O projeto da nova lei de licitações que vai à sanção do Presidente da República
Por Francisco Eduardo Carrilho Chaves
Na condição de consultor do Senado, pudemos acompanhar a fecundação, a gestação e estamos prestes a ver o nascimento da nova lei de licitações. Ela decorrerá do pontapé inicial dado pela Comissão Temporária de Modernização da Lei de Licitações e Contratos, instituída pelo Senado Federal em 2013. Estivemos envolvidos nesse processo desde os seus estertores, acompanhando e atuando em tão importante projeto, que agora está em vias de virar lei que o Brasil inteiro utilizará.
Sem ignorar que o projeto de lei está pendente da sanção presidencial, que pode vir com vetos, visando a simplificar, lhe faremos referência já como nova lei.
Não temos ambição – nem espaço – de esmiuçar lei tão caudalosa (190 artigos) nas duas partes em que se divide este artigo. Menos ainda detalhar procedimentos. Seguiremos a ordem dos comandos para tratar de disposições julgadas essenciais e informadoras da nova lei como um todo, de modo a servir de guia àqueles que pretendam conhecê-la mais a fundo. Há respeitáveis avanços, mas a nova lei é imperfeita, como todas as leis sempre serão.
Na primeira parte, evidenciaremos das inovações mais importantes do diploma que substituirá, no curso dos dois próximos anos, a Lei 8.666/93, a Lei do Pregão e a parte atinente a licitações da Lei do Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC). Na segunda etapa, teceremos críticas quanto a constitucionalidade, juridicidade e mérito de alguns de seus comandos.
Temas que destacamos da nova lei de licitações e contratos
Comecemos pelos princípios da licitação (art. 5º), onde há significativa inovação. Acrescentam-se expressamente os princípios da eficiência, do interesse público (inclusão sujeita a certa censura, por sua vagueza e subjetividade), da igualdade, do planejamento, da transparência, da eficácia, da motivação, da segregação de funções, do julgamento objetivo, da segurança jurídica, da razoabilidade, da competitividade, da proporcionalidade, da celeridade, da economicidade e do desenvolvimento nacional sustentável. Deverão ser também seguidas as disposições da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB).
Quanto às fases da licitação, para todas, estabeleceu-se a inversão de fases atualmente vigentes. Apenas mediante ato motivado e desde que o edital preveja, a habilitação poderá anteceder a apresentação de propostas e lances e o julgamento (art. 17, § 1º). Será uma opção do gestor, mas que deve justificá-la.
As licitações serão realizadas, preferencialmente, sob a forma eletrônica (art. 17, § 2º). A forma presencial será admitida, desde que haja motivação. Nesse caso, a sessão será pública e gravada em áudio e vídeo, com registro em ata e juntada da gravação aos autos do processo licitatório depois de seu encerramento.
O instrumento convocatório poderá contemplar matriz de riscos entre o contratante e o contratado (caput do art. 22). É, assim, opcional. Caso seja prevista, o cálculo do valor estimado da contratação poderá considerar taxa de risco compatível com o objeto da licitação e os riscos atribuídos ao contratado, de acordo com metodologia predefinida pelo ente federado. A matriz de riscos é obrigatória nas contratações de obras e serviços de grande vulto ou quando forem adotados os regimes de contratação integrada e semi-integrada (§ 3º do art. 22).
As modalidades licitatórias serão: pregão, concorrência, concurso, leilão e diálogo competitivo (art. 28). Este último surge no momento em que se extingue o convite e a tomada de preços, e o valor estimado da contratação deixa de ser parâmetro para definir a modalidade a ser empregada.
O art. 29 trata da concorrência e do pregão, que seguirão o rito procedimental comum do art. 17. A primeira transformou-se na modalidade de licitação apta a contratar bens e serviços especiais e obras e serviços comuns e especiais de engenharia, sem limite de valor. O objeto do pregão continua sendo o mesmo da legislação atual, sendo expressamente determinado que não se aplicará às contratações de serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual e de obras e serviços de engenharia, à exceção dos comuns.
Os critérios de julgamento estão alinhados no art. 33: i) menor preço; ii) maior desconto; iii) melhor técnica ou conteúdo artístico; iv) técnica e preço; v) maior lance (exclusivo para leilões); e vi) maior retorno econômico.
O § 1º do art. 36 prevê os objetos a contratar para os quais, se o estudo técnico preliminar demonstrar que a avaliação e a ponderação da qualidade técnica das propostas que superarem os requisitos mínimos estabelecidos no edital forem relevantes aos fins pretendidos pela Administração, deverá ser empregado o critério de julgamento por técnica e preço.
O § 2º do art. 37 determina que, exceto os casos de inexigibilidade de licitação, ao se promover disputa para contratar determinados serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual e cujo valor estimado da contratação seja superior a R$ 300 mil reais, utilize-se melhor técnica ou técnica e preço, na proporção de 70% de valoração da proposta técnica. Naturalmente, a regra é inaplicável a inexigibilidades.
Os serviços de que trata o parágrafo anterior são: estudos técnicos, planejamentos, projetos básicos e projetos executivos; fiscalização, supervisão e gerenciamento de obras e serviços; e controles de qualidade e tecnológico, análises, testes e ensaios de campo e laboratoriais, instrumentação e monitoramento de parâmetros específicos de obras e do meio ambiente e demais serviços de engenharia que se enquadrem na definição do inciso XVIII do caput do art. 6º.
A nova lei contém disposições setoriais específicas, para: compras, obras e serviços de engenharia, serviços em geral, locações de imóveis e licitações internacionais.
O art. 45 prevê os seguintes regimes de execução para obras e serviços de engenharia: empreitada por preço unitário, empreitada por preço global, empreitada integral, contratação por tarefa, contratação integrada, contratação semi-integrada e fornecimento e prestação de serviço associado.
