A regra de transição de 30 anos das linhas de ônibus interestaduais

Por Liliane Galvão e Rodrigo Novaes

“Se quisermos que tudo continue como está,

é preciso que tudo mude”.

Giuseppi Tomasi de Lampedusa

O Transporte Rodoviário Interestadual e Internacional de Passageiros (TRIIP), a partir da promulgação da Lei nº 12.996, de 18 de junho de 2014, passou a ser outorgado por autorização. A Lei alterou dispositivos da Lei nº 10.233, de 5 de junho de 2001, que trata das competências da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), reguladora do setor.

A autorização como forma de outorga do TRIIP é estabelecida pelo  art. 43, inciso II, dessa Lei, e tem as seguintes características:

  1. a) independe de licitação;
  2. b) é exercida em liberdade de preços dos serviços, tarifas e fretes, e em ambiente de livre e aberta competição;
  3. c) não prevê prazo de vigência ou termo final, extinguindo-se pela sua plena eficácia, por renúncia, anulação ou cassação.

O modelo de autorizações para o TRIIP tem sido alvo de ataques tanto no Poder Judiciário – por meio de duas ações diretas de inconstitucionalidade que tramitam no Supremo Tribunal Federal (STF) –, como no Poder Legislativo – por meio do Projeto de Lei (PL) n° 3.819, de 2020.

O objetivo dessas investidas parece ser a permanência da situação atual de um mercado fechado e sem concorrência – ou seja, manter os atuais incumbentes com liberdade de praticar os preços que entenderem adequados aos seus interesses sem serem ameaçados por novos entrantes.

O Poder Executivo, por meio do Decreto nº 10.157, de 4 de dezembro de 2019, buscou, justamente, equacionar essas questões, regulamentando o comando atual da Lei nº 10.233, de 2001. Espera-se com isso beneficiar a população, proporcionando um sistema de preços livres, em um ambiente competitivo e sem exclusividade de linhas, o que deve levar à queda de preços e ao aumento de oferta.

Na contramão desta iniciativa, no último dia 22 de dezembro, o Senado Federal remeteu à Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei (PL) nº 3.819, de 2020, que altera a Lei nº 10.233, de 5 de junho de 2001, para – novamente – alterar os critérios para a outorga de autorização da operação do TRIIP.

Apesar de o projeto ter sido aprovado na forma de um substitutivo, que manteve a possibilidade da operação do TRIP no regime de autorização, o texto proposto para o art. 47-B da Lei nº 10.233, de 2001, estabelece um conceito de “inviabilidade técnica, operacional e econômica” para limitar o número de autorizações e obrigar a realização de um processo seletivo público para escolha das empresas autorizatárias. Os critérios para a caracterização desta “inviabilidade” serão definidos pelo Poder Executivo; as regras do processo seletivo, pela ANTT.

Na prática, a depender das regras a serem criadas pelo Poder Executivo, poderá ser exigida a realização de processo de seleção, cujas regras da competição, como mostra a história recente do TRIIP, tendem a ser bastante restritivas. Além disso, regulamentos deixados a cargo do Poder Executivo podem ser alterados ao sabor das conveniências do momento, como se vê em todos os setores regulados.

Nesse contexto, o objetivo deste artigo é contribuir para a avaliação do modelo legal vigente para o mercado do TRIIP. Iniciaremos com a apresentação de um relato cronológico da regulamentação do TRIIP. Em seguida, argumentaremos sobre a adequação do marco regulatório vigente para a operação do TRIIP.

Relato cronológico da regulamentação do TRIIP

Ao longo da história, o transporte rodoviário de passageiros no Brasil sempre foi prestado por meio de autorizações outorgadas pela União a particulares, em caráter precário e sem licitação.

Com o advento da Constituição de 1988, que previa licitação para outorga de concessão ou permissão de serviços públicos (art. 175, parágrafo único e incisos), foi editado o Decreto nº 99.072, de 8 de março de 1990, para alterar o regulamento dos serviços públicos rodoviários de transporte coletivo de passageiros, e exigir licitação, na modalidade de concorrência, para a exploração dos “serviços públicos rodoviários de transporte coletivo de passageiros, interestaduais e internacionais, quando não prestados diretamente”.

Como as linhas existentes não haviam sido licitadas, foi estabelecido por decreto que elas somente poderiam ser exploradas até outubro de 2008 – tempo mais do que suficiente para amortizar os investimentos em ônibus, cuja depreciação se dá, em média, entre sete e dez anos. Mesmo contando com prazo tão extenso, as licitações que regularizariam as linhas do TRIIP jamais foram realizadas. Assim, as autorizações vigentes foram sucessivamente prorrogadas com a justificativa de que os serviços de transporte não poderiam sofrer descontinuidade.

