O Gás Natural como Protagonista
A Lei do Gás permite a expansão do gás natural na matriz energética
O Projeto de Lei do Gás, PL 6.407/2013, possui uma grande virtude de mudar o marco regulatório do gás natural, que atualmente, não é suficiente para atrair investimento para o setor e aumentar a participação do gás na matriz energética brasileira. Há cerca de 15, 20 anos, o gás natural mantém uma participação muito pequena na matriz energética brasileira, de 13%.
No mundo inteiro, o gás natural é considerado a energia da transição energética. Com a pandemia, essa transição, de fontes sujas para fontes limpas, deve acelerar, e o gás natural vai ser o último ciclo de combustível fóssil.
Na Revolução Industrial inglesa, o carvão foi a grande fonte de energia, nos 30 anos gloriosos da economia mundial, de 1945 a 1975, foi o petróleo, e agora, será o gás natural. O Brasil está atrasado e precisa se preparar para isso. O atual marco legal do gás não incentiva uma maior participação do gás na matriz energética brasileira.
Aumento global da oferta e produção de gás
O momento que estamos vivendo é excelente para o desenvolvimento do mercado de gás. Além de ser a energia da transição, o gás natural está com uma oferta muito grande no mercado internacional que começou quando foram introduzidas tecnologias capazes de liquefazer o gás.
No mundo todo havia diversas reservas de gás, como na África, por exemplo, nas quais não era economicamente viável explorar o gás, pois você não conseguia transportá-lo por gasoduto. No entanto, com a liquefação, foi possível colocar o gás em um navio e levá-lo para o mercado consumidor, onde ele é regaseficado ou mesmo utilizado de forma líquida.
O grande aumento da oferta continuou a partir do ano 2000, em particular 2005, que foi a enorme entrada de produção de shale gas no mercado americano. Isso provocou uma queda no preço do gás natural nos últimos anos.
No Brasil, a região do pré-sal possui uma imensa reserva de gás. Antes da pandemia se falava em dobrar a produção do pré-sal nos próximos 10 anos. No entanto, com a pandemia houve uma desaceleração de investimento pelas empresas petrolíferas. Ainda assim, se esse aumento de oferta não ocorrer em 10 anos, ele deve ocorrer em 12 ou 13 anos.
Petrobras abandona o monopólio no Brasil
No caso do Brasil, um ponto importante é o fim do monopólio de gás da Petrobras. Até então, a Petrobras tinha um monopólio vertical e horizontal. Vertical porque era a única importadora, produtora, e transportadora de gás no Brasil. Além disso, tinha ainda participação em 19 das 27 empresas de distribuição de gás estadual. E horizontal porque os produtos substitutos ao gás, como gasolina, óleo combustível, diesel, GLP, e botijão, também, eram monopólio da Petrobras.
Atualmente, no mercado de botijão a Petrobras vendeu a Liquigás, dessa forma, não será mais distribuidora de GLP. No mercado de gás natural, vendeu as duas grandes transportadoras, a TAG, gasodutos do Norte e Nordeste, e a NTS, gasodutos do Sudeste. Ademais, está vendendo, sua participação na TBG, que é a transportadora que traz gás da Bolívia.
Também está vendendo campos de petróleo e campos de gás. Além disso, a Petrobras assinou um termo de compromisso com o CADE que obriga a vender diversos ativos, como a sua distribuidora, a Gaspetro. A saída da Petrobras como monopolista nesse setor, em particular no fornecimento de gás, é muito importante.
A indústria de gás é uma indústria de rede, que funciona com escala. Neste tipo de indústria, na produção você tem concorrência. A Petrobras, por exemplo, concorre com a Shell, a Repsol, a BP, entre outras. No entanto, no transporte e distribuição, existem monopólios naturais, onde funciona o conceito de tarifa. A primeira coisa necessária para ter um gás mais barato e dinamizar o mercado, é estabelecer essa concorrência no fornecimento. Com a concorrência na produção do gás, haverá o aumento no número de comercializadores que é outro elo da cadeia onde existe a concorrência.
Pandemia faz necessária a releitura da Lei do Gás
O PL 6.407, não é uma proposição ruim, mas é uma proposta tímida. Ela foi também concebida antes da pandemia. No entanto, depois da pandemia, todas as mudanças precisam de uma releitura, não só no setor de gás. Qualquer projeto que traga reformas no setor, na economia, e no Brasil, tem que ter outro olhar, em função da pandemia. Nas questões de infraestrutura, a dificuldade de atrair investimento vai ser maior. Diversos países sairão prejudicados, gerando uma disputa maior por capitais e investidores.
