Por César Mattos* & Wagner Fischer**
Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 2.950/19 que visa estabelecer normas para proteção de animais em situação vulnerável diante de impactos decorrentes de empreendimentos de alto risco para a vida silvestre. De autoria do senador Wellington Fagundes (PL/MT), o projeto já contou com um Substitutivo do deputado Glaustin da Fokus (PSC-GO), aprovado na Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviços na Câmara dos Deputados, que aperfeiçoou bastante a proposição original. Atualmente a proposta aguarda indicação de relator na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados para prosseguir sua tramitação.
Tal processo legislativo é uma grande oportunidade para que os efeitos negativos de atividades socioeconômicas sobre o meio ambiente possam ser revisitados, compreendidos, debatidos e minimizados, sobretudo no que tange às questões de proteção e bem-estar de diversas espécies animais em território nacional.
A proposta em questão vem correndo em paralelo com a discussão de outro Projeto, o da Lei Geral de Licenciamento Ambiental. Nesse contexto, vale rememorar um dos princípios que norteiam o licenciamento ambiental relacionado às responsabilidades inerentes ao chamado “poluidor-pagador” quanto aos mais diversos usos da terra, a partir dos impactos por eles causados. Ainda que o marco geral de licenciamento ambiental esteja sendo devidamente assentado no arcabouço legislativo nacional, como parte essencial de um dos principais instrumentos da Política Nacional de Meio Ambiente adotados pela autoridade pública, algumas atividades humanas despertam preocupação específica da sociedade pelo alto risco que proporcionam à biodiversidade local e regional ao longo de seu ciclo de instalação e operação.
Animais silvestres são elementos da biodiversidade brasileira que invariavelmente sofrem diversos impactos provocados pela atividade humana. Contudo, há certos tipos de empreendimentos que implicam em graves, constantes e iminentes ameaças ao bem-estar dos animais que a eles estejam associados, especialmente para as espécies da fauna nativa brasileira. Empreendimentos rodoviários e de mineração são exemplos notáveis desse tipo de situação, uma vez que a partir deles são comuns as ocorrências de eventos catastróficos, como incêndios descontrolados da vegetação lindeira, atropelamentos de animais, rompimento de barragens de rejeitos de mineração, entre outras situações preocupantes para a conservação da biodiversidade. Ainda que seja difícil de se precisar o momento em que tais situações poderão ocorrer, e muitas certamente irão acontecer realmente, cabe às autoridades públicas licenciadoras dessas atividades estarem atentas às possibilidades de que tais eventos venham impactar drasticamente tanto a vida silvestre quanto a humana.
Assim, torna-se plenamente justificável se assegurar a efetiva adoção de medidas preventivas e protetivas quando houver riscos suficientemente plausíveis de que tais perturbadores impactos contra a fauna ocorram. O chamado “dano esperado” combina a probabilidade e a magnitude de sua ocorrência, servindo como alerta prévio para legitimar a implementação de medidas preventivas necessárias, tecnicamente embasadas por outro princípio basilar da conservação biológica, o princípio da precaução. Por conta disso, medidas desta natureza devem estar incorporadas no próprio processo de licenciamento ambiental, dentro dos estudos ambientais, análises de risco e planos de contingência a serem produzidos. É na fase de licenciamento que se verifica a magnitude, intensidade e longevidade dos efeitos dos empreendimentos para que sejam estabelecidas as ações necessárias de cunho preventivo e emergencial, bem como aquelas de curto, médio e longo prazos. Considerando as questões de proteção e defesa animal, a proposta legislativa em tela se presta a trazer inovações complementares neste processo, tanto as de caráter preventivo, voltadas a evitar danos possíveis, quanto as de caráter reparatório, que buscam sanear e minimizar aqueles ocasionalmente inevitáveis, inseridas no contexto de mitigação ou compensação ambiental do empreendimento em questão.
No âmbito dessas diretrizes e medidas preventivas inovadoras, se destacam: (i) as medidas voltadas ao próprio empreendimento em si; e (ii) aquelas destinadas a prover os recursos necessários para que se possa exercer os efetivos cuidados, com o eventual resgate, tratamento, reabilitação e destinação dos animais vitimados. A redução da probabilidade de ocorrência desses incidentes depende de que as tais medidas preventivas do tipo (i) sejam mais custo-efetivas do que aquelas do tipo (ii) e, portanto, prioritárias e preferenciais. Entretanto, ambas não são excludentes entre si, sobretudo em atividades em que o risco à vida silvestre persiste, ainda que todas as cautelas estejam presentes. Logo, a combinação de ambos os tipos de medidas preventivas torna mais robusta e efetiva a resolução do problema, desde que tal arranjo permita se chegar ao menor dano esperado aos animais sujeitos a situações de vulnerabilidade.