Quando, finalmente, foi publicada a licitação das linhas, em 29 de agosto de 2013, o edital foi questionado por um sindicato de empresas de transportes do estado de São Paulo. A licitação foi suspensa por decisão judicial, e, posteriormente, cancelada em razão da entrada em vigor da Lei nº 12.996, de 18 de junho de 2014, que estabeleceu a autorização como modalidade de outorga do TRIIP, fosse ele regular ou especial.

Embora a nova lei preveja, em seu art. 5º, que as autorizações especiais deveriam ter sido extintas no período de um ano contado de sua publicação, também consta nela que tal prazo poderia ser prorrogado a critério do então ministro de Estado dos Transportes, mediante proposta da ANTT. Somente um ano após a alteração do marco legal do setor é que a Agência editou a Resolução nº 4.770, de 25 de junho de 2015, para disciplinar o novo regime de outorgas.

Essa norma criou um regime de transição para que a ANTT promovesse “estudos de avaliação dos mercados, com o objetivo de detalhar e estabelecer os parâmetros de avaliação dos casos enquadrados como inviabilidade operacional”. Nesse período, o número de autorizatárias por mercado (ligação entre pares de cidades) ficou limitado (i) à quantidade de autorizatárias existentes por mercado e (ii) a duas transportadoras em cada mercado novo.

Ao impor o número de vagas por mercado e conferir preferência aos transportadores nele estabelecidos, a ANTT criou, sem previsão legal, barreiras à entrada de novas transportadoras, em favorecimento às incumbentes.

Assim, pela via regulatória, a ANTT manteve o mercado em completo desacordo com as características do modelo de autorização que, conforme o art. 43, inciso II, da Lei nº 10.233, de 2001, “é exercida em liberdade de preços dos serviços, tarifas e fretes, e em ambiente de livre e aberta competição”.

Somente em 18 de junho de 2019, em decorrência do que previa o art. 4º da Lei nº 12.996, de 2014, que estabeleceu prazo de cinco anos para o controle de preços máximos e mínimos no TRIIP, o mercado passou a atuar em regime de liberdade de preços. As transportadoras, porém, continuam, em sua grande maioria, prestando os serviços em caráter precário, usufruindo do regime de autorização especial que lhes fora anteriormente concedido.

Na prática, a situação atual, então, é a de um mercado fechado, sem concorrência, em que os incumbentes, paradoxalmente, têm liberdade de preços. Não há elementos que indiquem que essa situação atenda ao interesse público de forma satisfatória, já que o estabelecimento tanto de monopólios quanto de oligopólios em que haja um líder claro de mercado produz a chamada “perda de peso morto”. Em suma, o monopolista (ou o líder do oligopólio) estabelece um preço acima do que seria possível com competição eficiente, abrindo mão da parte da demanda que poderia pagar esse preço menor, para extrair mais lucro dos consumidores dispostos a desembolsar o preço cobrado.

Com a edição do Decreto nº 10.157, de 4 de dezembro de 2019, que “institui a Política Federal de Estímulo ao Transporte Rodoviário Coletivo Interestadual e Internacional de Passageiros”, esperava-se que, finalmente, fosse possível fazer valer o regime de liberdade tarifária, em ambiente competitivo e sem exclusividade das linhas, nos termos previstos pela Lei nº 12.996, de 2014. Isso, porém, ainda não ocorreu, visto que tanto o Decreto quanto a Lei que o fundamenta são alvos de enormes embates jurídicos, que têm como objetivo claro a permanência do regime de transição que dura até os dias atuais.

E assim, o mercado de TRIIP, passados mais de trinta anos da promulgação da Constituição, ainda vive em uma situação que poderia ser descrita como o “jeitinho brasileiro”, sob o eterno pretexto da necessidade de continuidade dos serviços.

A adequação da operação do TRIIP no regime de autorizações

As autorizações trazem benefícios ao interesse público na grande maioria dos casos, pois se destinam a reduzir, de forma bastante significativa, os custos para entrada no mercado. Ao acabar com critérios de escolha discricionários, já que, sendo ato vinculado, a autorização deve ser dada a todos os que preenchem os critérios estabelecidos em Lei, amplia-se a competição no mercado, que atualmente é inexistente ou ineficaz.