O § 1º do art. 45 veda a realização de obras e serviços de engenharia sem projeto executivo, proibição que pode ser ressalvada em obras e serviços comuns de engenharia para os quais estudo técnico preliminar demonstrar a inexistência de prejuízos para aferição dos padrões de desempenho e qualidade almejados. Nessas hipóteses, será admitida a indicação da especificação do objeto apenas em termo de referência, (§ 3º do art. 18).
Nos regimes de execução empreitada por preço global, empreitada integral, contratação por tarefa, contratação integrada e contratação semi-integrada, a licitação será por preço global e se adotará sistemática de medição e pagamento associada à execução de etapas do cronograma físico-financeiro vinculadas ao cumprimento de metas de resultado, vedada a adoção de sistemática de remuneração orientada por preços unitários ou referenciada pela execução de quantidades de itens unitários (§ 9º do art. 45).
Exceto pelas contratações destinadas a viabilizar projetos de ciência, tecnologia e inovação e de ensino técnico ou superior, não poderão ser utilizados os regimes integrado e semi-integrado para obra, serviço e fornecimento cujo valor seja superior ao que autoriza contratações de parcerias público-privadas, da Lei 11.079/2004 (§§ 7º e 8º do art. 45).
Para as licitações de serviços em geral, foram acrescidos princípios específicos (art. 46): da padronização, considerada a compatibilidade de especificações estéticas, técnicas ou de desempenho; do parcelamento, quando for tecnicamente viável e economicamente vantajoso; e da vedação à caracterização exclusiva do objeto como fornecimento de mão de obra.
Ainda quanto aos serviços em geral, quando o objeto da contratação puder ser executado de forma concorrente e simultânea por mais de um contratado e a múltipla execução for conveniente para atender à Administração, ela poderá contratar mais de uma empresa ou instituição para executar o mesmo serviço, mediante justificativa expressa e desde que a contratação não implique perda de economia de escala, (art. 48).
O art. 49 determina que nas contratações de serviços com regime de dedicação exclusiva de mão de obra, o contratado deverá apresentar, quando solicitado pela Administração, sob pena de multa, comprovação do cumprimento das obrigações trabalhistas e com o FGTS em relação aos empregados diretamente envolvidos na execução do contrato.
Voltamos a comentar regras genericamente aplicáveis falando do edital e de sua divulgação. Há determinação expressa de que o órgão de assessoramento jurídico da Administração faça controle prévio de legalidade do processo licitatório (art. 52), mediante análise jurídica da contratação. O parecer jurídico deverá ser redigido em linguagem simples e compreensível, de forma clara e objetiva, devendo apreciar o processo licitatório conforme critérios objetivos prévios de atribuição de prioridade, tratando de todos os elementos indispensáveis à contratação e expor os pressupostos de fato e de direito levados em consideração na análise jurídica. O mesmo ocorrerá com contratações diretas, acordos, termos de cooperação, convênios, ajustes, adesões a atas de registro de preços, outros instrumentos congêneres e de seus termos aditivos.
A conclusão do parecer deve ser apartada da fundamentação, ter uniformidade com os seus entendimentos prévios, ser apresentada em tópicos, com orientações específicas para cada recomendação, a fim de permitir à autoridade consulente sua fácil compreensão e atendimento, e, se constatada ilegalidade, apresentar posicionamento conclusivo quanto à impossibilidade de continuidade da contratação nos termos analisados, com sugestão de medidas que possam ser adotadas para adequá-la à legislação aplicável (art. 52, § 1º).
O parecer jurídico que desaprovar a continuidade da contratação pode ser rejeitado. Contudo, essa rejeição compete exclusivamente à autoridade máxima do órgão ou entidade, que deve motivá-la. Nesse caso, essa autoridade passará a responder pessoal e exclusivamente pelas irregularidades que, em razão desse fato, lhe forem eventualmente imputadas (art. 52, § 2º).
O parecerista será civil e regressivamente responsável quando agir com dolo ou fraude na elaboração do documento (§ 6º do art. 52).
Infelizmente, demonstrando o grande poder dos jornais impressos que remanesce sobre o meio político, na undécima hora, voltou ao texto disposição anacrônica em tempos de Internet que havia sido retirada pela Câmara dos Deputados: a obrigatoriedade de publicação de extrato do edital no Diário Oficial da União, do estado, do DF ou do município, ou, no caso de consórcio público, do ente de maior nível entre eles, bem como em jornal diário de grande circulação (§ 3º do art. 53). Cabe outra severa admoestação ao comando, de ordem técnico-jurídica: não há hierarquia entre entes federados. Portanto, no caso de consórcio público, será incabível definir o diário oficial em que se fará a publicação.
Pelo § 3º do art. 53, serão cogentes também a divulgação e a manutenção do inteiro teor do edital e de seus anexos à disposição do público no ora criado Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP), sendo facultativa a divulgação adicional em sítio eletrônico oficial do ente federativo do órgão ou entidade responsável pela licitação ou, no caso de consórcio público, do ente de maior nível entre eles. Repetiu-se o equívoco.
No que se refere à apresentação de propostas e lances, o modo de disputa poderá ser, isolada ou conjuntamente, aberto ou fechado, como ocorre hoje no RDC (art. 55). Quando forem adotados os critérios de julgamento de menor preço ou de maior desconto, não poderá ser empregado isoladamente o modo de disputa fechado (§ 1º). Por sua vez, é vedado utilizar o modo de disputa aberto quando o critério adotado for de julgamento de técnica e preço (§ 2º).
Na apresentação da proposta, poderá ser exigido recolhimento de garantia de até 1% do valor estimado da contratação como requisito da pré-habilitação (art. 57). No RDC há regra similar no julgamento pela maior oferta de preço, como requisito de habilitação, no patamar de 5% do valor ofertado.