Além disso, o PL 6.407 é uma proposta tímida porque, basicamente, só traz 3 novidades em relação ao marco legal atual. O primeiro ponto, de transformar o modelo jurídico de concessão em autorização, o mercado todo está de acordo. A autorização, apesar de juridicamente não ser tão forte, facilita e desburocratiza a construção de infraestrutura. No momento, há um projeto de ferrovia no Congresso que também está tentando mudar o sistema de concessão para autorização. A indústria de ferrovias é muito parecida com a indústria de gás, pois também é uma indústria de rede.
Outro aspecto que a nova lei muda é dar acesso não discriminatório nas infraestruturas, ou seja, aos gasodutos de escoamento, nas UPGNs, e no gasoduto de transporte, o que também é necessário. Outro ponto que o PL muda é o funcionamento do transporte, que passa a ter um critério de entradas e saídas de gasoduto, também é um ponto positivo.
A Lei do Gás não consegue conter a judicialização
É necessário fazer uma revisão dos artigos e evitar a judicialização. No mercado de gás, diferentemente da energia elétrica, existem atribuições para o Estado e atribuições de governo federal a nível regulatório. Na energia elétrica, a regulação é feita pela ANEEL ao longo de toda a cadeia. No entanto, no gás natural, o governo federal só regula da produção até o city gate. Nos estados, cada um tem sua própria regulação para o segmento de distribuição/comercialização. Essa fronteira entre a regulação Federal e Estadual tem causado judicializações. No artigo 7 da 6.407, inciso 6º, por exemplo, não está clara a questão de distinção de conceito entre gasoduto de transporte e distribuição. Hoje, já existe judicialização em relação a isso. Caso este artigo seja mantido, haverá um aumento da judicialização, o que poderá afastar o investidor de qualidade.
A Lei do Gás não garante a desverticalização da cadeia
Outro conceito importante é a questão da desverticalização, também conhecida como unbundling, ou seja, não permitir que o produtor seja proprietário de transporte, e vice-versa. No entanto, como o objetivo do Brasil, hoje, é atrair capital, não há sentido em escolher quem poderá investir em cada segmento. O ideal é que seja feito algo similar ao setor elétrico. Deve haver uma preocupação do governo de evitar a construção de novos monopólios e até do self dealing, como havia no setor elétrico, e que foi corrigido. Contudo, nas atividades reguladas, como distribuição e transporte, as empresas deveriam ser impedidas de comprar outros ativos, mas as suas holdings deveriam ter permissão de comprar ativos em outros segmentos da cadeia, assim como é feito no setor elétrico.
No setor elétrico, por exemplo, o grupo espanhol Neoenergia possui a distribuidora de energia elétrica Coelba, na Bahia, e investimentos em transmissão de energia elétrica e em geração, através da sua holding. Assim, há um unbundling contábil, em vez de fazer um unbundling mais profundo, o que reduz as barreiras para a entrada de mais investimentos.
A vantagem da térmica a gás na base do sistema
O terceiro ponto é o conceito de térmica a gás na base do sistema elétrico. É necessário que este conceito esteja bem definido. Isto é importante, pois o gás do pré-sal, hoje, está sendo reinjetado acima das capacidades técnicas, e quando é reinjetado, não gera royalties. O gás só gera royalties quando é consumido. Há dois tipos de gás natural, o gás associado ao petróleo, que é o gás do pré-sal, e o gás não associado, como por exemplo, o que é produzido na Bolívia.
Quando o gás é associado, a exploração é mais complicada, pois quando uma empresa compra um campo do pré-sal, o retorno para o investimento é o óleo, e não o gás. Assim, para dar pressão no campo, as empresas reinjetam parte do gás para tirar óleo. No entanto, uma outra parte, ela não precisaria reinjetar. Mas, para não reinjetar, é preciso que haja alguém que compre esse gás de maneira efetiva e regularmente. Pois caso pare de comprar, compromete a produção de óleo no campo. É necessário criar uma demanda efetiva para esse gás.
As térmicas na base do setor elétrico seriam o consumidor ideal para este gás. Com esse conceito bem definido, seria possível implementar térmicas inflexíveis, que funcionariam o tempo todo. Dessa forma viabilizaria o gás do pré-sal, e a construção de novos dutos de escoamento da produção. Isso também viabilizaria a exploração de gás na Amazônia, onde há uma grande oferta.
