Por Emmanuel do Vale Madeiro*
Toda decisão regulatória por parte do Poder Público deveria englobar uma avaliação dos custos resultantes da sua implementação. Ocorre que nem sempre essa avaliação é feita. Muitas vezes, esses custos implicam preços mais elevados para os produtos.
Ao perceber que determinada regulação gera custos que oneram desnecessariamente os usuários, o Poder Público deve repensar se vale a pena manter determinada restrição. Foi o que ocorreu por ocasião da desregulamentação da franquia de bagagem aérea.
A Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) aprovou, em 13 de dezembro de 2016, a sua Resolução 400, atualizando as chamadas Condições Gerais de Transporte Aéreo (CGTA), normas que gerem os direitos e deveres dos passageiros no transporte aéreo dentro do território nacional.
Até antes da vigência dessa resolução, as companhias aéreas eram obrigadas a oferecer uma franquia de 23 kg de bagagem despachada + 5kg de bagagem de mão para cada passageiro.
A partir da vigência da Resolução-Anac 400/2016, o transporte de bagagem despachada passou a configurar contrato acessório oferecido pelo transportador. Este passou a ser obrigado a garantir apenas uma franquia mínima de 10 (dez) quilos de bagagem de mão por passageiro de acordo com as dimensões e a quantidade de peças definidas no contrato de transporte.
Em maio de 2018, o TCU recebeu uma solicitação do Congresso Nacional, mais precisamente da Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara dos Deputados, para que o Tribunal identificasse se a evolução dos preços das passagens aéreas, após a entrada em vigência da Resolução 400/2016, da Anac, que permitiu a cobrança em separado da bagagem despachada pelo passageiro, ocorreu em benefício do consumidor ou, ao contrário, implicou aumento de gastos, em detrimento dos passageiros.
A justificativa para essa solicitação do Congresso foi que, até aquele momento, não se percebia, como compensação pela cobrança da bagagem despachada, nenhuma vantagem relacionada à queda de preço das passagens.
O TCU constatou que a desregulamentação da franquia da bagagem despachada, consubstanciada na Resolução 400/2016, precisaria ser analisada em um contexto mais amplo. Essa decisão não se tratou de medida isolada tomada pela agência reguladora do setor aéreo, mas de mais um passo no sentido de flexibilizar a regulação econômica do transporte aéreo de passageiros, iniciada ainda no fim dos anos 1980, há mais de 3 décadas, portanto.
A Portaria 248/2001 do Ministério da Fazenda estabeleceu a adoção do regime de liberdade tarifária para os voos domésticos, constituindo-se no marco mais importante do processo de desregulamentação do setor aéreo.
Posteriormente, o princípio da liberdade tarifária foi positivado na Lei 11.182/2005 (art. 49), que criou a Anac. Nos anos seguintes, o regime de liberdade tarifária, que já se aplicava para os voos domésticos, se estendeu também para os voos internacionais, sob a condução da Agência. A Lei de criação da Anac também consagrou o princípio da liberdade de voo (art. 48, §1º), pelo qual as empresas aéreas podem voar as rotas que quiserem desde que haja disponibilidade de infraestrutura aeroportuária (antes era necessário solicitar permissão da autoridade aeronáutica, que poderia negar o pedido das empresas aéreas de forma discricionária).
Diversos setores reagiram contrariamente à introdução da liberdade tarifária para voos domésticos, em 2001, e para voos internacionais, no fim da década. Entendia-se que tais medidas permitiriam abusos por parte das empresas aéreas e seriam contrárias aos interesses dos consumidores, por mais amparadas que essas mudanças fossem à luz da teoria econômica da regulação.
O que se observou com o tempo foi o contrário: a ausência de intervenção estatal sobre o preço das passagens aéreas promoveu expressiva diminuição de preços e grande aumento da oferta de voos. Segundo dados da Anac, em um recorte de 2002 a 2017, os preços das passagens aéreas caíram cerca de 65%, em termos reais, e o número de passageiros transportados aumentou quase 200%, o que representa crescimento 3,4 vezes superior ao crescimento do PIB.
O TCU avaliou que, embora a desregulamentação da franquia de bagagem despachada pudesse parecer, em uma análise mais superficial e imediatista, que seria contrária ao interesse dos passageiros, na realidade é o oposto. Em um ambiente competitivo, de livre concorrência, a desregulamentação permite que as empresas aéreas, ao disputar a preferência dos consumidores, atuem de forma mais inovadora e eficiente, atendendo melhor às necessidades dos passageiros.
Verificou-se também que a nova regulamentação deu mais transparência à precificação do serviço de transporte aéreo. Antes, a franquia de bagagem despachada estava embutida no preço da passagem, sem que o passageiro tivesse clareza sobre essa informação e sobre o correspondente valor. Com a mudança, o passageiro passou a ter mais informação, que pode usar no seu processo decisório.
A possibilidade de cobrança separadamente pela bagagem despachada ofereceu ao consumidor mais opção. Se puder prescindir de bagagem, não precisa pagar por esse serviço. Na regra antiga, os passageiros que não despachavam bagagem acabavam subsidiando, indiretamente e sem saber, os passageiros que despachavam bagagem.
Segundo o toolkit desenvolvido pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para a identificação e análise de restrições à concorrência impostas pelos governos baseada na experiência internacional, deve-se realizar uma avaliação aprofundada dos efeitos na concorrência sempre que uma proposta governamental, por exemplo, limite a capacidade de certas empresas de prestarem um bem ou serviço.
Essa restrição ocorre quando alguns governos exigem que todos os vendedores prestem um conjunto mínimo de serviços, restringindo ou proibindo que se preste um conjunto de serviços menor ou cobrança de forma avulsa por cada serviço prestado. Isto prejudica a escolha de alguns consumidores que podem preferir uma combinação de serviços que resulte em preço menor, além de dificultar a entrada de pequenas empresas. Consumidores mais pobres, em especial, podem preferir este tipo de combinação justamente em função da limitação de renda.
Pode-se compreender que a restrição acima descrita ocorria antes da Resolução 400/2016 da Anac. As empresas aéreas eram obrigadas a conceder uma franquia mínima de 23 kg de bagagem despachada por passageiro. Inevitavelmente essas companhias embutiam o valor do despacho da bagagem no preço das passagens de todos os passageiros.
Com a Resolução 400, as empresas aéreas foram autorizadas a firmarem um contrato acessório para o despacho da bagagem. Ou seja, passou-se a permitir a prestação de um serviço menor (o transporte do passageiro com bagagem de mão) e a cobrança de forma avulsa pelo despacho da bagagem. Com isso, buscou-se permitir também a entrada no mercado nacional das chamadas companhias aéreas de baixo custo, cujo modelo de negócios é o de que as passagens aéreas não estão vinculadas a qualquer tipo de serviço adicional ou cortesia.
A referida resolução da Anac representou, dessa forma, a correção de uma restrição concorrencial.
O TCU destacou a posição da Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE) do Ministério da Fazenda com relação à desregulamentação da bagagem despachada. A SEAE opinou da seguinte forma:
Em relação à eficiência econômica, temos que a desregulamentação, ao desvincular a contratação de passagem aérea da contratação de franquia de bagagem despachada, aumenta a capacidade das Companhias Aéreas em identificar passageiros mais sensíveis a preço. A desregulamentação, portanto, pode aumentar a eficiência do mecanismo de discriminação de preços empregado pelas Companhias Aéreas. Estratégias de discriminação de preços mais eficientes, por sua vez, podem resultar em maior concorrência, preços menores para consumidores mais sensíveis a preço, expansão da oferta do produto, atração de um número maior de consumidores e, consequentemente, democratização do serviço. (Nota Técnica 126/2017/COGTR/SEAE/MF, de 4/10/2017).
Vê-se assim que a Resolução 400/2016 da Anac possibilitou uma discriminação de preços benéfica para o consumidor, com ampliação da concorrência no setor aéreo. Do ponto de vista da regulação, a discriminação de preços proporcionada pela Resolução 400 da Anac foi, portanto, acertada.
O Tribunal de Contas da União informou à Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara dos Deputados que a edição da Resolução-Anac 400/2016, que desregulamentou a franquia de bagagem despachada, foi precedida de estudos regulatórios consistentes e de ampla discussão com os interessados, e tende a ser favorável ao consumidor, assim como as demais medidas de flexibilização regulatória setorial (Acórdão 2955/2018-TCU-Plenário).
Com relação ao impacto no preço das passagens, o TCU compilou estudos apontando que em princípio, mantidos todos os demais fatores que influenciam a formação de preço das passagens, a nova regulamentação deveria trazer redução de preços para os passageiros que viajam sem bagagem (despachada) e aumento para os que despacham bagagem, pois estes perderam o “subsídio” indireto que era pago pelos passageiros que não despachavam bagagem.
Deve-se compreender que o serviço de transporte aéreo opera em regime de liberdade tarifária e os preços das passagens aéreas são influenciados por inúmeros fatores, como o custo de seus insumos, com especial destaque para o preço do combustível (que teve aumento significativo nos últimos anos), taxa de câmbio, demanda e oferta, entre outros.
Para citar um exemplo atual, a pandemia de Covid-19 e a consequente redução brutal da demanda por voos comerciais levou os preços de passagens aéreas ao menor valor já registrado na série histórica da Anac, iniciada em 2002. Em preços atualizados pela inflação até dezembro de 2020, a tarifa média foi de R$ 376,29. Na comparação com 2019, quando a tarifa média foi de R$ 439,89, ocorreu uma redução de 14,5%.
Em dezembro de 2021, a Anac deverá apresentar relatório sobre a aplicação, eficácia e resultados da Resolução 400/2016, indicando possíveis pontos para revisão.
* Emmanuel do Vale Madeiro é auditor federal de controle externo do Tribunal de Contas da União