Nesse sentido, o Projeto de Lei mencionado vem aperfeiçoar o arcabouço legislativo referente ao processo de licenciamento ambiental de empreendimentos de alto risco para a proteção da fauna, buscando assegurar três aspectos fundamentais: (i) estabelecer medidas preventivas e mitigadoras efetivas e essenciais para evitar ou sanear eficientemente danos à fauna da melhor forma possível; (ii) assegurar que a adoção de tais medidas encontre na legislação as condições necessárias para sua sustentabilidade financeira e operacional ao longo do tempo; e (iii) definir e tipificar a punibilidade para aqueles empreendedores que descumpram ou venham a infringir tais dispositivos legais, caracterizando este tipo penal como crime de “maus tratos aos animais”.
Ao instituir medidas preventivas e mitigadoras necessárias ao planejamento e operação de empreendimentos, a proposta busca assegurar o desenvolvimento e implementação de infraestrutura de segurança e proteção à vida silvestre e planos de contingência para tratamento de animais em caso de acidentes e desastres ambientais. Isso envolve o fornecimento de todos os meios, incluindo máquinas, viaturas, equipamentos e equipes de socorristas destinados à busca, salvamento, manejo e cuidados imediatos a animais, durante e após ocasionais incidentes. Além disso, deve existir bases de apoio com água, alimentos, medicamentos e atendimento veterinário suficientes aos animais durante e após o salvamento, inclusive por meio dos chamados Centros de Triagem de Animais Silvestres – CETAS, que são estruturas gerenciadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, responsável por este tipo de atendimento a animais silvestres em nível federal. A criação ou disponibilização de bases e abrigos para adequada acomodação e tratamento de animais, inclusive pela instalação de novos CETAS também estão previstas. Após tratamento e reabilitação, tais estruturas deverão ser promotoras de ações de translocação e soltura, ou mesmo de projetos de reintrodução de animais silvestres em áreas naturais designadas para isso. Quando se tratar de animais domésticos, os procedimentos incluirão o tratamento e a devolução deles a seus respectivos proprietários.
Também está prevista a organização de brigadas de socorristas, com voluntários treinados, bem como a divulgação de material informativo voltado à evacuação, busca, resgate, salvamento, cuidados imediatos, reabilitação e a adequada destinação dos animais antes, durante e após as ocorrências. Em casos em que tais incidentes sejam previsíveis, como em rodovias e áreas propensas a incêndios da vegetação, medidas preventivas de proteção, monitoramento, manejo, afugentamento, resgate e translocação precoce deverão ser providenciadas a tempo. A depender da situação paisagística e ambiental em que estradas estejam inseridas, poderá ser determinada a restrição do acesso da fauna a determinadas áreas de domínio da rodovia, em especial em trechos da via que apresentem risco imediato de acidentes decorrentes da circulação de animais de grande porte. Além disso, está prevista também a implementação de passagens em desnível e cercamento das laterais da pista.
Sob a ótica da sustentabilidade financeira e operacional dessas estruturas e medidas de proteção animal, busca-se adequar a legislação referente aos recursos oriundos da compensação ambiental de empreendimentos desta natureza. Assim, no caso de empreendimentos de significativo impacto ambiental, inclusive envolvendo riscos iminentes de desastres ou acidentes que acarretem danos diretos à fauna silvestre, o empreendedor poderá apoiar a implantação e manutenção de Centro de Triagem de Animais Silvestres – CETAS ou estrutura similar, e não apenas Unidades de Conservação de Proteção Integral, conforme dispõe a legislação vigente (Lei 9.985/2000, Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC).
Quanto às infrações, buscou-se definir sanções diferenciadas com vistas a coibir o descumprimento de medidas preventivas e mitigadoras por parte do empreendedor. No caso de medidas preventivas, foi idealizada a implementação de uma regulação responsiva gradual, iniciando-se por sanções mais leves que vão se tornando cada vez rígidas na hipótese de recorrência no seu descumprimento. Sendo assim, foram definidas as seguintes sanções, em ordem sequencial de agravo: I – advertência escrita e privada para a empresa; II – advertência escrita em carta aberta à empresa, a ser publicada em jornais local e nacional; III – multa e a sanção do item II, incluindo a publicização de ambas; IV – suspensão da licença de operação do empreendimento entre seis meses e um ano; V – suspensão da licença de operação do empreendimento de um a dois anos; VI – cassação da licença de operação do empreendimento. Já o descumprimento de medidas mitigadoras torna a infração mais séria e gravosa, visto que isso passa a se configurar como prática de crime ambiental, com penalidade de detenção, de três meses a um ano, além de multa, conforme previsto na Lei 9.605/1998 (Lei de Crimes Ambientais). Ademais, a depender da gravidade dos danos causados aos animais, somam-se a essa pena as sanções de suspensão e, no limite, também a cassação da licença do empreendimento.
