Por Luiz Alberto Machado*
Tenho absoluta convicção de que uma das razões da dificuldade para a consolidação da cidadania no Brasil reside no caráter patrimonialista que envolve nossa formação política.
A concepção patrimonialista da história político-econômica do Brasil é, de certa forma, uma contraposição à teoria da dependência, que surgiu por volta da década de 1960 e ganhou enorme popularidade nos anos seguintes. Tal teoria, que explicava o atraso relativo dos países latino-americanos a partir de uma relação perversa que os vinculava aos países desenvolvidos na nova divisão internacional do trabalho, ganhou projeção a partir da publicação do livro Dependência e desenvolvimento na América Latina, de autoria de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto. Propunha que o subdesenvolvimento dos países latino-americanos era consequência inevitável da exploração a que estavam submetidos por parte dos países desenvolvidos – chamados de centrais –, situação a que estariam condenados a permanecer em razão das relações internacionais vigentes. Dava, portanto, a certeza de que a responsabilidade pelo nosso subdesenvolvimento era integralmente dos países desenvolvidos, não restando aos países latino-americanos outro destino que não o de desempenhar o papel de vítimas da história.
Esse tipo de ponto de vista, que praticamente nos isentava de qualquer responsabilidade pelo subdesenvolvimento da região, jogando toda a culpa pelo nosso atraso nas costas dos países desenvolvidos, incomodou alguns pensadores que enxergavam nessa postura uma forma confortável de encarar a questão. Assim, agindo a princípio de forma assistemática, já que desenvolviam suas pesquisas e seus trabalhos em instituições e locais diferentes, acabaram dando origem a uma corrente de interpretação que se convencionou chamar de patrimonialista e que tem no deslocamento do foco central de sua análise da realidade latino-americana de fora para dentro dos países da região uma de suas marcas principais.
O Estado brasileiro, em sua conformação histórica, corresponde a um tipo de dominação política que na tipologia de Max Weber se denomina “organização estatal-patrimonial”. Trata-se de categoria que permite abarcar em toda a sua complexidade e profundidade o fenômeno do poder entre nós brasileiros, já que não restrita a variáveis puramente econômicas, como no marxismo, por exemplo. A tentativa de reduzir a formação do Estado à simples expressão de interesses de classe tem-se revelado insuficiente para explicar a história política de nosso país, sobretudo por desconsiderar as variáveis culturais como fatores configuradores da ordem política.
O mando político, no mundo hispânico, foi tradicionalmente entendido como patrimônio pessoal do governante – uma extensão do poder doméstico – e nisso consiste o aspecto nuclear da dominação patrimonial. Despojado de sua dimensão pública, o poder, nos moldes do patrimonialismo, constitui, nas palavras de Max Weber, “um direito próprio (do soberano) apropriado em igual forma que qualquer outro objeto de possessão”.
Diversos autores, com base nessa concepção weberiana, desenvolveram interessante análise da formação político-econômica do Brasil por meio da qual têm procurado identificar a origem de uma série de problemas que, até hoje, assolam o País. Entre esses autores, destacam-se Raymundo Faoro, José Nêumanne Pinto, Antonio Paim, Ricardo Vélez Rodríguez, Simon Schwartzman e José Júlio Senna. Em suas análises, realçam as principais características das relações entre o Estado e a sociedade no contexto do patrimonialismo brasileiro: (i) o centralismo; e (ii) o estatismo e seus subprodutos: autossuficiência do poder; raquitismo da vida civil; insolidarismo; privatização da coisa pública.
Uma das interpretações que mais me agrada entre as dos analistas que enfatizam o caráter patrimonialista da formação do Estado no Brasil é a do jornalista José Nêumanne, apresentada nos capítulos iniciais de seu livro Reféns do passado. Nele, Nêumanne chama a atenção para a enorme influência na época do Brasil-colônia de três instituições trazidas prontas pela coroa portuguesa – o Estado, o exército e a igreja – e de seus respectivos estamentos, o estamento burocrático, os militares e o clero. Direta ou indiretamente a influência desses estamentos esteve presente nos grandes acontecimentos da história política brasileira. Seus membros, sempre que necessário, colocavam os interesses do estamento a que pertenciam acima dos próprios interesses nacionais. A característica comum a essas instituições é o fato de não serem porosas à participação da opinião pública, assumindo, no Brasil e no exterior, vida própria, independente da vontade popular.
Na nossa história recente, temos tido oportunidade de presenciar exemplos claros desse caráter patrimonialista em episódios que redundaram no impeachment dos presidentes Collor e Dilma Rousseff, nos escândalos do mensalão e do petrolão durante os governos do presidente Lula e nas frequentes ações do presidente Bolsonaro em que fica flagrante a influência de seus filhos ou a preocupação de protegê-los diante de qualquer denúncia, como no caso das rachadinhas. São casos evidentes de usar o poder ou a coisa pública em benefício de interesses de grupos particulares. Podem variar em grau de intensidade, mas não deixam de marcar presença.
Em decorrência disso, além dos frequentes casos de corrupção, impunidade, empreguismo e nepotismo, ocorre uma brutal perda de eficiência, que compromete a produtividade, reduz a competitividade da economia nacional e mancha a imagem internacional do Brasil.
* Luiz Alberto Machado é economista pela Universidade Mackenzie (1977), mestre em Criatividade e Inovação pela Universidade Fernando Pessoa (Portugal, 2012), assessor da Fundação Espaço Democrático e conselheiro do Instituto Fernand Braudel.
Artigo publicado no Blog de Fausto Macedo, O Estado de S. Paulo, em 29 de setembro de 2021.