Não vemos boa razão para essa proteção do mercado do TRIIP. O argumento principal é que o regime de competição pode deixar localidades desatendidas. Porém, em primeiro lugar, não há razão econômica para que as empresas incumbentes façam grandes desinvestimentos em linhas superavitárias. Mesmo que isso ocorra pontualmente – por exemplo, para atendimento a uma rota potencialmente mais lucrativa em um mercado próximo – deve-se considerar que, sendo livre a entrada de qualquer empresa, de qualquer porte, em pouco tempo outro operador reestabelecerá o serviço. Não havendo exigências excessivas de frequência mínima e de idade da frota, o investimento necessário é bastante pequeno. Considerando uma região com cidades com distância de 400 km entre elas, um único ônibus consegue distribuir passageiros de um ponto central a, no mínimo, sete outras localidades, com frequência semanal, restando ainda tempo suficiente para sua manutenção.

O transporte de longa distância, como é o caso do transporte interestadual, não tem a característica pendular que marca o transporte semiurbano, em que a disponibilidade de determinados horários é extremamente importante, já que o passageiro não compra a viagem com antecedência. Nos serviços de longa distância, os passageiros simplesmente se programarão para viajar nos dias e horários disponíveis, e o mercado pode se ajustar sem grandes dificuldades.

Portanto, não consideramos que haja prejuízo à qualidade do transporte com as autorizações.

Também não deverá haver prejuízo ao acesso ao transporte pela descontinuidade de rotas de menor demanda. A grande maioria das rotas deve ser superavitária, já que as empresas que as operam estão no mercado há décadas. As rotas que sejam deficitárias, inclusive as que estejam nessa condição após a pandemia da covid-19, podem sofrer ajustes de preços de modo a refletir seu real custo. De fato, com a redução das barreiras, o número de rotas ofertadas deve ser maior do que seria com a regulação anterior nas mesmas condições de mercado, seja porque rotas antes inviáveis passam a fazer sentido econômico, seja porque operadores que antes trabalhavam na clandestinidade podem se regularizar, formando empresas ou cooperativas autorizadas.

A linha de argumentação de redução de acessibilidade parte do pressuposto de que há linhas cronicamente deficitárias no sistema, e que essas linhas são de interesse social. Se esse for o caso, no entanto, devemos no perguntar: será que, de fato, é essencial o acesso frequente de passageiros de pequenas localidades a centros maiores em uma unidade da federação diferente daquela em que residem? Caso a resposta seja positiva, prosseguimos: quem deve pagar por esse acesso? Dificilmente há algum sentido econômico ou mesmo social em fazer com que o passageiro de ônibus da cidade vizinha pague essa conta, que é o que aconteceria em um modelo de operação em linhas superavitárias e deficitárias. Nesse caso, deveria haver a definição de uma rede de interesse social e de uma fonte de recursos pública para subsidiar essa operação.

Outra alegação bastante presente na argumentação contrária ao regime de autorizações é o “problema” do excesso de oferta em rotas superavitárias.

Parte da suposta injustiça causada por essa situação se explicaria pela utilização das receitas obtidas na operação dessas linhas para subsidiar linhas deficitárias, argumento que não deve prosperar, pelo motivo que acabamos de expor.

Outra parte é, simplesmente, a busca de compensação por uma posição de antiguidade no mercado, comportamento observado em diversos setores diante de potenciais mudanças de regras. Contudo, a história demonstra que os reguladores devem evitar encampar esse tipo de ideia, já que, cedo ou tarde, tecnologias disruptivas destroem o excedente de arrecadação proveniente de uma posição inicialmente vantajosa – como aconteceu com a entrada das linhas aéreas de baixo custo, ou com a concorrência dos aplicativos de transporte com os táxis.

Além do mais, onde é permitida a exploração de posições de mercado privilegiadas, seja por antiguidade ou por monopólio natural, o correto é que ao menos parte dos recursos arrecadados seja destinada ao poder público, para reinvestimento em outros setores, mediante o pagamento de outorga. Ainda que o modelo outorgado do TRIIP contivesse linhas deficitárias, se a soma dos lucros econômicos esperados é positiva, o pagamento ao Estado pela continuidade da operação das linhas seria devido, como mostram as concessões de aeroportos em blocos. No entanto, no caso do TRIIP, nada é repassado ao poder público em razão do usufruto do direito de explorar linhas de ônibus antigas, apenas se paga uma taxa de fiscalização à ANTT, de valor irrisório.

Ainda nesse quesito, há uma ressalva importante a fazer: o que se chama muitas vezes de “concorrência predatória” é a entrada de uma empresa mais eficiente no mercado, em relação à incumbente. Essa empresa consegue vender a preços menores porque produz a preços menores, não porque tenha uma estratégia de criação de monopólio. Certamente, é uma situação muito difícil para a incumbente, que precisa cortar custos ou ganhar escala de produção para sobreviver. Esse movimento, porém, é considerado parte das regras do jogo no sistema capitalista, já que se entende que a redução de ineficiências é, em geral, positiva para a sociedade. É verdade que a empresa mais eficiente pode aumentar seus preços após a falência da incumbente original. Porém, em um mercado contestável, há uma margem bastante pequena para esse tipo de comportamento, já que ele atrairia novos entrantes. De toda forma, socialmente, o aumento de excedente do produtor ainda é mais positivo do que a perda por ineficiência, já que pode estimular a inovação e a entrada em outros mercados, fomentando a competição.

