O futuro dos ventos brasileiros: desafios regulatórios da energia eólica
Por Elbia Gannoum*
O setor eólico brasileiro tem experimentado um crescimento virtuoso, fruto de um esforço dedicado de empresas, governos e da ótima qualidade dos nossos ventos, um dos melhores do mundo para a produção de energia. Em 2010, tínhamos menos de 1 GW de capacidade instalada. Vamos terminar o ano de 2021 com 20 GW, mais de 740 parques eólicos e cerca de 8.700 aerogeradores em operação. Estes dados mostram uma indústria sólida, empregando milhares de pessoas e promovendo desenvolvimento econômico e social. A evolução da energia eólica no Brasil tem sido caracterizada por aperfeiçoamentos regulatórios, técnicos, ambientais e financeiros diante de um setor elétrico nacional e mundial em evolução.
De uma participação incipiente na matriz de geração até boa parte da década de 2000, a fonte se tornou em 2019 a segunda principal fonte de eletricidade do país em capacidade instalada, uma posição que deverá ser reforçada ao longo das próximas décadas diante de um potencial promissor em terra e no mar e com a possibilidade de o hidrogênio verde ganhar espaço no Brasil e mundo, tornando-se uma importante fonte de demanda por energia elétrica renovável.
Este sucesso pode ser explicado tanto pela abundância e qualidade dos recursos eólicos, quanto pelas políticas energéticas que impulsionaram a construção de parques eólicos e incentivaram o desenvolvimento da indústria de equipamentos. Todo este desenvolvimento virtuoso da eólica foi sustentado, ao longo dos anos, por evoluções regulatórias que foram acompanhando o crescimento da fonte.
O futuro da eólica é promissor. Até 2024, por exemplo, teremos pelo menos 30 GWs de capacidade instalada, considerando apenas os contratos já assinados. Com novos leilões e contratos no mercado livre este número pode ser ainda maior. E as fronteiras tecnológicas também prometem uma grande expansão para a energia dos ventos. Refiro-me, por exemplo, às usinas offshore, hidrogênio para geração de energia e parques híbridos. E todo esse desenvolvimento exigirá, também, avanços regulatórios.
Primeiro, vamos analisar as usinas híbridas, que mesclam, por exemplo, energia eólica e solar em um mesmo local. A combinar duas fontes de energia complementares, a hibridização pode ser usada para otimizar a utilização da rede de transmissão, trazendo ganhos na infraestrutura, logística dos projetos e na questão dos encargos, além de estar sendo incentivada por novo mecanismo de precificação.
Os parques híbridos ainda surgem em cenário de esgotamento da transmissão, principalmente no Nordeste, e no avanço das fontes solares e eólicas, que têm complementariedade entre si, além de ganhos de eficiência se tratadas conjuntamente. Ao contar com energia solar e eólica em um mesmo local, o investidor poderá ter economia de escala e de escopo, mas a regulação dos parques híbridos ainda contém incertezas.
No segundo semestre de 2020, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) lançou a primeira fase da Consulta Pública nº 061/2020 para debater a normatização para o estabelecimento de usinas híbridas e associadas. Nessa etapa, se colocou em discussão a Análise de Impacto Regulatório (AIR) elaborada pelas áreas técnicas da Agência. O Relatório de AIR em análise na consulta pública trata, entre outros, de possíveis alterações na emissão das outorgas de geração, na aplicação dos descontos na Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição (TUSD) e na Tarifa de Uso do Sistema de Transmissão (TUST).
Em 17 de agosto de 2021, foi aberta a segunda etapa da Consulta Pública pela Aneel. Há dois tipos de projetos, usinas híbridas e usinas associadas. Ambas são formadas por diferentes tecnologias de geração, compartilhando fisicamente a mesma estrutura de rede. A diferença é que, nas híbridas, pode haver uma única outorga e uma única medição. Nas usinas associadas, pode haver duas outorgas distintas e, necessariamente, duas medições.
