Por Diogo Piloni e Silva*, Dino Antunes Dias Batista** e Cléber Martinez***
A navegação marítima é, desde sua origem, considerada uma aventura. Se nos primórdios era a natureza que representava os grandes desafios, hoje são as ondas do mercado que podem afundar empresas e empreendedores. Com efeito, a volatilidade dos custos e fretes marítimos internacionais é mar revolto, que deve ser considerado quando na elaboração de políticas públicas que busquem o desenvolvimento deste modo de transporte. Por outro lado, sabe-se que mar calmo nunca fez um bom marinheiro. Assim, a política deve também trazer novos incentivos, que ampliem a contestabilidade do mercado da cabotagem brasileira.
O BR do Mar é um programa que busca desenvolver a navegação marítima de cabotagem, ampliando a concorrência, mas considerando a necessidade de mitigação dos efeitos negativos da abertura para o mercado internacional. O BR do Mar será implementado com base no Projeto de Lei nº 4.199/2020 que já foi aprovado na Câmara dos Deputados e que se encontra em discussão no Senado Federal.
Existem muitas controvérsias relacionadas ao transporte marítimo. Entretanto, pairam poucas dúvidas quanto a sua relação direta com o desenvolvimento econômico da grande maioria dos países, entendimento corroborado por estudo realizado entre os países membros da OCDE¹. O caráter estratégico que é dado ao transporte aquaviário está relacionado com diversos fatores, como: menores custos de transporte; menores índices de acidentes; menores níveis de emissões de poluentes; e menor dependência de recursos públicos para seu desenvolvimento. Tais fatores correspondem a externalidades positivas proporcionadas pela navegação para toda a sociedade.
Tais externalidades já justificariam políticas públicas voltadas ao setor, como a adoção, pela maioria dos países mais desenvolvidos, de regramentos específicos para o transporte marítimo, em especial para a cabotagem. Entretanto, para uma completa e precisa avaliação é fundamental compreender que, até o momento, não se chegou a um entendimento no âmbito da OMC² para que as práticas concorrenciais deste mercado pudessem ser analisadas pela organização.
Entre os diversos e importantes desdobramentos da desregulamentação das questões concorrenciais para o transporte marítimo internacional, estariam práticas que resultam na já citada volatilidade em termos de disponibilidade de navios e valores de frete, que caracterizam o ciclo econômico específico para o transporte marítimo.
Tal ambiente traz diversos riscos para usuários, impactados diretamente pelas incertezas dos valores de frete, e para os armadores, principalmente na tomada de decisão de investir na constituição de frota, em razão do elevado montante de capital exigido e os longos prazos para amortização. Este contexto leva grandes embarcadores a constituírem frota própria ou, quando possível, firmarem contratos de longo prazo, assegurando previsibilidade de embarque e condições de frete.
Já os pequenos e médios embarcadores, que não possuem demanda suficiente para mobilizar um navio completo, são direcionados para o mercado de contêiner. Esta dinâmica demonstra a relevância deste segmento do mercado para determinadas atividades e justificam o seu histórico de crescimento.
O transporte marítimo de contêineres é tão relevante para o desenvolvimento econômico que muitos países estabelecem regras concorrenciais específicas para o setor. Denominadas imunidades concorrenciais, tais regras possibilitam que empresas do setor atuem de forma coordenada. Entre as razões apontadas para essa tratativa diferenciada estaria a redução dos valores de frete e melhora da qualidade dos serviços, conforme justificado pela Comissão Europeia³ para estender a imunidade concorrencial até 2024.
Por outro lado, a possibilidade de atuação em conjunto das empresas de transporte marítimo de contêiner no mercado internacional estaria relacionada diretamente com a tendência de concentração do mercado, distribuídos atualmente em 3 grandes grupos operacionais, e valores de frete spot que dobram ou triplicam em curto espaço de tempo. A esse respeito, o mercado nacional foi particularmente impactado pelos efeitos da pandemia, sendo que os fretes da China para o Brasil passaram de US$ 2.500/TEU no início de 2020, para quase US$ 10.000/TEU no fim do ano.
