O que fazer com a poupança, que segue aumentando?
No dia 20 de agosto último abordei esse crescimento com dados até o mês anterior. Volto ao tema porque os depósitos na Caderneta de Poupança continuaram aumentando bastante em agosto e setembro, quando o saldo total nas contas desse tipo ultrapassou a enorme cifra de R$ 1 trilhão (!), cerca de 13% do produto interno bruto (PIB).
Para uma ideia do significado desse valor, foi neste ano que esses depósitos ultrapassaram os ativos totais das entidades de previdência privada. Conforme a Associação Brasileira das Entidades Fechadas de Previdência Complementar (Abrapp), que em 2018 reunia 258 entidades, entre elas a Previ e a Petros, tais ativos somavam R$ 944 bilhões em julho último, sem perspectivas de ultrapassar R$ 1 trilhão este ano, pois em 2020 caíram R$ 5,7 bilhões até julho. Até o mesmo mês, o saldo total da poupança aumentou R$ 128,4 bilhões e subiu R$156,2 bilhões no ano até setembro. Cresceram principalmente pela diferença entre depósitos e retiradas, e uma parte bem menor pelos rendimentos da poupança, que até setembro somaram R$ 19 bilhões.
Outra razão para voltar ao assunto foi pesquisa recente dos economistas José Roberto Afonso e Thiago Abreu, envolvendo outro conceito de poupança, a ser publicada na revista Conjuntura Econômica. Tive acesso a um resumo de suas conclusões em matéria no jornal Valor de dia 13. Essa pesquisa será referida mais à frente.
Um aumento da poupança familiar em épocas de crise costuma ocorrer, pois o receio de mais dificuldades à frente estimula uma provisão maior de recursos para enfrentá-las. O Brasil enfrenta uma seriíssima crise econômico-social, que por si mesma pode ter estimulado a poupança, e em cima disso veio também um forte auxílio emergencial recebido da Caixa Econômica Federal, que creio ser a instituição preferida pelos que usam a caderneta. Assim, muitas contas antigas e novas devem ter recebido parte desse auxílio. É fator que até aqui vejo como mais importante, mas o assunto está a exigir análise mais aprofundada, pois pode ter havido também um aumento de depósitos não vindos do auxílio emergencial.
Sabe-se, por exemplo, que houve uma fuga dos fundos de renda fixa quando sua taxa de remuneração, com a queda da Selic, em alguns casos passou a ser inferior à da poupança, dependendo da alíquota do Imposto de Renda incidente sobre os rendimentos desses fundos e da taxa de administração cobrada pelas instituições financeiras. É possível que parte dessa fuga tenha ido para a poupança.
O Banco Central deveria fazer um amplo estudo abrangendo esses e outros aspectos do forte aumento da poupança, pois conhecê-los seria crucial para examinar a possibilidade de ampliar financiamentos imobiliários com esses recursos adicionais. Em particular, seria preciso saber se essas fontes são estáveis, pois se logo vierem saques desses recursos seria arriscado seu uso para tais financiamentos, usualmente de longo prazo.
Passando ao estudo de Afonso e Abreu, ele seguiu também a hipótese de poupança por precaução, e concluiu que “num cenário em que o PIB recue 5,4% e o consumo das famílias, 7,2%, o aumento da taxa de poupança chegará a 6,7% (…) da renda familiar, atingindo 20,2% do total, ante (…) 13,5% estimados em 2019”. E, citando Affonso: “O grande desafio macroeconômico é transformar essa poupança em investimento (…). E que (…), com isso, se consiga disparar o processo de criação de renda e emprego”. O conceito de poupança adotado pelo estudo, dado pela diferença entre renda disponível em geral e o consumo, indica um aumento bem maior da poupança do que o observado apenas nas cadernetas. Ignoro se os autores também trataram da poupança empresarial, e se abordaram a questão da estabilidade de recursos, mencionada acima. Pretendo voltar ao tema após acessar o estudo citado.
Para a poupança adicional disponível Afonso e Abreu propõem um novo arranjo institucional e financeiro, para criar um cenário mais favorável em que “os bancos poderiam oferecer crédito de longo prazo para as empresas investirem, e criar produtos para captar dinheiro das famílias para essa finalidade”. Entendi que também querem mais recursos para a infraestrutura, com o que concordo. No meu artigo citado propus que, se não houvesse demanda suficiente de financiamentos habitacionais, o governo poderia, seguindo procedimento utilizado no passado, autorizar que as instituições financeiras direcionassem parte dos recolhimentos compulsórios do Banco Central sobre depósitos de poupança para adquirir papéis emitidos pelo BNDES. Neste os recursos assim recebidos poderiam financiar investimentos não habitacionais.
Assim, enquanto na área fiscal o governo enfrenta severa escassez de recursos, há essa dinheirama nova nas contas de poupança e implícita na contração mais geral do consumo, conforme o estudo citado. O governo precisa examinar a viabilidade de usá-la para estimular as ainda fracas atividade econômica e criação de empregos.
Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.
Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 15 de outubro de 2020.