Por fim, a ideia geral do aperfeiçoamento jurídico ora proposto visa dar alternativas técnicas aos próprios órgãos ambientais licenciadores federativos para definir quais serão os Centros de Triagem de Animais Silvestres (CETAS) ou demais estruturas similares a serem beneficiados. Tais decisões devem considerar as propostas apresentadas no Estudo de Impacto Ambiental e no Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA), ouvidos os respectivos empreendedores, podendo inclusive ser estabelecida a necessidade de criação de novos CETAS em localização mais estratégica a suas funcionalidades associadas ao respectivo empreendimento. Os órgãos licenciadores também deverão providenciar a conceituação e definição formal do que será considerado empreendimento ou atividade de risco suficientemente elevado para a fauna em ato regulamentar específico. Todas essas medidas a serem executadas pelo empreendedor poderão ser feitas em articulação com os governos federal, estadual, distrital e municipal, organizações civis, setor privado, voluntariado e demais parceiros interessados da sociedade em geral.
Sendo assim, empreendimentos ou atividades capazes de causar significativa degradação ambiental e ao bem-estar animal deverão adotar medidas preventivas, mitigadoras e compensatórias para neutralizar ou reduzir o impacto à fauna residente ou migratória. Em caso de emergência, acidente ou desastre ambiental, seus responsáveis legais deverão estar aptos e prontos a arcar com o custeio imediato de atividades saneadoras, envolvendo resgate, acolhimento, pronto tratamento e reabilitação dos animais sobreviventes, seja em CETAS ou em alguma estrutura equivalente. Tai atividades deverão culminar com a destinação final dos animais recuperados, preferencialmente com a soltura em seu habitat natural. Deverão existir bases e equipes de apoio capacitadas para procedimentos e cuidados necessários aos animais em sofrimento, incluindo médicos veterinários, áreas de observação e isolamento para portadores de doenças infectocontagiosas, além de vacinação e identificação daqueles espécimes domésticos que precisarão ser devolvidos aos seus proprietários.
Com isso, espera-se que animais silvestres possam ter a proteção e os devidos cuidados e para assegurar sua readaptação à vida livre e, então, o seu retorno à natureza, seja nas áreas cadastradas para isso, como as chamadas Áreas de Soltura de Animais Silvestres (ASAS/Ibama), ou ainda, por meio de projetos de reintrodução ou revigoramento populacional específicos e devidamente autorizados. Existem ambientes depauperados em termos de riqueza e diversidade faunística, inclusive onde certas espécies já se tornaram extintas, mas que podem e necessitam ser recuperados. Eis aí grandes oportunidades para que tais ações aconteçam de forma permanente e sustentada para contribuir efetivamente com a conservação da biodiversidade nacional.
Todo esse aparato deverá permitir ainda qualificar a triagem das espécies vitimadas e contribuir para o desenvolvimento científico e as inovações biotecnológicas decorrentes. No caso do resgate de serpentes de espécies peçonhentas nativas, por exemplo, tais animais poderão ser prioritariamente encaminhados a instituições públicas de pesquisa, objetivando sua avaliação para a produção de soros antiofídicos para a rede pública de saúde. O mesmo deve ocorrer com as carcaças ou partes de animais silvestres mortos nestes incidentes, que deverão ser encaminhadas a instituições de ensino e pesquisa para o devido aproveitamento científico ou didático, preferencialmente em coleções biológicas, científicas ou didáticas registradas no Cadastro Nacional de Coleções Biológicas ex situ ou em órgãos vinculados à agricultura ou saúde.
Acredita-se que a estrutura do Substitutivo do Deputado Glaustin da Fokus aprovado na primeira comissão de mérito da Câmara dos Deputados tenha atingido resultados bastante satisfatórios na métrica de reduzir externalidades negativas incidentes sobre a fauna nacional da forma mais eficiente possível. Para isso, o Substitutivo do Deputado construiu uma solução que equilibra de forma bastante adequada e pragmática a necessidade de implementação de medidas preventivas e reparadoras. Isso constitui um bom exemplo de que é possível conciliar modelos equilibrados de intervenção regulatória do Estado que sejam ao mesmo tempo economicamente eficientes e ambientalmente responsáveis.
Assim, reforça-se a expectativa de que a discussão de tal promissor Projeto possa, em breve, ser retomada na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, mantendo-se a mesma linha adotada na Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviços. Todos aqueles que se preocupam com o bem-estar dos animais e a preservação do meio ambiente efusivamente agradecem.
* César Mattos é doutor em Economia e ex-secretário de Advocacia da Concorrência e Competitividade.
** Wagner Fischer é doutor em Ecologia e diretor do Departamento de Conservação e Manejo de Espécies, Ministério de Meio Ambiente