Negligenciar estas características pode trazer relevantes consequências negativas, como depreende-se da experiência australiana de flexibilização da cabotagem. No final da década de 90, o governo australiano permitiu a atuação de navios estrangeiros por meio de concessão de licenças de operação, buscando o desenvolvimento da cabotagem. Sem alcançar os objetivos almejados, as restrições para a navegação costeira foram reimplementados em 2012, em uma tentativa de restabelecer o ambiente necessário para o desenvolvimento de frota nacional. O retorno à situação pré-abertura não ocorreu até o momento.
De forma geral, os argumentos relativos à manutenção de solução logística adequada justificam a resistência da maioria dos países em flexibilizar o acesso de embarcações estrangeiras aos seus mercados de cabotagem. Tais resistências permanecem mesmo com os potenciais benefícios econômicos identificados por diversas entidades e estudos, dentre os quais mencionamos o Rethinking Maritime Cabotage for Improved Connectivity⁴.
O referenciado estudo apresentou experiências de liberalização da navegação, dentre as quais a liberalização da cabotagem entre os países da União Europeia, com a edição do Regulamento nº 3.577/1992, e a liberalização da carga incidental para o mercado de contêineres na Nova Zelândia, que é a possibilidade de reposicionamento de contêineres vazios por navios que atuam no trade internacional. Ressalta-se que o regulamento europeu possibilitou a maior integração marítima entre os países do bloco, mas não evitou a consolidação entre as empresas do setor.
O mesmo estudo apresenta algumas considerações a respeito da cabotagem brasileira, indicando que a regulamentação nacional é comparável à grande maioria dos países avaliados, sendo responsável pela estruturação de serviços de transporte regionais que atenderiam a outros países da região. Cabe destaque sobre a iniciativa de flexibilização da cabotagem chinesa, que passou a permitir que navios de bandeira estrangeira, controlados por empresas chinesas, pudessem operar na cabotagem.
A experiência chinesa corrobora a tendência de internacionalização das frotas, entretanto permanecendo sob controle das empresas sediadas nos países desenvolvidos, conforme demonstrado por publicação da ITF-OCDE/2019⁵.
O referido estudo relata a redução de aproximadamente 50% da frota de navios registrados nos países desenvolvidos, apesar de todas as políticas de subsídios e incentivos tributários existentes. Entretanto, as empresas sediadas nos países desenvolvidos continuam controlando a maior parte da frota mundial, mesmo arvorando a bandeira de outros países.
Diante de toda a complexidade inerente ao mercado de transporte marítimo, agravado pela impossibilidade de implementação de medidas de incentivo utilizadas por outros países, o governo federal estruturou medidas que potencializarão o desenvolvimento da cabotagem, consolidadas no programa BR do Mar. Este objetivo se mostra extremamente desafiador se considerados os dados históricos de redução dos valores de frete da cabotagem, divulgados pela EPL⁶, e de crescimento das atividades publicados pela ANTAQ⁷, neste caso merecendo destaque o crescimento superior a dois dígitos na cabotagem de contêineres nos últimos 10 anos.
Como coração da proposta está um novo regramento para afretamento de embarcações estrangeiras que, se por um lado flexibiliza a navegação de cabotagem brasileira para a utilização de embarcações estrangeiras, reduzindo custos de operação e barreiras a novos competidores no mercado, por outro mantém uma estrutura de incentivos à formação de frota pelas empresas brasileiras de navegação.
Merece destaque, portanto, a possibilidade de navios estrangeiros, com menores custos operacionais, afretados por empresas brasileiras de navegação de uma subsidiaria integral no exterior, operarem na cabotagem brasileira. Esta estruturação pode parecer complexa à primeira vista, mas é uma prática de mercado, conforme apontado pelos estudos da UNCTAD e da ITF/OCDE, supracitados.
O grande diferencial desta proposta é que os navios estrangeiros operados por empresas brasileiras de navegação estariam comprometidos com o atendimento do mercado nacional, “isolados” da dinâmica de volatilidade do mercado externo, e sob regras brasileiras que não permitem as práticas concorrenciais percebidas no mercado internacional, conforme apresentado por estudo publicado pelo CADE⁸.
