A inflação da pandemia da Covid-19
Por Roberto Macedo
No meu último artigo, há duas semanas, argumentei que o noticiário sobre as causas da maior inflação em 2020 é limitado, em prejuízo da compreensão desse assunto. Três aspectos são enfatizados: o forte aumento dos preços de alimentos, como o arroz e o óleo de soja, e de preços industriais, este atribuído a uma escassez de insumos utilizados pelo setor, e a taxa de câmbio, em reais por dólar, que subiu bastante neste ano.
Na análise econômica, usualmente se distingue uma inflação de custos, como a dos aspectos citados, cabendo explicar por que aumentaram. E há a inflação de demanda, que pode ocorrer, por exemplo, quando um banco central amplia consideravelmente a oferta monetária e/ou é adotada uma política fiscal que expanda com vigor os gastos públicos. Essas fontes de inflação podem atuar conjuntamente.
No artigo citado, enfoquei a inflação de demanda, muito importante por dois aspectos, o lado fiscal da política macroeconômica governamental e o lado monetário e creditício da mesma política. A política fiscal tornou-se fortemente expansionista. Entre outras razões, pela adoção do auxílio emergencial e por outros dispêndios para a saúde. Isso teve o seu lado monetário mais claro com o auxílio emergencial, pois foi pago em dinheiro ou creditado em contas, alcançando dezenas de milhões de pessoas.
Mostrei também números de grande dimensão reveladores desse impacto monetário gerador de demanda. O papel-moeda em poder do público aumentou 35% entre março e setembro de 2020, os depósitos bancários à vista cresceram 25%, segundo o Banco Central, e esses aumentos foram significativos se comparados com os verificados em 2019, sem a covid-19. Ressaltei ainda as contas de poupança, cujo saldo total aumentou 18% entre março e setembro de 2020, ou R$ 152 bilhões. Pela primeira vez ultrapassou a imensa cifra de R$ 1 trilhão.
Outra fonte, o Fundo Garantidor de Créditos, revelou que o aumento foi mais forte, de 55% (!), nas contas de saldo mensal até R$ 5 mil, indicando que parte do auxílio emergencial aí ficou. Essas contas são também utilizadas, em parte, como depósitos à vista. E esse uso cresceu muito em 2020. Por exemplo, no mês de outubro, os depósitos na poupança passaram de R$ 218,1 bilhões em 2019, para R$ 279,6 bilhões em 2020; e as retiradas, de R$ 218,4 bilhões para R$ 272,6 bilhões no mesmo período.
Ainda do lado monetário, houve também aumento considerável das concessões de crédito, de apoio a pessoas físicas e jurídicas. Segundo o Banco Central, o saldo da carteira de crédito livre aumentou expressivos 26,5% para pessoas jurídicas e 8,7% para pessoas físicas, entre setembro de 2019 e setembro de 2020.
Concluí afirmando que essa forte expansão dos meios de pagamento pesou e continuará pesando na inflação de 2020. Acrescento que essa expansão coincidiu com forte queda do produto interno bruto (PIB), que foi de 2,5% no primeiro trimestre 2020 e de 9,7% no segundo. Assim, o grande aumento dos meios de pagamento, revelador de um também amplo aumento da demanda, encontrou a oferta em queda por causa do menor PIB, provocando assim pressões inflacionárias.
A previsão da inflação em 2020, medida pelo IPCA do IBGE, continuou subindo nas duas últimas semanas, como ocorre ininterruptamente há 14, segundo o boletim semanal Focus, do Banco Central. O último boletim, da semana passada, previa 3,25%. Em 5/6/2020 a previsão era de 1,53%, e havia caído desde o início do ano. Ou seja, a previsão mais do que dobrou desde junho.
Recentemente, o Banco Central divulgou seu Boletim Regional trimestral, de outubro, que reconhece o efeito dos programas de transferência de renda sobre a inflação, conforme estes trechos: “A pandemia da Covid-19 tem influenciado a inflação e os preços (..,) desde março (…) a depreciação cambial, os programas de transferência de renda e o aumento dos gastos com alimentação no domicílio pressionaram os preços dos alimentos. (…) a análise evidencia inflação de alimentos mais elevada no Norte e no Nordeste, inclusive para a faixa de renda mais baixa, o que sugere algum efeito do auxílio emergencial (…), mais significativo nessas regiões, sobre a demanda desses produtos”.
Usando esse diagnóstico para especular quanto ao futuro da inflação, a pressão inflacionária terá uma queda neste e no próximo trimestre com a redução e eliminação do auxílio, mais a expansão do PIB, que voltou a crescer no terceiro trimestre deste ano, queda que poderá ser arrefecida se o dinheiro acumulado em 2020 nas contas de poupança, ou de outras formas, for usado para consumo.
Passando a outros fatores, se o governo federal não tomar nos próximos três meses medidas efetivas para reduzir sensivelmente o déficit fiscal, que aumentou enormemente em 2020, isso poderá contribuir para agravar as preocupações quanto ao financiamento da dívida pública, criando pressões sobre o câmbio e sobre as próprias expectativas de inflação, que também poderão contribuir para agravá-la.
Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.
Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 19 de novembro de 2020.