Por Olavo Severo Guimarães*
- O que é Open Banking?
Como parte da Agenda BC# do Banco Central, que abriga uma série de medidas destinadas a modernizar, digitalizar e fomentar a inovação no sistema financeiro nacional[1], o Open Banking (OB) possibilita e estabelece padrões de compartilhamento de dados bancários dos consumidores de uma instituição por outras, permitindo a elaboração de novos produtos e serviços.
Na prática, alguns tipos de serviços que devem emergir do OB são os de (i) agregamento de dados, que fornecem em um só aplicativo uma visão das finanças do usuário em seus vários bancos, possibilitando a comparação e a administração unificada e automatizada; (ii) marketplaces, que agregarão ofertas personalizadas de diferentes instituições em uma só plataforma; e (iii) melhoria de processos, agilizando processos contábeis e de concessão de crédito, por exemplo.
Segundo o Bacen[2], os objetivos da abertura de dados são (a) incentivar a inovação, (b) promover a concorrência, (c) aumentar a eficiência do Sistema Financeiro Nacional e do Sistema de Pagamentos Brasileiro e (d) promover a cidadania financeira. Tais metas serão atingidas através da solução de imperfeições do mercado bancário há muito apontadas pela literatura, as quais são a seguir abordadas.
- Assimetrias de informação entre instituições e seleção adversa
Saber é poder – ao menos para as instituições bancárias. Esta foi, em outras palavras, uma das conclusões da autoridade antitruste britânica (CMA) na investigação sobre o mercado bancário que lançou as sementes para a regulação de OB no Reino Unido[3], principal referência para o OB brasileiro. Para a agência britânica, o acesso aos dados de amplas bases de consumidores confere aos bancos uma significativa vantagem potencial, podendo a ausência deste acesso configurar, de mais de uma maneira, uma barreira à entrada e expansão de novos players.
Em primeiro lugar, as instituições já estabelecidas no mercado, detentoras de dados, podem ter condições muito melhores para desenvolver, direcionar e vender os produtos e serviços para seus consumidores. O relacionamento prévio com uma ampla base de clientes, além de um forte insumo para detecção de demandas e desenvolvimento de futuros produtos, também possibilita uma maior diferenciação dos usuários, o que é útil para estratégias de venda cruzada, retenção e aquisição de consumidores. Tais vantagens são observáveis em cada vez mais mercados na emergência do Big Data, razão pela qual este tema tem ocupado um posto central nas discussões sobre posse de dados e defesa da concorrência nos últimos anos.
Em segundo lugar, os bancos que já possuem um histórico de relação com o cliente conseguem avaliar melhor suas requisições de crédito, o que otimiza as decisões e o pricing destas instituições em relação à concessão de seus fundos. Ou seja, o banco competidor, com menos informações sobre a qualidade dos tomadores de crédito, tem mais dificuldade de avaliar os riscos envolvidos na operação, estando mais propício a precificá-las erroneamente ou rejeitar oportunidades profícuas. Neste sentido, por exemplo, Stiglitz e Weiss[4] e Dell’ariccia et al.[5] concluíram que um banco, ao ingressar no mercado de crédito, sempre se depara com um problema de seleção adversa: a perspectiva de receber de seus concorrentes seus piores pagadores.
Diante desta assimetria de informação dos bancos em relação a características relevantes de novos consumidores, uma solução desenvolvida em diversos países, incluindo o Brasil, foi a criação dos bureaux de crédito, os quais coletam, arquivam e distribuem tais dados, auxiliando o mercado a calcular os riscos de crédito. Com o afloramento do OB, os bureaux creditícios terão a oportunidade de expandir ainda mais seus bancos de dados, o que irá aprimorar a performance de seus modelos e a precisão de seus escores. Além disso, as instituições credenciadas poderão ter acesso ao histórico transacional de novos clientes mesmo sem o intermédio de bureaux de crédito. Assim, a redução de assimetria informacional deve gerar aumentos de eficiência e expansão da oferta de crédito, pois as instituições conseguirão descobrir novas oportunidades e precificá-las corretamente.