A operação de navios com menores custos operacionais seria permitida em determinadas operações, ou para empresas que mantenham investimento em frota própria no país, demonstrando vínculo de longo prazo. Assim, busca-se assegurar o ambiente para o investimento em frota e perenidade da disponibilidade das operações de transporte. E mais do que isso: a regularidade de custos de frete, sendo esta a maior demanda apontada pelos usuários do serviço.
Também foi contemplada medida voltada para mitigar as barreiras de entrada no setor, relacionadas aos investimentos necessários para constituição de frota, sendo permitido que empresas de navegação possam iniciar suas operações somente com embarcações afretadas e registradas no Brasil.
Outras medidas que merecem destaque são aquelas voltadas para proporcionar maior efetividade para o uso do AFRMM, assim como a instituição da figura da empresa brasileira de investimento na navegação. Esta atuará de forma semelhante ao que ocorre em outros setores da infraestrutura no Brasil, bem como no mercado de navegação em outros países, viabilizando o investimento em ativos no setor de navegação por instituições gestoras de capital.
A necessidade de simplificação das questões burocráticas é outro ponto de consenso destacado durante as discussões que precederam a estruturação do programa. Neste sentido, a possibilidade de comprovação eletrônica do recebimento de mercadoria é uma importante medida de desburocratização que integra o projeto de lei original. Além disso, a dispensa da livre prática da ANVISA para a navegação doméstica traz mais racionalidade e competitividade para a cabotagem frente a alternativa concorrente, que é o transporte rodoviário, onde não há este tipo de exigência.
A maturidade e equilíbrio das propostas contidas no BR do Mar, implementado pelo Projeto de Lei nº 4.199/2020, foi demonstrada pelo texto aprovado pela Câmara dos Deputados, que contou com diversos aprimoramentos, mas manteve a integridade da estrutura do programa que tramita agora no Senado Federal. E a expectativa é grande para que entre em vigência este novo marco para a navegação entre portos do país, parte relevante de uma revolução em curso na matriz logística brasileira, conduzida pelo Ministério de Infraestrutura.
¹The Impacts of Globalisation on International Maritime Transport Activity. Disponível em: https://www.oecd.org/greengrowth/greening-transport/41380820.pdf.
²Decision on Maritime Transport Services S/L/24 (WTO/1996). Disponível em: https://docs.wto.org/dol2fe/Pages/SS/directdoc.aspx?filename=q:/S/L/24.pdf.
³Antitrust: Commission prolongs the validity of block exemption for liner shipping consortia. Disponível em: https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/pt/ip_20_518.
⁴Rethinking Maritime Cabotage for Improved Connectivity. Disponível em: <https://unctad.org/en/pages/PublicationWebflyer.aspx?publicationid=1965>.
⁵Maritime Subsidies Do They Provide Value for Money? Disponível em: https://www.itf-oecd.org/sites/default/files/docs/maritime-subsidies-value-for-money.pdf.
⁶Boletim de Logística 1° Semestre 2019. Disponível em: https://ontl.epl.gov.br/wp-content/uploads/2020/09/boletim-logistico-1semestre2019.pdf.
⁷Estatístico Aquaviário. Disponível em: < http://web.antaq.gov.br/anuario/.
⁸Cadernos do Cade: Mercado de transporte marítimo de contêineres. Disponível em: http://antigo.cade.gov.br/acesso-a-informacao/publicacoes-institucionais/publicacoes-dee/caderno-mercado-de-transporte-maritimo-de-conteineres-versao-final.pdf.
*Diogo Piloni e Silva é especialista em Engenharia e Gestão Portuária e secretário da Secretaria Nacional de Portos e Transporte Aquaviário (Ministério de Infraestrutura).
**Dino Antunes Dias Batista é mestre em Transportes e diretor do Departamento de Navegação e Hidrovias (Ministério de Infraestrutura).
***Cléber Martinez tem MBA em Administração e Finanças e coordenador no Departamento de Navegação e Hidrovias (Ministério da Infraestrutura).