Até julho de 2021, não há tratamento regulatório específico para as usinas associadas e/ou híbridas. Na prática, os empreendedores estão ‘anexando’ painéis solares (fotovoltaicos) os parques eólicos com objetivo de auferir os benefícios em relação à implantação da nova usina com o compartilhamento de algumas instalações e compartilhamento da operação de ambas[1]. Neste processo, as usinas são tratadas individualmente segundo regulação específica para cada fonte. Não existe, portanto, um tratamento diferenciado focado no conjunto. Para os investidores, existe necessidade regulatória de se definir um enquadramento específico para usinas do tipo associadas e híbridas, de modo a contemplar as características destas tipologias e dar tratamento específico, diante das economias de escala e escopo que estes projetos são capazes de auferir.
Sem regulação específica, embora haja uma otimização do uso das linhas de transmissão, ainda não há possibilidade de contratação e pagamento pela tarifa otimizada, o chamado Montante do Uso do Sistema de Transmissão ou Distribuição (MUST/MUSD) O tratamento regulatório vigente, dado pelas Resoluções Normativas nº 666/2015 e nº 506/2012 da Aneel, indica a contratação de um MUST e MUSD, respectivamente, equivalente a 100% da Potência Nominal Líquida da fonte Solar FV/Eólica (Potência Injetada = Potência Nominal – Consumo Interno –Perdas até Ponto de Entrega). Dessa forma, em usinas híbridas/associadas isso implicaria, estrito senso, a contratação da soma da potência nominal líquida das fontes. Esta contratação agregada não contribui com o (quase) frequente “gargalo” caracterizado pela necessidade de implantação de projetos em pontos com rede de conexão, muitas vezes já esgotada em termos de potência contratada.
Não faz sentido econômico, e tampouco técnico a contratação de um MUST equivalente a 100% da Potência Nominal Líquida da fonte Solar FV/Eólica, mas sim em um valor que corresponda à expectativa de injeção ótima do conjunto de fontes. Se o investidor tem um parque eólico de 100 MW que só gera grande parte de sua energia à noite, o empreendedor precisa contratar e pagar para utilizar o montante de 100 MW, mesmo que a rede fique ociosa durante o dia, quando o vento é mais fraco. Se decidir acrescentar um parque solar fotovoltaico de 50 MW, precisará contratar um total de 150 MW, o que encarece o empreendimento.
Uma vez que um dos interesses de se viabilizar projetos híbridos reside no compartilhamento da rede, em razão dos benefícios técnicos-financeiros gerados, ou seja, há necessidade de aprimoramento das Resoluções Normativas vigentes de forma a permitir contratação do montante de uso do sistema de forma diferenciada para os casos de usinas híbridas e associadas.
O futuro da energia eólica também está na exploração das usinas offshore, cujo potencial no Brasil é muito promissor. O Brasil possui um potencial de geração de energia eólica em alto-mar de aproximadamente 1000 gigawatts (1TW) em locais com profundidade de até 50 metros, de acordo com estudos do Banco Mundial e da Empresa de Pesquisa Energética (EPE). Há incertezas em relação ao meio ambiente, já que as questões jurídicas atreladas a esse tipo de empreendimento são diferentes dos parques eólicos terrestres. Enquanto os parques eólicos onshore são estruturados majoritariamente em terrenos privados, os parques eólicos offshore são implantados necessariamente em áreas de propriedade da União (mar territorial, plataforma continental e a zona econômica exclusiva).
Do ponto de vista regulatório, as incertezas se referem, por exemplo, à forma que ocorrerá a utilização do espaço marinho, como a definição do regime de uso do espaço público para seleção de interessados; a necessidade de cláusulas específicas no instrumento de outorga do uso do espaço marítimo quanto ao objeto, prazo, do inadimplemento, desmobilização etc.; e a adoção de critérios para o cálculo do preço para o uso do espaço marítimo.
