Paulo Guedes encharca-se com ideias equivocadas, enquanto a sociedade fica mais injusta e desigual
Por Luís Eduardo Assis*
A divulgação do PIB do segundo trimestre gerou confusão. Como sempre, o IBGE deu destaque para os números dessazonalizados. Retirar dos indicadores a influência de fatores sazonais requer modelos econométricos que não têm a pretensão de oferecer mais do que aproximações. Conforme os parâmetros escolhidos os resultados podem variar bastante, sem falar que a pandemia deve ter alterado os padrões sazonais. Olhando os dados brutos, sem adivinhar os fatores sazonais, o que se sabe é que o PIB entre abril e junho subiu (sim, subiu) 1,2% em relação ao primeiro trimestre e foi 12,4% maior que no mesmo período do ano passado.
Esse desempenho, de todo modo pífio, animou o ministro da Economia a jactar-se da recuperação “em V” do nível de atividade. Aqui Paulo Guedes ataca espantalhos. Nunca se disse que, passado o isolamento social, a economia iria manter o nível de atividade de antes. Se houve interrupção momentânea das atividades, o retorno à rotina anterior só poderia aparecer nos gráficos com a forma de um V. Não há nada de surpreendente. O que assusta é que, na falta de um projeto de crescimento, essa recuperação nem sequer nos coloca na posição medíocre em que estávamos antes. Comparado com o segundo trimestre de 2019, estamos hoje com um PIB apenas 0,2% maior. Em relação ao segundo trimestre de 2013, o PIB do segundo trimestre de 2021 ficou ainda 2,5% menor. Nesses oito anos, a população cresceu 6,1%.
Além de irrisória, a recuperação da economia vem agravar nossas iniquidades, já que a retomada foi ainda mais frágil no mercado de trabalho. A Pnad mostra que entre dezembro de 2019 e agosto de 2020 a pandemia reduziu em 12,9 milhões, ou quase 14%, o número de pessoas ocupadas. Desde então, a recuperação econômica reincorporou apenas 6,1 milhões de pessoas. Para os trabalhadores, não houve V. A inflação também acirrou a desigualdade. Nos 12 meses terminados em julho, a inflação das pessoas com renda inferior a R$ 1.810,13 foi de mais de 10%, ante 7,1% da inflação dos felizardos que têm renda mensal maior que R$ 18.106,00. O item “Alimentação no Domicílio”, que atinge em cheio as pessoas mais pobres, aumentou 21,8%, ante 6,7% para a alimentação fora do domicílio. O desemprego comprime a renda dos trabalhadores menos qualificados. O custo dos serviços de manicure compilados no IPCA subiu menos de 5% nos últimos 12 meses. Para “Cabeleireiros e Barbeiros”, o aumento foi ainda menor, 1,6%, o que não é tão ruim quanto o caso das costureiras, cujo serviço ficou 0,4% mais barato nesse período.
Enquanto isso, o gás de cozinha aumentou 32,8% e o coxão duro ficou 37,6% mais caro. Na outra ponta do Brasil, o mercado de bens de luxo vai de vento em popa. Os endinheirados que têm aplicações no exterior se regozijam com o dólar mais caro e, na falta das viagens internacionais, se deleitam comprando aqui mesmo. Qual a forma de combater a inflação? Juros mais altos é o que temos para o momento, o que premia os rentistas, deteriora as finanças públicas e aguça a concentração de renda. Ou seja, a recuperação tem mais a forma de um K. A população mais pobre vê sua condição se deteriorar, enquanto os mais ricos têm dificuldade em escolher no que gastar. Como lembra J. Stiglitz em The Price of Inequality, a desigualdade custa muito caro: instabilidade econômica, menor crescimento e riscos à democracia. O ministro da Economia perde-se em especulações nefelibatas, encharca-se com ideias equivocadas, contenta-se com o V minúsculo e ignora que o X da questão é o fato de que estamos criando uma sociedade ainda mais injusta e desigual. Terá muito o que explicar no futuro. Paulo Guedes tem um passado pela frente.
* Luís Eduardo Assis é economista, foi diretor de Política Monetária do Banco Central e é membro do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial. e-mail : luiseduardoassis@gmail.com
Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 13 de setembro de 2021.