As térmicas na base também são positivas para o setor elétrico. Hoje, a matriz elétrica brasileira está muito baseada em fontes intermitentes, ou seja, usinas hidroelétricas a fio d’agua, que só geram energia quando chove, e fontes eólica e solar, que só geram energia quando venta ou quando está sol. A implementação destas térmicas vai dar resiliência e garantia de abastecimento. Vai funcionar como uma espécie de bateria virtual, permitindo que o governo gerencie melhor o nível de reservatório e a expansão das eólicas e solares.
Ao permitir o gerenciamento dos reservatórios, haverá uma redução de tarifa. No modelo atual, o ONS despacha primeiro a hidroelétrica, que é a energia mais barata. Quando o reservatório fica baixo, começa a despachar as térmicas. Assim, a volatilidade do Preço de Liquidação das Diferenças (PLD), que é o preço da energia fica com uma grande volatilidade. Isso ocorre, pois quando o ONS opta por despachar a térmica, o nível dos reservatórios está baixo demais e ele é forçado a despachar imediatamente as térmicas mais caras e mais poluentes.
A importância da térmica a gás na base para a retomada da economia
Outro risco que existe, hoje, é que caso a economia brasileira volte a crescer, poderá ter um racionamento, um apagão, porque essas energias intermitentes não vão segurar um crescimento de demanda. Isso só não aconteceu até agora, porque a economia não cresce, e consequentemente, o consumo de energia também não. Hoje, falamos de uma sobre oferta de energia muito grande. No entanto, basta vir o crescimento econômico para que esta sobre oferta acabe, já que a oferta de energia não vem rapidamente e a construção de novas usinas demora. A economia pode não crescer muito no ano que vem, mas pode ser que daqui a dois anos comece a crescer e é preciso decidir o planejamento do setor agora.
É muito importante que esse conceito de térmica na base conste na lei, porque assim, as próprias resoluções futuras da ANEEL e ANP, serão capazes de olhar o conceito na Lei. Para que haja investimento, é preciso que o conceito esteja na lei, e não apenas no decreto, para gerar segurança jurídica suficiente para grandes aportes de capital.
As térmicas na base também permitirão a interiorização do consumo de gás. A ideia é realizar leilões regionais. A perda de energia em gasoduto é próxima de zero, enquanto em linha de transmissão é de cerca de 15% a 17%. Com isso, há também o desenvolvimento regional já que o gasoduto pode ser seccionado, enquanto uma linha de transmissão, não. Ou seja, ao longo do percurso do gasoduto, é possível seccionar nas cidades, onde ele vai passando. Assim, ele vai poder colocar gás em carro, GNV, colocar gás em uma indústria local, e inclusive, levar gás até as residências e comércio, substituindo o botijão de gás.
A criação de uma única agência de energia
Há também outras mudanças necessárias. O setor de gás é um setor parecido com o elétrico, por se tratar de indústrias de rede. O setor elétrico brasileiro é um setor de sucesso. 98% dos brasileiros tem acesso à energia elétrica. Não tem nenhum serviço público que tenha tanto acesso, que seja universalizado, como a energia elétrica no Brasil. Desde a época do governo Fernando Henrique, as privatizações no setor elétrico têm tido sucesso. A última privatização que precisa ser feita é a da Eletrobras, que está atualmente tramitando no Congresso Nacional.
O setor de gás atual é o setor elétrico de 30 anos atrás. É necessária a criação de um operador nacional de gás natural, como o ONS no caso da energia elétrica. É preciso também criar uma câmara de compensação de liquidação de contratos como a Câmara de Compensação da Energia Elétrica (CCEE). Uma opção ainda melhor é juntar tudo na ONS e na CCEE, que já existem hoje, criando um Operador Nacional do Sistema de Energia e uma Câmara de compensação e liquidação de contratos de energia. Isso seria um primeiro passo para criar no Brasil uma agência de energia.
No Brasil, não faz mais sentido, atualmente, ter uma agência de energia elétrica e uma agência nacional do petróleo. A ANP foi criada em 1997, porque era preciso ter uma agência para ser uma espécie de fiador para atrair investidores para o setor de petróleo, porque havia um monopólio gigantesco da Petrobras. No entanto, não tem mais isso. Não faz sentido ter uma agência reguladora que trata de gasolina e diesel. Gasolina, diesel e petróleo, por se tratarem de commodities, têm seus valores estabelecidos em preço. Uma agência reguladora só faz sentido quando o setor tem tarifa. Assim, o gás natural deveria ir para essa agência de energia.
Adriano Pires é sócio-fundador e diretor do Centro Brasileiro de Infra Estrutura (CBIE). Doutor em Economia Industrial pela Universidade Paris XIII (1987), mestre em Planejamento Energético pela COPPE/UFRJ (1983) e graduado em Economia formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1980).