O R$ 1,1 bilhão de aumentos salariais deveria ir para a população mais carente
Por Roberto Macedo
A má veio neste jornal no último dia 29. O título e o subtítulo da matéria já dizem bastante sobre o conteúdo: Prefeito de SP quer dobrar salários de indicados políticos. Reforma enviada à Câmara também prevê aumento para cargos de chefia, como subprefeitos: impacto será de R$1,1 bilhão em 2022. A proposta também alcança servidores de níveis básico e médio, entre outras extensões.
Para justificá-la, os argumentos apresentados estão longe de convincentes. Um alegado benefício diz que ela eliminará mais de 38 mil cargos hoje vagos. Ou seja, nada custam, não havendo, assim, uma redução de custo na proposta. O benefício estaria em que a Prefeitura, se quiser admitir mais servidores, teria de comprovar a fonte de recursos e ter autorização da Câmara Municipal.
Em cargos comissionados a Prefeitura tem hoje cerca de 5 mil funcionários, sendo a metade deles servidores efetivos que recebem adicionais em função do cargo ocupado. Concluí que pelo menos 2.500 são indicações políticas. Para os comissionados o aumento seria de 96%. No nível básico, a alta prevista é de 23% e no nível médio, de 30%. Ou seja, quem ganha mais receberá aumento maior. A razão, segundo um secretário municipal, seria corrigir “… defasagens e equilibrar valores pagos a comissionados”. Nesses termos, o argumento não convence. Precisaria ser detalhado e comprovado com mais e esclarecedoras informações.
O mesmo vale para aumentos propostos para o vale-alimentação e as bonificações, bem como para a gratificação atribuída aos profissionais de saúde e de educação que atuam nos 35 distritos da cidade com os menores Índices de Desenvolvimento Humano (IDHs).
Parece que foi o então prefeito Bruno Covas que inspirou os aumentos agora propostos. No final do ano passado ele sancionou lei que aumentou o seu próprio salário de R$ 24,1 mil para R$ 35,4 mil, ou 47% a mais. O salário do governador João Doria é de R$ 23 mil. Este é baixo e o do prefeito, muito alto.
Falando à reportagem sobre o assunto, o prefeito Ricardo Nunes disse que parte dos salários está muito defasada e se os funcionários não forem valorizados há o risco de “… perdê-los para a iniciativa privada”.
Essa perda para outros empregadores é uma questão importante que os gestores de recursos humanos avaliam ao examinar a estrutura salarial de sua organização. Mas não se pode ficar só na conversa. O que foi dito precisaria ser sustentado por pesquisas sobre os salários na Prefeitura e no mercado de trabalho, realizada por instituição especializada e de prestígio.
A proposta deveria ser examinada com rigor pela Câmara Municipal, numa discussão transparente para a sociedade em geral. Temo, entretanto, que essas ponderações venham a ser desprezadas por motivos de cunho político, pois muitos vereadores indicam ocupantes de cargos comissionados.
Destaco duas outras restrições adicionais. O custo é alto, R$ $1,1 bilhão em 2022, e presumo que seja assim anualmente daí em diante. E o momento é inoportuno.
Há perto de 14 milhões de desempregados no País, muitos até desistiram de procurar emprego e não são contados como desempregados. A população carente aumentou muito, e com dificuldades que levam mesmo à falta de alimentos, recorrendo até a ossos e outros resíduos de carne. Na situação atual, esse dinheiro deveria ser destinado aos cidadãos mais necessitados e suas famílias.
A outra notícia, no dia 1.º deste mês, também no Estadão, começa boa pelo título: SP vai priorizar áreas mais pobres em divisão de verba. O programa, de natureza plurianual, prevê uma aplicação de R$ 5 bilhões no período 2022-2025, o que implicaria uma média de R$ 1,25 bilhão por ano. A escolha das áreas teve por critério condições de vulnerabilidade social, infraestrutura urbana e demografia, com pesos de 60%, 30% e 10%, respectivamente. Como resultado, as regiões de Capela do Socorro, M’Boi Mirim e Campo Limpo, todas elas carentes, terão 20% dos recursos. Na outra ponta, Santo Amaro, Vila Mariana e Pinheiros ficarão com apenas 2,45% do total. Mas não é esclarecido se são gastos adicionais ou só redistribuição dos hoje realizados.
Um aspecto muito importante é que essas regras foram definidas em cooperação técnica com a Fundação Tide Setubal e a Rede Nossa São Paulo, o que, a meu ver, minimizou o impacto de influências políticas, fazendo que o programa possa atuar para reduzir desigualdades sociais. Conheço mais a Fundação Tide Setubal, uma organização não governamental de origem familiar. As periferias urbanas são o foco do seu trabalho.
Ao projeto de aumento de salários faltou essa cooperação técnica, conforme sugerida acima, que lhe desse melhor fundamentação para justificá-lo, mas sempre com a questão econômico-social do momento postergando sua adoção até que essa questão seja aliviada, pois, neste momento, o dinheiro poupado deveria, vale repetir, ter como destino o socorro aos segmentos mais necessitados da população.
* Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.
Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 7 de outubro de 2021.