Também vinda do RDC é a permissão de que a Administração negocie condições mais vantajosas com o primeiro colocado (art. 60), agora generalizada.
Das hipóteses de licitação dispensável, registramos o significativo acréscimo dos limites máximos para contratação direta por baixo valor (incisos I e II do art. 74). Os limites duplicam para consórcios públicos ou autarquia ou fundação qualificadas como agências executivas. Já hoje, a maioria das aquisições feitas pelo governo federal se dá sem licitação. Com a alteração, espera-se que as contratações diretas representem ainda mais.
Pelo § 3º do art. 74, as contratações por baixo valor serão preferencialmente precedidas por divulgação em sítio eletrônico oficial, pelo prazo mínimo de 3 dias úteis, de aviso com a especificação do objeto pretendido e com a manifestação de interesse da Administração em obter propostas adicionais de eventuais interessados, devendo ser selecionada a proposta mais vantajosa. O comando nos parece positivo, mas ainda assim é confuso. Propostas adicionais a quê? Já haveria proposta de um potencial fornecedor? Não há clareza quanto a isso.
Na forma do novo § 4º do art. 74, as contratações por baixo valor serão preferencialmente pagas por meio de cartão de pagamento, cujo extrato deverá ser divulgado e mantido à disposição do público no Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP).
No inciso VIII do art. 74, que permite a dispensa de licitação nos casos de emergência ou calamidade pública, foi vedada não apenas a prorrogação dos respectivos contratos, como também a recontratação de empresa já contratada com base no disposto no inciso. Esta última mudança merece elogio. Anota-se que a recontratação proibida é pelo uso da dispensa por emergência. Não se impedirá a recontratação caso a empresa, por exemplo, sagre-se vencedora da licitação que suceder o momento emergencial.
A Administração poderá se servir dos seguintes procedimentos auxiliares (art. 77): credenciamento, pré-qualificação, procedimento de manifestação de interesse (PMI), sistema de registro de preços e registro cadastral. A incorporação do PMI ao marco legal das licitações é a maior novidade, mas há inovações em todos os procedimentos, notadamente no registro de preços.
A lei trouxe uma positiva inovação, ao nosso ver: a possibilidade de restrição de PMI a startups, assim considerados os microempreendedores individuais, as microempresas e as empresas de pequeno porte, de natureza emergente e com grande potencial, que se dediquem à pesquisa, desenvolvimento e implementação de novos produtos ou serviços baseados em soluções tecnológicas inovadoras que possam causar alto impacto (art. 80, § 4º).
No que é afeto ao sistema de registro de preços, ainda que não seja a única inovação na matéria, salientamos que se previu, conforme dispuser o regulamento, sua utilização também nas hipóteses de inexigibilidade e dispensa de licitação, para a aquisição de bens ou contratação de serviços por mais de um órgão ou entidade (art. 81, § 6º).
Destacamos também quanto a esse procedimento auxiliar as limitações às aquisições ou contratações adicionais, de que tratam os §§ 4º e 5º do art. 85. A trava do § 5º foi excepcionada para a adesão à ata de registro de preços gerenciada pelo Ministério da Saúde (§ 7º do art. 85). Inseriu-se, por fim, vedação à adesão, por órgãos da Administração Pública federal, à ata de registro de preços gerenciada por órgão ou entidade estadual, distrital e municipal (§ 8º do art. 85).
O capítulo pertinente às garantias (arts. 95 a 1010) trouxe alterações dignas de nota. Por exemplo, há previsão expressa de que, na hipótese de suspensão do contrato por ordem ou inadimplemento da Administração, o contratado fique desobrigado de renovar a garantia ou endossar a apólice de seguro até a ordem de reinício da execução ou adimplemento pela Administração (§ 2º do art. 95).
Como regra geral, foi estabelecido o patamar máximo de 5% do valor inicial do contrato para as garantias em contratações de obras, serviços e fornecimento de bens. O mesmo previsto no art. 56, § 2º, da Lei 8.666/1993. Contudo, o percentual pode chegar a 10%, desde que se justifique por meio de análise da complexidade técnica e dos riscos envolvidos (art. 97, caput).
Sobrelevamos o seguro-garantia, cujo objetivo é garantir o fiel cumprimento das obrigações assumidas pelo contratado perante a Administração, inclusive as multas, os prejuízos e as indenizações decorrentes de inadimplemento (art. 96, caput). Ele será prestado anteriormente à assinatura do contrato, resguardado o prazo mínimo de 1 mês da data da homologação da licitação (art. 95, § 3º). Previu-se, ainda, que o prazo de vigência da apólice será igual ou superior ao prazo estabelecido no contrato principal e que ele continuará em vigor mesmo se o prêmio não tiver sido pago pelo contratado nas datas convencionadas (art. 96, I e II).
Nas contratações de obras e serviços de engenharia, o edital poderá exigir a prestação da garantia na modalidade seguro-garantia e prever cláusula de retomada, que é a obrigação de a seguradora, em caso de inadimplemento pelo contratado, assumir a execução e concluir o objeto do contrato (art. 101). Se a obra ou serviço de engenharia for de grande vulto, e exigido o uso do seguro-garantia, que poderá prever também cláusula de retomada, o percentual máximo passa para até 30% do valor inicial do contrato (art. 98).
Esta solução é um arremedo do recentemente tão louvado performance bond norte-americano, uma tentativa efetiva de emplacar algo parecido. A concepção de que a adoção do performance bond afastaria a corrupção e a possibilidade de paralisação de obras possui uma série de imprecisões e inconsistências. Nutrimos fundadas dúvidas quanto à sua efetividade para o aumento da segurança conferida à Administração Pública na contratação, bem como receamos que as medidas tenham como único e real efeito a elevação do custo de formalização do seguro – e, por consequência, da contratação como um todo –, tendo em vista que a seguradora incorrerá em maior risco durante a execução do contrato. Questionamos a efetividade, a razoabilidade e a proporcionalidade da medida.