Outra incerteza jurídica sobre esses empreendimentos se refere à questão ambiental. A Resolução Conama nº 462/2014 estabelece procedimentos para o licenciamento ambiental de empreendimentos de geração de energia elétrica a partir de fonte eólica somente em superfície terrestre. Já há mais de vinte projetos de usinas eólicas, no total de 46 GW, sob licenciamento ambiental no Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), cuja competência é determinada pelo Decreto Federal nº 8.437/2015, que concedeu ao órgão a competência para licenciar usinas eólicas offshore e em zona de transição terra-mar. Para assegurar maior segurança jurídica para a instalação de eólicas offshore no Brasil, seria válido refletir sobre uma regulamentação ambiental específica com base na Resolução Conama 462/2014 que estabeleça critérios objetivos para definir quais os estudos de impactos ambientais a serem realizados na instalação de usinas eólicas em alto mar.
Uma outra fronteira importante onde a eólica se insere é a utilização de hidrogênio para geração de energia. Com 85% de sua matriz de geração de energia elétrica baseada em fontes renováveis, o Brasil tem potencial para liderar a transição para uma economia de baixo carbono nos próximos anos, seja incorporando novos projetos de eólicas, biomassa e solares, seja com inovações como o hidrogênio verde.
O trunfo brasileiro é a complementariedade entre suas fontes renováveis. Quando ocorre o período seco, de maio a novembro, as hidrelétricas perdem água, mas a biomassa de cana pode compensar parte dessa perda. Os ventos que fazem girar as turbinas das eólicas sopram mais de madrugada, enquanto o sol brilha no horário de maior consumo. Essa possibilidade de produzir energia renovável 24 horas sete dias da semana cria uma oportunidade em um mercado nascente: o hidrogênio verde, nicho que o país poderá se tornar um player global em um momento em que países como Alemanha e Portugal já começam a discutir leilões de contratação de importação de hidrogênio verde.
A descarbonização total de certos setores, como transporte, indústria e usos que são intensivos em calor, pode ser difícil apenas por meio da eletrificação a partir de renováveis. Esse desafio poderia ser enfrentado pelo hidrogênio a partir de renováveis, que permite que grandes quantidades de energia renovável sejam canalizadas do setor elétrico para os setores de uso final, tendo papel relevante na transição energética. A tecnologia é vista como eficiente para ajudar a descarbonizar principalmente o setor de transporte.
O hidrogênio é utilizado pela indústria química há mais de um século, produzindo fertilizantes e metanol. A partir do crescimento das fontes renováveis de energia foi possível obter o chamado hidrogênio verde, produzido com a energia de hidrelétricas, solar, eólica ou biomassa a partir de eletrólise (carga de energia para separação do hidrogênio). O Brasil, além do potencial de energia renovável, tem liderança mundial em agronegócio, mas é importador de fertilizantes, o que gera oportunidades para a agroenergia.
Com a publicação da Resolução nº 6/2021 do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), o governo federal propôs a elaboração de diretrizes para o Programa Nacional do Hidrogênio. Segundo o governo federal, para a consolidação da economia do hidrogênio, pressupõe-se o desenvolvimento de uma infraestrutura de produção, armazenamento, transporte e distribuição do hidrogênio, pelo lado da oferta, bem como a inserção do energético na matriz de consumo em setores-chaves, como transportes, siderurgia e de fertilizantes.
No aspecto tecnológico, há inúmeros desafios a serem superados, embora sua produção e utilização já seja realidade em alguns nichos. O armazenamento do hidrogênio é um deles, pois exige elevadas pressões para armazenamento no estado gasoso, ou criogenia para armazenamento no estado líquido. A Resolução do CNPE abre caminho para a proposição de diretrizes para o Programa Nacional do Hidrogênio, em cooperação com os Ministérios de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e Desenvolvimento Regional (MDR), com apoio da Empresa de Pesquisa Energética (EPE). “Para fazer frente a esse desafio, são necessárias novas normas de segurança, novos desenhos regulatórios e todo um arcabouço que permita ao hidrogênio alcançar níveis de competitividade que abram caminho para o uso em grande escala”, informou o governo ao propor diretrizes para o segmento.