Quanto aos questionamentos de lisura nos processos de autorização, embora seja possível que agentes corruptos retardem alguns processos e favoreçam outros, esse é um problema de polícia, que não pode ser resolvido por uma lei ou decreto. Ora, naturalmente, em uma rota que não estivesse sendo operada, não haveria nenhum mal em conceder autorização a quem quer que fosse para que se pudesse testar a viabilidade de uma entrada. O que está em jogo realmente é se o “sistema que funciona hoje” – com uma ou duas empresas, muitas vezes pertencentes ao mesmo grupo atuando em cada mercado – deve ser protegido da entrada de novos autorizados, sob o pretexto de que pode haver algum tipo de falha de governo nessa transição. Acreditamos que os potenciais benefícios da opção por uma menor regulação sejam muito superiores a esses prejuízos, que, de todo modo, sempre podem ser objeto de correção de rumo por parte da Agência Reguladora.

Também é improcedente argumentar que as autorizações prejudicarão o usuário, já que não há qualquer diferença nas regras de gratuidade, de segurança, e de regularidade e constituição de pessoa jurídica entre uma empresa autorizada e outra – e as atuais operadoras devem, de toda forma, se enquadrar no novo regime, já que a situação delas é, como vimos, bastante problemática.

A autorização não passa pelo processo de “concorrência pelo mercado” (licitação) justamente porque ela está livremente disponível para qualquer empresa que atenda aos critérios preestabelecidos e publicados de participação no mercado, e que tenha interesse comercial na operação. Ou seja, a concorrência se dá diretamente no mercado, onde as empresas têm capacidade de demonstrar diretamente suas boas práticas e sua eficiência. Ao contrário, a concorrência pelo mercado privilegia empresas de maior porte, bem estabelecidas e, muitas vezes, com conexões políticas na Agência Reguladora.

Quanto a possíveis alegações de que o modelo de autorização facilitaria conluios ou a concorrência predatória, esses são crimes contra a ordem econômica, tipificados pela Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990 (art 4º, I e II).

Não se deve, em nossa opinião, questionar o novo modelo pelo potencial de produzir atos criminosos, já que existe o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência para lidar justamente com esses casos. E, ainda que fôssemos por esse caminho, é muito mais fácil fazer acordos para divisão de licitação entre poucas empresas do que uma ação coordenada com todas as empresas do mercado para evitar entradas em um ambiente livre.

Neste momento em que a ANTT busca colocar em prática novas regras, acreditamos que o melhor caminho seria observar o comportamento do mercado e promover as correções necessárias – seja em nível infralegal ou legal – com base nas falhas que surgirem. Alterar mais uma vez o marco regulatório quando se está prestes a resolver o problema do mercado terminará por estender a situação transitória, o que contribuirá para perpetuar o privilégio das empresas incumbentes, que exploram os serviços sem nem mesmo oferecer qualquer contrapartida à União.

Conclusão

O setor de transporte rodoviário internacional e interestadual de passageiros vem operando por mais de vinte e cinco anos sem licitação, por meio de autorizações precárias.

A configuração atual do mercado é péssima para o interesse público e extremamente benéfica para os operadores incumbentes, que se encontram, neste momento, no melhor de dois mundos: possuem ao mesmo tempo a liberdade de preços de um sistema competitivo e a proteção de mercado de um sistema concedido.

O que nos parece o mais adequado à realidade tanto do mercado quanto da capacidade regulatória da ANTT é a efetivação, na prática, do modelo de autorizações proposto desde 2014, pois nada indica que o resultado de um eventual esforço de realização de alguma forma de processo seletivo para entrada no mercado será diferente do ocorrido na última tentativa de licitação das linhas, em que foi travada uma guerra na Justiça para procrastinar o andamento da licitação. Mantido o comportamento histórico dos agentes do setor, a situação atual de privilégio dos operadores incumbentes prosseguirá por mais alguns anos, quiçá décadas.

Embora tenha havido tentativas de regularizar a situação das empresas que se encontram no mercado, ao que tudo indica, muitas dessas próprias empresas se dispõem a lutar para que a situação atual permaneça, adotando o caminho ilustrado na obra O Leopardo, de Giuseppi Tomasi de Lampedusa: “se quisermos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude”.

Liliane Galvão e Rodrigo Novaes são consultores do Senado Federal.