Sobre o tema, indicamos a leitura do Texto para Discussão 206 do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa do Senado Federal – Reformulação da Lei de Licitações e Contratações Públicas: fragilidades na proposta de uso de seguro-garantia como instrumento anticorrupção, de autoria do consultor Cesar van der Laan (https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td206).
Ademais, em inúmeras situações, é o próprio poder público quem causa ou concorre para a paralisação de uma obra ou serviço, dando azo ao emprego do princípio venire contra factum proprium. A seguradora pode se recusar a honrar o seguro, até porque ele se presta, lembramos, a garantir o fiel cumprimento das obrigações assumidas pelo contratado (art. 6º, LIV).
Temos reservas quanto à visão extremamente otimista que se têm em relação ao seguro-garantia desenhado na nova lei, alertando para que atrasos em obras também passam por desacordos comerciais envolvendo questões controversas em que não há como atribuir, de antemão, a responsabilidade exclusivamente ao contratado – como demonstram as inúmeras desavenças que acabam em discussões prolongadas no Judiciário. Isso obsta que se atribua certeza de que o seguro-garantia tenha um papel realmente amplo, pois não cobrirá esses riscos, tão comuns nas grandes obras públicas brasileiras.
Não podemos olvidar do fato de que a garantia obrigatória do valor do contrato por seguro não motiva uma companhia seguradora a fiscalizar mais ou menos uma obra. O seu lucro não depende disso. Importa-lhe a precificação do risco, feita no momento da contratação do seguro. Existe evidente conflito de interesse na relação entre a companhia seguradora e o ente público, que impõe restrição relevante ao desempenho da seguradora como interveniente nas contratações públicas. Isso porque seu faturamento é função direta do preço do contrato a ser segurado. Qual o incentivo teria a seguradora para fiscalizar superfaturamentos?
Não menos relevante é questionar por que se defende tanto o emprego do seguro-garantia no âmbito das obras públicas, se o seu uso não é generalizado em contratações de obras no setor privado?
Sublinhamos também que seguradora não é empreiteira. Dificilmente terá interesse em assumir uma obra (step in rights) – sequer é habilitada para isso – ou administrar sua execução por um subcontratado. Como a possibilidade do sinistro foi precificado lá atrás, quando da contratação do seguro, a seguradora simplesmente deseja pagar o prêmio avençado e seguir sua vida, cumprindo seus fins sociais, entre os quais, certamente, não está edificar obras civis.
Seguro-garantia não é vacina anticorrupção.
Para concluir o tema, não basta a lei querer que, em caso de descumprimento do contrato pelo contratado, a seguradora se sub-rogue nos direitos e obrigações. Os efeitos podem ser absolutamente contrários aos objetivados pela norma. Estamos em um Estado Democrático de Direito. Não é despropositado imaginar que, simplesmente, nenhuma seguradora oferte o produto, por desinteresse ou pela impossibilidade de dar as garantias exigidas pela legislação que rege o mercado de seguros.
Quanto ao Capítulo V, relativo à duração dos contratos, foi estatuída expressamente a exigência de inclusão da despesa no Plano Plurianual quando o contrato ultrapassar um exercício financeiro (art. 104).
O art. 105 autoriza a Administração a celebrar contratos com prazo de até 5 anos, com observância de diretrizes alinhavadas na lei, para serviços e fornecimentos contínuos, no qual se incluem aluguel de equipamentos e utilização de programas de informática. Outros contratos também poderão ter duração mais elástica.
Ainda em se tratando de contratos de serviços e fornecimentos contínuos, estes poderão ser prorrogados sucessivamente, respeitada a vigência máxima decenal (art. 106). Para tanto, exige-se previsão no edital e que a autoridade competente ateste que as condições e os preços permanecem vantajosos para a Administração. Permite-se a negociação com o contratado ou a extinção contratual sem ônus para qualquer das partes.
Os contratos que geram receita e os de eficiência que geram economia (art. 109, I), sem investimento, e certas avenças que envolvem tecnologia, defesa nacional e insumos estratégicos (art. 107) passíveis de advirem de contratações diretas (licitação dispensável), poderão ter duração prevista de até 10 anos.
Por sua vez, os contratos que geram receita e os de eficiência que geram economia, mas que demandam investimento, poderão ser firmados pelo prazo limite de 35 anos, nos contratos com investimento (art. 109, II).
Outra excepcionalidade em prazos contratuais é o de operação continuada de sistemas estruturantes de tecnologia da informação, que poderão ter vigência máxima de 15 anos (art. 113).
Sobre a execução dos contratos, evidenciamos a criação de contas vinculadas a despesas de obras. A expedição da ordem de serviço para execução de cada etapa de uma obra será obrigatoriamente precedida de depósito em conta vinculada dos recursos financeiros necessários para custear as despesas correspondentes à etapa a ser executada (art. 114, 2º). Os valores depositados nessas contas são absolutamente impenhoráveis (art. 114, § 3º).
Damos destaque a outra disposição relativa à execução de contratos de obras, que busca mitigar o problema das obras paradas. Trata-se do § 6º do art. 114, pelo qual, em caso de impedimento, ordem de paralisação ou suspensão do contrato, por mais de 1 mês, a Administração deverá divulgar, em sítio eletrônico oficial e em placa a ser afixada em local da obra de fácil visualização pelos cidadãos, aviso público de obra paralisada, com o motivo e o responsável da inexecução temporária do objeto do contrato e a data prevista para o reinício da sua execução.
