se trata da “apropriação legislativa destinada a prestigiar legisladores diante de seus constituintes”. Mas pork é carne de porco, e barrel é barril, lembrando tempos antigos quando a carne cozida era guardada em barricas com banha de porco. Eram mesmo uma porcaria, com seu conteúdo gorduroso, pegajoso e sanitariamente vulnerável.
Nos EUA há a organização CAGW (Citizens Against Government Waste, ou Cidadãos Contra o Desperdício Governamental, www.cagw.org), que procura identificar emendas desse tipo no orçamento federal, considerando como pork as que satisfazem ao menos um destes critérios: são solicitadas só por uma das Casas do Congresso; não são especificamente autorizadas; não são competitivamente concedidas; não foram solicitadas pelo Executivo; não passaram por audiências no Congresso; servem apenas a interesse local ou especial.
Listando porks, a CAGW faz todo ano um balanço do assunto, que em 2021 completou a sua 29.ª(!) edição, com o título (tradução parcial): Livro de Pork Congressional – Resumo, tendo na capa o desenho de um porco gordo com faixa de autoridade, e o subtítulo O livro que Washington não quer que você leia. Mensalmente, um congressista é apontado como porcalhão do mês, por ter apresentado a emenda mais descabida. O Congresso dos EUA havia colocado uma moratória nas emendas. Contudo, mais recentemente elas cresceram de 163 em 2017 para 285 em 2021, e o valor em bilhões de dólares passou de 6,8 para 16,8 no mesmo período.
Aqui o número de emendas é bem superior a 285, e creio que com participação maior no Orçamento, em termos relativos. O valor orçado em 2021 foi de R$ 35,4 bilhões, sendo que chamadas emendas de relator ficaram em R$ 18,5 bilhões, conforme informação da CNN. Elas não têm seus objetivos explicitados no Orçamento, e parece-me que podem ser definidas no próprio ano de execução. O Supremo já se manifestou contra essa falta de transparência, mas o assunto ainda não teve solução.
Nos EUA há uma restrição importantíssima: os congressistas que apresentam essas emendas devem certificar que eles, seus cônjuges e sua família não têm interesse nos seus projetos, uma regra não seguida no Brasil, onde em geral os congressistas fazem as emendas com o objetivo de favorecer municípios para ter apoio numa campanha de reeleição. Mas, segundo o referido balanço, “…não há restrição a que seja feita uma contribuição para a campanha de reeleição do congressista em troca de uma emenda”. Aqui também não há essa restrição.
Outra diferença é que lá, quando examinei o assunto em 2011, soube que dezenas de congressistas declararam sua oposição às emendas. O último relatório da CAGW mencionou o caso do famoso e já falecido senador do Partido Republicano John McCain, ex-candidato à presidência do país, que assim enfrentou os adeptos delas: “O problema com todos os argumentos deles é: quanto mais poderoso você seja, maior é a probabilidade de emplacar emendas. Assim, é um sistema corrupto”. Isto ocorre também no Brasil.
Em retrospecto, as grandes diferenças do Brasil relativamente aos EUA são que aqui as emendas vêm em maior número e custam relativamente mais; a regra de não beneficiar o próprio congressista e seus parentes não existe; é imensa a falta de transparência das emendas de relator, que lá inexistem. São usadas no troca-troca com o Congresso, de apoio em geral ao governo e em votações específicas. Com o domínio do Parlamento e do presidente pelo Centrão, este passou a controlar a maior parte do orçamento discricionário em seus objetivos, ao contrário das despesas obrigatórias de pessoal e Previdência. Como resultado, o ampliado dinheiro das emendas é pulverizado em pequenos projetos nas bases eleitorais dos congressistas, prejudicando investimentos tipicamente federais de alcance regional e nacional, como na proteção à Amazônia, e também em saúde, educação e inclusão social.
Ou seja, aqui a situação é muito mais grave. Sem o trabalho da imprensa, muito menos saberíamos sobre as emendas, com o destaque recente deste jornal e suas matérias sobre as emendas de relator, que consagraram o uso da expressão “orçamento secreto” para descrevê-las.
Falta disseminar o conhecimento sobre todas, realizar pesquisas junto aos congressistas para saber quem é contra ou a favor, em particular separando as do relator, e que surgissem entidades como a CAGW para acompanhar de perto o assunto e o chiqueiro político em torno dele.
Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.
Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 20 de janeiro de 2022.