Um dos pontos que terão de ser resolvidos é quem regulará seu desenvolvimento da inovação. Em nota técnica de fevereiro de 2021, a EPE cita oito formas de produção do insumo a partir de diferentes matérias-primas como carvão, urânio, petróleo, gás natural, biomassa, metano e água, fontes renováveis. “Olhando-se o desenho de competências apenas das Agências Reguladoras com possível projeção sobre o tema, notadamente ANP, ANEEL e Agência Nacional de Águas (ANA), tem-se que as competências atualmente vigentes na regulação não são claras sobre sua incidência ou não ao caso do hidrogênio e não há uma previsão transversal que alcance etapas da cadeia que possam compreender o hidrogênio obtido a partir de diferentes fontes – a exemplo de seu transporte, regulação de qualidade e comercialização. hidrogênio obtido de combustíveis fósseis como petróleo e gás natural entra no escopo de regulação da ANP, vez que tais recursos minerais são bens da União e que a atividade de refino de petróleo é monopólio deste ente federativo. Essa competência é evidenciada também na Lei nº 9.478/97, que expõe que a Agência é o órgão regulador da indústria do petróleo, gás natural, seus derivados.
O futuro energético do Brasil é bastante promissor. Com recursos naturais abundantes, como sol, vento, água, o país poderá liderar a transição para uma economia de baixo carbono. O setor eólico poderá desempenhar um papel ainda mais relevante dentro dessa agenda. Para que isso ocorra, serão necessários aperfeiçoamentos regulatórios para que o potencial do país possa ser uma realidade. Outro desafio será colocar em prática a regulação de modernização do setor de energia, lançada pela CP nº 33, em 2017. Em julho de 2021, vários pontos da agenda estão em discussão na Câmara dos Deputados pelo Projeto de Lei nº 414, que discute a ampliação da abertura do mercado livre para a baixa tensão. Em julho de 2021, o projeto aguardava despacho do Presidente da casa legislativa para seguir em tramitação. Um tópico do PL 414/2021, que merece atenção, encontra-se na separação entre lastro e energia elétrica. De acordo com a definição do novo art. 3°, §5°, I, da Lei n° 10.848/2004, lastro é a contribuição de cada empreendimento ao provimento de confiabilidade e adequabilidade sistêmica. Trata-se de uma garantia exigida pelo Ministério de Minas e Energia, a ser paga por geradores, distribuidores e consumidores de energia. Tais lastros, além de dar mais confiança ao consumidor, poderão facilitar a obtenção de financiamentos no setor financeiro privado. Pelas regras atualmente vigentes, o lastro e a energia elétrica são negociados como um produto unificado. Os consumidores cativos, atendidos pelas distribuidoras, arcam com a maior parcela dos custos do lastro. O projeto busca promover alterações legislativas que visam ao reequilíbrio desse encargo entre os consumidores dos mercados livre e regulado.
Com um histórico sólido de avanços regulatórios, entendo que os desafios aqui mencionados fazem parte do caminho e que serão superados, após as regulares discussões técnicas. O futuro da energia eólica, como gosto de repetir sempre que posso, é muito promissor e os avanços regulatórios sustentarão essa expansão.
[1] Ao instalar numa planta de energia eólica já em operação os painéis solares, ou fazer o projeto envolvendo ao mesmo tempo painéis solares e turbinas eólicas há um significativo ganho de economia de escala e de escopo, tendo em vista que a energia solar e produzida durante o dia e as turbinas produzem mais durante a noite, podendo desta forma maximizar a produção de energia e utilizar a mesma rede de transmissão.
* Elbia Gannoum é economista, Phd pela Universidade Federal de Santa Catarina. É presidente executiva da ABEEólica – Associação Brasileira de Energia Eólica. Vice-chair do GWEC (Global Wind Energy Council). Foi eleita em 2020 embaixadora global do – Global Women’s Network for the Energy Transition, GWNET, and Global Wind Energy Council, GWEC.