Criou-se um capítulo inteiro na lei para disciplinar alteração de contratos e preços (arts. 123 a 135), merecedor de atenta leitura. O mesmo ocorre com o disciplinamento da extinção dos contratos (arts. 136 a 138). A lei não emprega mais o termo “rescisão”. Em seu lugar, utiliza-se “extinção”.
Importante contribuição é a nova lei de licitações e contratos prever expressamente o uso de meios alternativos de resolução de conflitos (arts. 150 a 153), objetivando evitar demandas judiciais intermináveis e deletérias aos interesses tanto da Administração quanto do contratado.
A nova lei prediz a possibilidade da desconsideração da personalidade jurídica, inexistente na Lei 8.666/1993. Observados o contraditório, a ampla defesa e a obrigatoriedade de análise jurídica prévia, o art. 159 a autoriza sempre que a pessoa jurídica for utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos na nova lei, bem como quando empregada para provocar confusão patrimonial.
Entendemos que a intenção do legislador foi de que, em qualquer caso, todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica serão estendidos aos seus administradores e sócios com poderes de administração, à pessoa jurídica sucessora ou à empresa do mesmo ramo com relação de coligação ou controle, de fato ou de direito, com o sancionado. Fazemos esta observação porque a redação pode ser interpretada de outra forma. Vejamos:
Art. 159. A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, e, nesse caso, todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica serão estendidos aos seus administradores e sócios com poderes de administração, à pessoa jurídica sucessora ou à empresa do mesmo ramo com relação de coligação ou controle, de fato ou de direito, com o sancionado, observados, em todos os casos, o contraditório, a ampla defesa e a obrigatoriedade de análise jurídica prévia.
O trecho “para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, e, nesse caso, todos os efeitos das sanções” é, no mínimo, dúbio, para não dizer indicador de que apenas na hipótese de confusão patrimonial todos os efeitos das sanções somente serão aplicados aos referidos em sequência. Alvitramos que em lugar de “e, nesse caso,” deveria estar escrito, p.e., “de forma a que”. Esperemos pelo que dirão os tribunais.
O capítulo exclusivamente dedicado às impugnações, pedidos de esclarecimento e recursos abrange os arts. 163 a 167.
Quanto ao controle das contratações (Capítulo III), comentamos a definição na lei de três linhas de defesa da legalidade e eficiência, imbuídas de verificar o emprego de práticas contínuas e permanentes de gestão de riscos e de controle preventivo (art. 168).
Das disposições gerais, conferimos importância especial à criação do PNCP, já referenciado no artigo. Trata-se de sítio eletrônico destinado à divulgação centralizada e obrigatória dos atos exigidos pela lei e à realização facultativa das contratações pelos órgãos e entidades dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário de todos os entes federativos (art. 173, I e II).
O PNCP será gerido pelo Comitê Gestor da Rede Nacional de Contratações Públicas, que será presidido por representante indicado pelo Presidente da República e por representantes dos entes federativos.
Dentre as informações que deverão constar no PNCP, estão as seguintes: a) planos de contratação anuais; b) catálogos eletrônicos de padronização; c) editais de credenciamento e de pré-qualificação, avisos de contratação direta e editais de licitação e seus respectivos anexos; d) atas de registro de preços; e) contratos e termos aditivos; f) notas fiscais eletrônicas, quando for o caso.
O art. 174 prevê, ainda, que os entes federativos poderão instituir sítio eletrônico oficial para a divulgação complementar e realização de suas respectivas contratações.
Dispositivos da nova lei em que se identificam inconstitucionalidades ou injuridicidades
Continuamos a apresentação da nova lei de licitações nesta terceira parte, dedicada a alertar para vícios de constitucionalidade e juridicidade que identificamos.
Há pontos merecedores de severas críticas, como quando promove inconstitucionais delegações legislativas externas, reiteradamente condenadas pela jurisprudência do STF, terceirizando totalmente a competência para legislar. P.e., isso ocorre em repetição ao se transferir para o indefinido “regulamento” regras de natureza tipicamente legal. Registra-se que o profícuo e minudente artigo dedicado às definições de termos utilizados na lei (art. 6º) pecou ao não definir o regulamento.
O hermeneuta cuidadoso perceberá as várias acepções possíveis para “regulamento”, não obstante o legislador haver “autorizado” estados, DF e municípios a aplicar os regulamentos editados pela União para execução da lei (art. 187), e indicado aos entes federados que, ao regulamentá-la, preferencialmente, editem apenas um ato normativo (art. 188). Incabível tal autorização na lei federal, já que o poder de decisão na matéria decorre da administrativa de estados, DF e municípios, bem como a lei não se presta a fazer recomendação ou sugestão. Um dos atributos da norma legal é a coercitividade. O art. 188 não a possui. Além disso, os comandos parecem ignorar a existência das competências legislativas específicas dos membros da Federação em licitações e contratos, inclusive a da própria União, que a ela se limita.
Assim, em vez de caracterizar descentralização e busca de flexibilidade diante das particularidades de cada ente federado, dando-lhes condições de enfrentar com maior efetividade questões idiossincráticas que variam em um país de dimensões continentais como o nosso, o comissionamento de competência para regulamento(s) – que a lei sequer especifica – acarreta insegurança jurídica e potencializa uma miríade de interpretações sobre sua natureza jurídica e autoridades ou órgãos autorizados a editá-los.
Há outros dispositivos que transbordam o âmbito das normas gerais de licitação e contratação, ferindo a autonomia administrativa e a acima citada competência legislativa específica dos entes subnacionais. Em vários momentos, a lei ambiciona determinar-lhes o agir em temas desse jaez, atribuindo ao nível federal editar normas infralegais a serem seguidas por todos.
