Cabe recorrer ao STF para reparar toda a injustiça social de sua decisão
Por Roberto Macedo
O Supremo Tribunal Federal (STF) de novo decidiu quanto ao assunto, determinando que a restituição fosse para recolhimentos a partir de 2017, quando foi tomada sua primeira decisão. O governo federal reivindicava que a restituição só contasse desde a última sentença, mas não teve sucesso. E mais: empresas que entraram com ações antes de 2017 também foram vitoriosas.
No sábado 15/5, este jornal publicou lista de 12 grandes empresas nessas condições e que já receberam em 2020 um total de R$ 23,6 bilhões. A lista é encabeçada pela Petrobrás, com R$ 16,3 bilhões de créditos a partir de outubro de 2001. Assim, a devolução ainda custará muitos bilhões de reais a mais para a União. Vi estimativas de um custo total de até R$ 258 bilhões, mas antes da última decisão.
Não acompanhava esse assunto de perto, mas em 12 de maio li importante artigo sobre o tema, de Eliseu Martins, profissional da área contábil, que fez carreira docente na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, da USP, onde chegou a professor titular. Entre outros cargos, foi diretor da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) por duas vezes, diretor do Banco Central e representou o Brasil na ONU para assuntos de contabilidade e divulgação de informações.
Martins abordou o tema sob a perspectiva de políticas públicas e com um olhar “pressupostamente de justiça social.” Apontou que toda a discussão sobre o assunto se centrou em aspectos jurídicos e técnicos, e numa disputa entre empresas e governo. E fez esta pergunta: “… quem de fato pagou por esse tributo a maior durante todo esse período?”. E respondeu: “… não terá sido o consumidor? Não teriam sido as empresas… apenas veículos dessa transferência que agora está sendo considerada indevida do Tesouro para o consumidor… que de fato… suportou… o ônus?”.
Ele aponta que a teoria econômica convencional diz, em resumo meu, que esse raciocínio não é correto, não sendo verdade que somente o consumidor teria arcado com o custo. Se o preço subiu por causa do imposto, a demanda por ele, e de seus componentes na cadeia produtiva, terá diminuído e, assim, as empresas também terão arcado com um pedaço do custo ao perder receitas.
Agora entro com meu economês. Essa diminuição da demanda dependerá muito de sua elasticidade ou resposta relativamente aos preços, que será tanto mais forte quando mais houver produtos que substituam os que receberam tributação. Mas essa tributação foi generalizada, o que reduz muito a elasticidade. E mais: no caso dos derivados de petróleo, por exemplo, praticamente não há alternativas para o consumidor. E ele cita, com aplausos, que a Aneel, a agência de energia elétrica, “… deliberou descontar na tarifa dos consumidores o que as empresas de energia receberem”.
Martins discute ainda outras questões interessantes, mas também preciso apresentar outras ponderações e sugestões minhas. Pelo que já li sobre tributação, a visão predominante na distribuição dos impostos indiretos entre vendedores e consumidores é que esses tributos sejam transferidos para os preços e, assim, repassados a quem consome. Um caso relacionado com isso é o do imposto na nota, conforme a Lei 12.741, de 8/12/2012. No seu artigo 1.º ela determina que deverá constar dos documentos fiscais ou equivalentes a informação do valor aproximado correspondente à totalidade dos tributos federais, estaduais e municipais, cuja incidência influi na formação dos respectivos preços de venda. Em seguida, ela lista sete tributos que integram esse valor total, entre eles a contribuição PIS-Cofins. O leitor poderá ver o cupom fiscal de uma compra sua em supermercado para verificar como isso funciona e se certificar de que pagou esses impostos. Ou seja, se essa própria lei reconhece que o consumidor paga a contribuição do PIS-Cofins, por que não teria agora o direito à restituição?
No caso de outros serviços públicos, em que a opção do consumidor não existe, o exemplo da Aneel deveria ser generalizado como obrigação legal. Nos demais casos, não vejo condições práticas de devolver aos consumidores o que pagaram a mais. Seria o caso de o STF definir que, ressalvados os casos de empresas que realmente pudessem provar que arcaram com o ônus do imposto sem repassá-lo aos consumidores, os recursos do ônus do Tesouro fossem transferidos para o programa Bolsa Família e/ou ao de renda básica, que esse tribunal determinou que fosse instituído.
Ignoro se a defesa governamental utilizou os argumentos que Martins defendeu no seu artigo, e sobre os quais me estendi. Se não, foi um erro, mas pelo que sei ainda é possível recorrer ao STF, pleiteando reparar toda essa injustiça social que sua decisão envolveu.
Volto a Martins. Ele também aponta que o consumidor, além de não receber a restituição se a decisão for mantida, como cidadão arcará com o ônus dela sobre as finanças públicas. Ou seja, pagaria duas vezes.
Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.
Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 20 de maio de 2021.