- Inércia do consumidor
Outro aspecto que diminui a concorrência no mercado bancário é a própria imobilidade da demanda. Segundo o levantamento da CMA[6], referida agência britânica, apenas 3% dos titulares de contas correntes pessoais mudavam de instituição financeira anualmente. A situação não foi diferente em relação aos titulares de contas correntes empresariais, com uma taxa de 4%.
No Brasil, salvo melhor juízo, não há dados públicos a respeito do percentual de pessoas físicas e jurídicas que mudam de banco anualmente[7]. Contudo, dados do Bacen[8] do ano de 2019 indicam que a portabilidade bancária no país ainda está aquém de seu potencial. Na modalidade de crédito imobiliário, estimou-se ao final de 2019 que havia ao menos 570 mil operações (R$102,8 bilhões) que poderiam se favorecer da portabilidade, e os 36 mil contratos (R$2,15 bilhões) que se beneficiaram da portabilidade configuram apenas 6,4% desse potencial.
- Custos de transferência de banco
Uma das explicações para tal inércia da demanda se dá por uma série de custos de transferência com os quais o consumidor tem de arcar ao mudar de banco, dentre os quais destacamos (a) a dificuldade de fechamento de conta corrente no banco de origem (devido a débitos automáticos, pagamento de salário etc.); (b) procedimentos burocráticos necessários à troca; (c) cancelamento de cartões antigos, muitos com financiamento de compras a prazo; (d) memorização de novas senhas[9].
O Open Banking amenizará alguns destes custos. Por exemplo, aplicativos que permitam o manejo centralizado de diversas contas bancárias (em instituições diferentes) diminuirão a necessidade de memorização de diversas senhas e facilitarão a organização financeira dos usuários. Além disso, aplicações podem descomplicar tremendamente o processo de abertura de contas ou de tomada de créditos, reduzindo a burocracia. Estas funções devem encorajar os usuários a estabelecer relações com mais instituições financeiras, bem como ajudar a difundir uma cultura de portabilidade bancária, tanto de contas correntes quanto de créditos.
- Complexidade das estruturas de cobrança
A agência britânica[10] também concluiu que contas correntes, tanto para pessoas físicas quanto para jurídicas, têm estruturas de cobrança complicadas, as quais dependem do uso particular de cada cliente. Particularmente, o sistema de cobrança pelo uso do cheque especial se revelou complexo – tratando-se justamente de serviço que tende a ser subestimado pelo consumidor. Tudo isto dificulta a comparação dos serviços e produtos contratados com outros disponíveis no mercado.
O caso brasileiro também oferece indícios neste sentido. Acessando-se o ranking do Bacen de reclamações do consumidor a respeito de instituições reguladas, nota-se a participação expressiva de reclamações na categoria “Oferta ou prestação de informação a respeito de produtos e serviços de forma inadequada”. Nos quatro trimestres de 2019, reclamações enquadradas nesta classificação ficaram em primeiro lugar no levantamento[11].
Neste cenário, o OB tem o potencial de trazer muito valor aos consumidores. Com acesso a dados, aplicativos poderão ajudar usuários a identificar seus perfis de uso de modo a encontrar as ofertas bancárias mais adequadas. A análise retrospectiva da contratação também deve ser facilitada: programas poderão simular quanto os agentes teriam pago de encargos caso tivessem optado por diferentes instituições financeiras, o que os incentivará a tomar melhores decisões futuras. Em verdade, este tipo de funcionalidade aumentaria a competição em diversos setores, motivo pelo qual o OB já inspira, na Austrália, a implementação do Open Energy.
- Contratos sem termo final
Por fim, outro aspecto que contribui para a inércia do consumidor neste mercado são as suas características contratuais. Ao abrirem contas correntes, clientes e bancos costumam estabelecer contratos sem termo. Assim, diferente de contratos de seguro, que costumam ter gatilhos regulares (renovação anual, por exemplo), não há, na relação bancária, um momento em que o consumidor é estimulado a se perguntar se ele poderia obter melhores ofertas de outras instituições financeiras. Neste contexto, aplicativos de gestão financeira unificada e marketplaces podem compensar a falta de termo final com frequentes comparações e ofertas personalizadas.
- Conclusão
Visto de forma mais ampla, o OB é a aplicação, no setor bancário, de um movimento mundial que visa conferir aos consumidores mais controle sobre seus dados, em defesa da privacidade e também em fomento da inovação e da concorrência. Neste contexto, é digno de nota que o OB brasileiro promete ser um dos mais completos do mundo, pois, ao final de sua última fase, em Dezembro de 2021, haverá também o compartilhamento de informações sobre produtos de investimentos, seguros e câmbio, o que já é chamado de “Open Finance”.
O sistema financeiro aberto, resultado destas medidas, tem o potencial de solucionar ou atenuar diversas imperfeições observadas no mercado bancário, tanto do lado da oferta quanto da demanda, como assimetrias de informação dos consumidores e também das instituições entre si, além de reduzir custos de mudança de bancos.
Os novos aplicativos provocarão nudges pró-competitivos a compensar características do setor que contribuem para a inércia dos usuários, como a falta de termo final nos contratos. Além disso, o movimento, conjugado com outras medidas do Bacen no sentido de digitalizar os bancos, deve ainda incentivar entradas de fintechs e big techs neste mercado, o que aumentará a pressão competitiva nele. Por isto tudo, espera-se que o OB melhore a qualidade, o custo e a variedade dos serviços contratados pelo público.
[1] Neste sentido, a apresentação da Agenda BC# pelo presidente do Bacen Roberto Campos Neto: https://www.bcb.gov.br/conteudo/home-ptbr/TextosApresentacoes/ppt_balanco_agenda_bc_2019.pdf
[2] BRASIL. Banco Central do Brasil (BACEN). Resolução Conjunta nº 1. Dispõe sobre a implementação do Sistema Financeiro Aberto (Open Banking). Brasília: BACEN, 2020. Disponível em: https://bit.ly/3eRv2s3. Acesso em: 13 mar. 2021.
[3] COMPETITION AND MARKETS AUTHORITY (CMA). Retail banking market investigation: Final report. Londres: CMA, 2016. Disponível em: https://bit.ly/2WeHDdJ. Acesso em: 24 fev. 2020.
[4] STIGLITZ, Joseph E.; WEISS, Andrew. Credit rationing in markets with imperfect information. The American Economic Review, v. 71, n. 3, p. 393-410, 1981. Disponível em: https://bit.ly/2W9TQ3u. Acesso em: 15 fev. 2020.
[5] DELL’ARICCIA, Giovanni; FRIEDMAN, Ezra; MARQUEZ, Robert. Adverse Selection as a Barrier to Entry in the Banking Industry. The RAND Journal of Economics, v. 30, n. 3, p. 515–534, 1999. Disponível em: www.jstor.org/stable/2556061. Acesso em: 30 jan. 2020.
[6] Vide item 4.
[7] Este autor pesquisou sem êxito nos sites do Bacen e da Febraban, bem como na internet em geral.
[8] BRASIL. Banco Central do Brasil (BACEN). Relatório de Economia Bancária 2019. Brasília: Banco Central do Brasil, 2019. Disponível em: http://bit.ly/3vsBifR. Acesso em: 12 mar. 2021.
[9] Voto do Conselheiro César Costa Alves de Mattos no âmbito do Ato de Concentração nº 08012.011736/2008-41, reproduzido no corpo do Anexo ao Parecer Técnico nº 12/2016 do Ato de concentração nº 08700.010790/2015-41.
[10] Vide item 4.
[11] RANKING de Reclamações. Banco Central do Brasil, 2019. Disponível em: https://bit.ly/2SmhOaM.
[12]GUIMARÃES, Olavo Severo. Concorrência bancária e o Open Banking no Brasil. Revista de Defesa da Concorrência do CADE, v. 9 n. 1, p. 125-147, jun. 2021. Disponível em: https://revista.cade.gov.br/index.php/revistadedefesadaconcorrencia/article/view/709/533. Acesso em: 04 jul.
* Olavo Severo Guimarães é a advogado, mestrando em Economia (UFRGS).
Artigo inspirado em publicação do autor na Revista de Defesa da Concorrência do CADE, v. 9 n. 1 (2021)[12].