A primeira crítica vem do final da lei: a vacatio legis. Poderia se prever um prazo dilatado, mas os arts. 190 e 191 criaram uma regra híbrida. Os arts. 89 a 108 da Lei 8.666/1993 – que tratam de crimes e penas, nem assim do processo e do procedimento judicial – serão revogados na data de publicação da nova lei (art. 190, I). Em redação que nos leva a pensar em conflito com o inciso I, o inciso II do art. 190 determina que “a Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, a Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, e os arts. 1º a 47 da Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011, após decorridos 2 (dois) anos da publicação oficial desta Lei”. Nesses 2 anos, a Administração indicará no edital por quais leis licitará, sendo vedado aplicá-las combinadamente (art. 191, § 2º).
A nova lei não veda a que órgãos e entidades decidam caso a caso qual lei será aplicada em uma outra contratação. Vislumbramos situações de confusão administrativa, em que um mesmo setor gestor – assim como os licitantes – terão de lidar com dois marcos legais simultaneamente. Potencializa-se a ocorrência de erros, que podem resultar em prejuízos significativos, além de disputas jurídicas.
Censuramos também o § 4º do art. 1º, pela retrocitada delegação legislativa externa. A prática condenável não é inovação, contudo. Contratações relativas à gestão das reservas internacionais do País serão disciplinadas integralmente em ato normativo do Bacen. Uma verdadeira carta em branco. Vão-se os anéis… e os dedos. É inequívoco que o legislador está abrindo mão de legislar. Quando o constituinte atribuiu à União a competência privativa para legislar do art. 22, XVII, deu ao Congresso, e a mais ninguém, essa atribuição. O Bacen não a possui. O legislador ordinário não tem o poder de terceirizar a competência, ainda mais de forma completa como fez. Sequer se deu ao trabalho de prescrever mínimos parâmetros e regras. Adverte-se que impor “observância dos princípios estabelecidos no caput do art. 37” da CF não é exercer a competência de legislar na matéria, dado ser regra antes posta pelo constituinte e de inafastável aplicação pela Administração, seja o legislador infraconstitucional, seja o administrador. Optou-se pela única escolha que não poderia ser feita: legislar por não legislar, que difere de simplesmente deixar de legislar.
Os incisos do art. 3º vão na mesma linha, indicando determinadas situações jurídicas que não se subordinarão ao regime da futura lei, que deveria entregar bem mais do que isso. Conforme dissemos, o legislador ordinário não pode redefinir a competência legislativa firmada pelo constituinte, mas, se pudesse, não bastaria dizer que a lei não se aplicaria a contratos do tipo X ou Y. Deveriam ser decretadas as normas que se aplicariam a tais contratos. Ora, trata-se da lei geral. Surpreendentemente, além de inconstitucional, s.m.j., a lei promove anomia. Nesse caso, o legislador está abrindo mão de sua competência legislativa. E não há quem possa cumprir esse papel por ele de forma hígida.
Compreendemos que operações de crédito externas não devam ser feitas por meio de licitação, pela sua singularidade. Seria de certa forma incoerente, v.g., o Banco Mundial “vender” crédito. Pode-se advogar pelo não cabimento de licitação ou, talvez, que seja desinteressante, mas isso não retira tais operações do âmbito das licitações e contratos da administração pública. Seria, então, caso de se definir inexigibilidade ou dispensa. A saída poderia ser incluir a situação específica nos artigos correspondentes a uma ou outra forma de contratação direta, mas não abrir mão da competência de legislar. Convém que se faça análise mais apurada frente à Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), cujos arts. 32 a 40 tratam das operações de crédito.
O inciso II do art. 3º traz clara incoerência conceitual. A lei veicula normas gerais para licitações e contratos, às quais, por óbvio, devem se submeter todas as normas específicas em seu campo de abrangência. O raciocínio é cartesiano: a lei específica deve seguir a lei geral, podendo adicionar peculiaridades. Contudo, define-se que na hipótese de haver legislação específica (própria), a lei geral não se aplicará. Verdadeira esquizofrenia legislativa.
O art. 4º define que sobre as licitações e contratos regidos pela lei incidirão os arts. 42 a 49 do Estatuto da Microempresa e Empresa de Pequeno Porte, a Lei Complementar 123/2006. O § 1º do artigo exclui dessa incidência duas hipóteses legais (incisos I e II). Por seu turno, o § 2º condiciona a “obtenção dos benefícios do caput” e o § 3º define parâmetros para aplicação dos dois parágrafos que o antecedem.
O caput do art. 4º é injurídico, pois não inova no ordenamento. É insuspeito que, diante da alínea d do inciso III do art. 146 da Lei Maior, pelo qual cabe à lei complementar definir tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, e da existência do Estatuto, os arts. 42 a 49 deste último são aplicáveis.
Avaliamos que, não obstante regras gerais de licitações e contratos sejam matéria de lei ordinária, não incumbe a esta revogar ou derrogar disposições aplicáveis às compras públicas em prol de determinado setor preconizadas pelo constituinte e criadas pelo legislador infraconstitucional em diploma de quórum qualificado. A Constituição não limitou o alcance das prerrogativas que poderiam ser concebidas, logo a lei ordinária não pode se arvorar a fazê-lo.
Constatamos uma passagem digna de nota nas regras atinentes ao edital. No § 5º do art. 25, os senhores deputados acrescentaram à redação originária do Senado a possibilidade de o edital prever a responsabilidade do contratado de realizar desapropriação autorizada pelo poder público. Ora, desapropriação é exercício de poder de polícia, privativo do Estado e indelegável. Como, à exceção deste ponto, a redação da Câmara aprimorou a inicialmente aprovada pelos senadores, não seria interessante recuperar essa última. A saída encontrada foi aprovar uma emenda de redação que dividia em duas alíneas as responsabilidades atribuíveis ao contratado. Assim, abriu-se a possibilidade de o presidente da República opor veto jurídico apenas em relação à alínea que trata da desapropriação. Ao que tudo indica, houve entendimento com o Executivo. Recursos da lógica legislativa.
Cremos que as regras de margens de preferência (art. 26) também possuem inconstitucionalidades. A primeira é de que, para determinados bens e serviços, a margem de preferência será definida pelo Executivo federal. Entendemos que se está subjugando outros poderes e membros da Federação à vontade do Executivo da União. No mínimo, viola-se a autonomia dos entes federados.
Além disso, os estados poderão estabelecer margem de preferência de até 10% para bens manufaturados nacionais produzidos em seu território. Os municípios poderão fazer mesmo em relação aos produzidos no estado em que estejam situados. Não para aí. Os municípios com até 50 mil habitantes poderão estabelecer outra margem de preferência de até 10% para empresas neles sediadas. Há jurisprudência consolidada do STF considerando o favorecimento em licitações de empresas sediadas no ente federado comprador incompatível com o art. 19, III, da Carta de 1988. Ademais, as sucessivas imposições de margens de preferência levarão a distorções absurdas, que materialmente impedirão a disputa, especialmente em mercados extremamente competitivos, nos quais os preços são muito próximos.
No que tange aos diálogos competitivos, o inciso XII do § 1º do art. 32 autoriza que o órgão de controle externo os acompanhe e monitore, opinando, no prazo máximo de 40 dias úteis, sobre a legalidade, a legitimidade e a economicidade da licitação, antes da celebração do contrato. O comando é despiciendo, dado que a competência para o órgão de controle externo exercer suas funções decorre do texto constitucional. Na matéria, o tribunal de contas já poderia atuar e não opina, decide. Outrossim, é incabível estabelecer em lei prazo para que o órgão exerça competência recebida da Constituição, quando ela própria fez tal imposição ou atribuiu à lei defini-lo.
Ademais, não há coerência em o Tribunal de Contas ter a faculdade de acompanhar e monitorar os diálogos competitivos e, ao mesmo tempo, obrigação de opinar em determinado prazo. Se cabe a ele escolher se acompanha e monitora ou não, natural que seja de seu exclusivo alvedrio opinar ou não.
O art. 66 versa sobre a documentação relativa à qualificação técnico-profissional e técnico-operacional. Identificamos um problema no seu § 12, pelo qual na documentação referente à apresentação de profissional detentor de atestado de responsabilidade técnica por execução de obra ou serviço de características semelhantes, para fins de contratação (tratada no inciso I do caput do artigo) não serão admitidos atestados de responsabilidade técnica de profissionais que tenham dado causa à aplicação das sanções de impedimento de licitar e contratar ou de declaração de inidoneidade para licitar ou contratar, em decorrência de orientação proposta, de prescrição técnica ou de qualquer ato profissional de sua responsabilidade.
Por não haver limitação temporal, algo como: “enquanto estiverem em vigor as sanções”, o texto prescreve uma penalidade de caráter perpétuo para o profissional, o que é vedado pela nossa Constituição. Pior ainda pelo fato de que o objetivo é afastar da disputa uma empresa que apresente profissional com esse tipo de problema. As empresas estarão sempre atentas quanto a este fato e nunca contratarão profissional que, em algum momento, tenha sofrido tais apenações. Ao fim e ao cabo, será apenas o profissional que estará permanentemente impedido de trabalhar em obras contratadas pelo poder público, pois nenhuma empresa o arregimentará. Há fundadas razões para acreditarmos que o dispositivo será contestado nos tribunais.
No campo das contratações diretas, somos obrigados a abrir parênteses para comentar sobre tema abordado em artigo de nossa autoria publicado em maio de 2020[2].
São inúmeros os casos de contratações diretas “autorizadas” em leis e que não se confundem nem com as situações previstas na atual nem na nova Lei de Licitações, e que, de fato, representam inconstitucionalidades. Não é desígnio deste artigo discutir o tema, motivo pelo qual apenas damos notícia, resumidamente, de opções legislativas que descumprem a Carta Política quando autorizam órgãos ou entidades governamentais a contratar diretamente, sem licitação, pessoas jurídicas de direito privado integrantes da Administração Pública que atuam em regime concorrencial para fornecer bens ou serviços que igualmente poderiam ser fornecidos pela iniciativa privada. Algumas leis chegam a violar o princípio da impessoalidade, pois não se limitam a definir hipóteses às quais devem se subsumir eventuais estatais beneficiárias das escolhas do legislador, mas chegam ao ponto de nominar os contemplados com as benesses. Individualização por razão social e CNPJ mesmo. Também se vulneram os princípios da isonomia e da moralidade, bem como o art. 37, XXI, c/c o art. 173, § 1º, III, e § 2º, da Constituição. São inúmeros os casos em que se franqueiam contratações diretas, por exemplo, de Petrobras, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal, para citar apenas algumas das maiores estatais.
Da nova lei, enfatizamos preceito inspirado no inciso VIII do art. 24 da Lei 8.666/1993, reeditado com pequenas adaptações no inciso IX do art. 74 da nova lei. Ambos, de acordo com o que defendemos, em interpretação conforme a Constituição, abrigam potencial inconstitucionalidade caso sejam utilizados para contratar sem licitação estatais que desempenham atividade econômica em regime de concorrência de mercado.
A excepcionalidade somente poderia ser utilizada para aquisição de bens produzidos ou serviços prestados por entidade que não se enquadre no art. 173, § 1º, da Lei Maior. Para as estatais exercentes de atividade econômica em regime concorrencial aplica-se a regra do § 2º do art. 173 da CF, não podendo elas gozar de privilégios fiscais não extensivos às empresas do setor privado. Privilégios fiscais são benesses na relação com o Estado, não se resumindo a regalias de natureza tributária. Ora, uma empresa ter a possibilidade de ser contratada sem licitação é um imenso privilégio de natureza fiscal. Qual empresa do setor privado não gostaria de desfrutar dessa prerrogativa na comercialização de seus produtos ou serviços?
Outro dispositivo da nova lei sujeito a reprimenda é o parágrafo único do art. 158, que conduz a significativas dúvidas interpretativas e abarca possíveis violações da competência constitucionalmente definida para o Tribunal de Contas competente e do princípio federativo.
O parágrafo permite que, na hipótese de haver celebração de acordo de leniência, os particulares participantes do acordo poderão se ver isentos de sanções impostas por tribunal de contas – previstas na lei respectiva orgânica –, caso este se manifeste favoravelmente.
A primeira questão a obstar a aprovação do dispositivo é a violação do princípio federativo. As sanções administrativas impostas pelos tribunais de contas são dispostas em legislações próprias dos respectivos entes federados, não em legislação nacional editada pelo Congresso Nacional. No âmbito do Direito Administrativo, a autonomia dos entes federados somente é mitigada em situações expressamente previstas na Constituição Federal, e não se trata de uma dessas excepcionalidades.
Alerta-se para o fato de que uma sanção somente pode ser imposta pelo tribunal de contas mediante uma deliberação colegiada sua (normalmente denominada acórdão), e sua reforma depende do emprego dos meios recursais próprios, para os quais há prazos a respeitar, sob pena de preclusão do direito de recorrer. Vencidos os prazos, constitui-se a coisa julgada.
De toda sorte, a resposta a eventual recurso exigiria novo julgamento. Nem mesmo a lei pode violar essa regra, que visa a garantir os direitos do administrado, além de lhe conferir segurança jurídica e proteção à coisa julgada.
Mesmo que se entendesse pela possibilidade nada ortodoxa – para não dizer antijurídica – de que o Tribunal de Contas pudesse alterar um julgado seu por iniciativa própria, conforme frisamos, haveria necessidade de se formalizar a modificação por meio de um novo julgamento. Tal fato, por si só, inviabilizaria o propósito da solução rápida buscada no acordo de leniência, trazendo mais lentidão e burocracia ao processo.
Igualmente grave é não estar especificado que tipo de manifestação viria do Tribunal, dando a ideia de que poderia ser uma simples comunicação da sua Presidência, por exemplo. Essa situação abre brechas para potenciais violações da competência constitucional desses colegiados.
Ainda, não está claro se a manifestação do Tribunal seria anterior ou posterior à formalização do acordo de leniência.
A nova lei tem mais uma previsão afrontosa às competências dos tribunais de contas. O § 1º do art. 171, determina que o tribunal de contas, ao suspender cautelarmente processo licitatório, deverá se pronunciar definitivamente sobre o mérito da irregularidade que deu causa à suspensão no prazo de 25 dias úteis, prorrogável por igual período uma única vez. A fixação de prazo para o exercício de competências constitucionalmente asseguradas aos tribunais de contas viola a autonomia desses órgãos. Quando o constituinte quis definir o prazo para a atuação das casas de contas – bem como de outros órgãos ou poderes –, o fez diretamente na norma matriz. Não cabe à lei, a nosso ver, limitá-lo.
A bem da verdade, todo o Capítulo III – Do Controle das Contratações (arts. 168 a 172) é inconstitucional. A matéria a que se dedica é, de fato, fiscalização financeira da administração, para a qual se exige lei complementar (art. 163, V, da CF).
A inconstitucionalidade das disposições é ainda mais flagrante pelo intento de disciplinar também a conduta de tribunais de contas das demais unidades da Federação. O art. 171 pretende dirigir o exercício das competências constitucionais das cortes de contas e o art. 172 invade suas competências de se auto-organizar, que extraem dos arts. 73 e 96 da Lex Magna.
A criação do PNCP igualmente suscita contestações. Apesar de reconhecermos a aptidão que o Portal terá de facilitar o acesso às informações sobre as contratações públicas, registramos a possibilidade de questionarem sua constitucionalidade, diante do caráter impositivo da participação dos demais entes da Federação, que indica afronta às suas autonomias.
Ressaltamos, contudo, que cadastros nacionais de natureza semelhante já foram criados, a exemplo do Cadastro Nacional de Empresas Punidas – CNEP e do Cadastro Nacional de Empresas Inidôneas e Suspensas – CEIS, previstos, respectivamente, nos arts. 22 e 23 da Lei 12.846/2013.
Mesma pecha recai sobre o art. 179, que impõe a todos os entes federativos instituir centrais de compras, com o objetivo de realizar compras em grande escala, para atender a diversos órgãos e entidades sob sua competência e atingir as finalidades da nova lei.
Encerramos o artigo na esperança de haver contribuído para que se comece a entender melhor o novo marco geral de licitações e contratos, diploma que, se tomarmos por exemplo sua antecessora Lei 8.666/1993, será objeto de trabalho de gestores, empreendedores e agentes de controle por muitos anos.
[1] Não é de agora que a matriz de riscos está na legislação. A Lei 13.190/2015, fruto da conversão da MPV 678/2015, a reconheceu como instrumento para estimar o valor da contratação de obra. O mesmo diploma introduziu o mecanismo de arbitragem para resolução de disputas no âmbito das contratações públicas, com o intuito de reduzir o tempo de paralisação das obras públicas.
[2] Texto para Discussão 278 do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa do Senado Federal – Contratação direta, sem licitação, de estatais que atuam em regime concorrencial: uma prática inconstitucional? (https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td278).
Francisco Eduardo Carrilho Chaves é advogado, engenheiro, consultor legislativo do Senado Federal, ex-auditor do TCU, autor do livro Controle Externo da Gestão Pública: a fiscalização pelo Legislativo e pelos tribunais de contas, com especializações em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público e pela Fundação Escola do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios.