O Federalismo brasileiro e a reforma tributária: Uma janela de oportunidade
A estrutura organizacional do federalismo brasileiro não guarda nenhuma semelhança com a de outros países no tocante à arrecadação de tributos e à prestação de serviços à população. Se consultarmos o artigo 18 da Constituição Federal, descobriremos que a nossa República é constituída pela união de 26 estados, um distrito federal e todos os municípios – somos o único país no qual os municípios são membros permanentes da federação e a oferta de bens públicos é colaborativa entre os três níveis de poder.
Outra importante distinção a fazer entre as federações é que algumas unem os subgovernos (estados) no formato “come together” à semelhança dos EUA, ou, alternativamente, estabelecem a configuração “hold together”, que caracteriza a maioria dos Estados que transitaram de um império (Estado Unitário) para uma federação, como o Brasil e a Alemanha.
No caso americano, o sistema opera com dois níveis de decisões, União e estados, estes últimos com autonomia política plena. Isso significa, por exemplo, que a ordem tributária de um estado americano é completamente diferente da de outro, além do que a relação entre pagar impostos e receber os benefícios deste gravame é direta entre cidadão e Estado. Reduzir impostos, ou cobrar mais para aumentar a oferta de um serviço público é, geralmente, um embate local, mobiliza os contribuintes, influencia no ambiente econômico das empresas e replica diretamente na qualidade dos serviços prestados à população. Portanto, há um forte sistema competitivo entre os subgovernos para equilibrar a oferta de bens e serviços públicos, com baixo custo tributário para empresas e cidadãos.
No caso alemão, pelo fato de ter sido um Estado Unitário, os subgovernos têm autonomia subordinada, as finanças públicas são centralizadas na União, e a oferta de bens públicos é regulada por um órgão, o Bundesrat, o qual segue a diretriz constitucional criada no final dos anos 1960, que determina a igualdade dos serviços públicos ofertados nas 16 Länder (estados federados). Desta maneira, como exemplo, a estrutura física e gerencial de uma escola no Norte da Alemanha é exatamente igual à encontrada no Sul. Isso garante a uniformidade e qualidade na oferta de ensino.
Essa igualdade nos equipamentos e na oferta dos serviços públicos dentro das 16 Länder não gera competição, e a qualidade dos serviços vem desta uniformidade.
O federalismo brasileiro, diferentemente dos casos citados acima, se caracteriza por ter uma arrecadação tributária centralizada como a alemã, mas os gastos são descentralizados e com grande autonomia pelos entes federados, como os americanos.
Essa dicotomia gera muitas distorções, entre elas a subordinação fiscal das unidades federativas ao governo central, a dificuldade do cidadão comum em controlar os gastos públicos, e a má qualidade dos serviços públicos oferecidos à população pelos três níveis de poder. Nesse tipo de federalismo, as despesas obrigatórias e as vinculações orçamentárias não são impedimento para que o gestor público brasileiro possa fazer gastos superfaturados ou usar inadequadamente o dinheiro público.
Os efeitos mais visíveis desta disjunção são a contratação de obras, serviços e produtos de baixa qualidade e superfaturados, que oneram o orçamento público, não atendem as demandas da população, mas, na maioria das vezes, beneficiam financeiramente os envolvidos na operação comercial. Outro efeito colateral consiste nas regalias salariais diretas e indiretas acumuladas pela elite do funcionalismo público, nos três níveis de poder, que são, invariavelmente, incompatíveis com a renda da população.
A distorção fiscal brasileira também pode ser compreendida pela inexpressiva participação que os municípios têm na arrecadação tributária total (algo como 6,5%), que contrasta com sua grande capacidade de despesa, consumindo alguma coisa próxima de 24% da capacidade fiscal do Estado. O mesmo acontece, em menor escala, com os estados. Assim, podemos afirmar que esses dois níveis de poder são dependentes financeiramente do governo central e geradores de desequilíbrio fiscal.
A lógica das despesas descrita acima aponta para um grande estímulo ao contínuo crescimento do déficit público nos três níveis federativos. É também a combinação perfeita entre baixo controle dos gastos governamentais pelo cidadão comum e a grande autonomia para desperdício financeiro do governante de plantão.
Os déficits que ocorrem com regularidade, nos três níveis de poder, produzem um consumo de recursos econômicos da sociedade que, atualmente, gira em torno de 33% do PIB na forma de impostos, e aproximadamente 7% na forma de déficit fiscal. Na prática, isto significa que o Estado brasileiro captura, aproximadamente, 40% do PIB e necessitará no futuro próximo, se nada for feito, de mais recursos do setor produtivo.
Uma reforma tributária para ter sucesso deverá definir, antecipadamente, uma estrutura federalista que propicie eficiência e controle social nos gastos dos governantes e na qualidade dos serviços prestados à população. No entanto, para que a carga tributária seja sustentável, deverá ter regras simples de cobrança e perseguir uma redução do custo total do Estado para aproximadamente 25% do PIB, cifra que tínhamos na promulgação da Constituição de 1988, o que tornaria atrativo o empreendedorismo no Brasil, sendo um forte estímulo para o crescimento do setor produtivo.
No lado da arrecadação, os tributos devem ser de baixo custo para a sociedade e descomplicados. Isso ampliaria a base de arrecadação ou, dito de outra maneira, que os tributos viabilizem o crescimento do setor privado e consigam incorporar a enorme parcela de pequenos empreendedores que hoje estão à margem do sistema tributário. A apropriação dos excluídos propiciaria um ambiente favorável ao empreendedorismo, o que pode significar um enorme espaço para o crescimento sustentável do PIB. Essa condição tornaria a dívida pública interna administrável.
A atual relação dívida interna/PIB, que deverá chegar em torno de 85% no final de 2020, prosseguirá crescendo e ameaçará a estabilidade econômica. No entanto, ela poderá ser controlada se houver prosperidade. O crescimento da economia, por si só, é capaz de reverter a trajetória de crescimento da dívida, e para isso o Estado deve garantir uma carga tributária compatível com a renda do brasileiro, taxas de juros baixas e um ambiente de negócios propício para o empreendedorismo.
A perspectiva dos gastos públicos com maior eficiência deve estar presente no legislador da atual reforma tributária, que deve perseguir despesas com maior impacto social, ou seja, que universalizem a oferta dos serviços públicos com qualidade à população e que o controle dos gastos dos governantes possa ser feito pelo cidadão comum.
Das três propostas que tramitam, as duas do Congresso são semelhantes, sendo que a do governo federal está focada exclusivamente na sua base tributária, ou seja, unifica e simplifica o PIS e o Cofins e, posteriormente, o IPI, criando um imposto sobre valor agregado que na primeira fase é de 12%. Na Câmara, a sugestão é unificar alguns dos impostos com perfil de valor agregado (IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS), com uma alíquota única de 25%. No Senado, a ordenação tributária se baseia na junção dos impostos IPI, PIS, Cofins, ISS, CSLL, IOF ICMS, Salário Educação e Cide dos Combustíveis, que se chamará Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e poderá chegar à taxa de 30%. No entanto, como complemento, todas propõem criar um imposto seletivo centrado no consumo de cigarros e bebidas.
Caso a simplificação tributária apresentada pelo governo central ganhe força, o impacto será pequeno para o contribuinte e não produzirá modificações profundas no pacto federativo. No entanto, se as propostas do Congresso avançarem, elas terão forte impacto na reorganização da federação.
Se a proposta do IBS do Senado avançar, que é radical na simplificação, mas ainda não tem definida a sua forma de arrecadação, e se o tributo ficar na esfera dos estados, este deslocamento produzirá um reordenamento federativo. Uma possibilidade é que poderia ser na forma de duplo estágio, como é feito no Canadá, ou seja, onde os subgovernos arrecadam o imposto e transferem posteriormente para a União a sua alíquota. O Good and Service Taxes (GST que é o IVA canadense) transfere 5% do arrecadado para o governo central e as províncias decidem o valor das suas alíquotas, que no total não pode passar da cifra de 15%.
Caso ocorra esse deslocamento tributário para os estados, ele reduzirá o poder financeiro e político do presidente na mesma proporção que aumentará a força e a influência política dos governadores, e para dar aderência a essa nova organização federativa seria prudente casar as eleições estaduais com as municipais, e deixar solteira a eleição de presidente. Isso produziria um novo espaço político de “checks and balances” na relação entre poderes. Outro fator de convergência para a descentralização política e o aumento do empoderamento do eleitor seria a adoção do voto distrital puro.
Assim, um novo desdobramento desejável desse processo de descentralização tributária seria uma nova definição de papéis desempenhados pelos entes federados. Ou seja, se o novo Imposto sobre Bens e Serviços ficar na esfera dos estados, este ente se responsabilizaria com exclusividade por alguns serviços como saúde, por exemplo, que deixariam de ser oferecidos na forma colaborativa entre os três níveis de poder, como está na Constituição (artigo 30, inciso VII), e seriam de responsabilidade exclusiva, ou seja, haveria uma conexão direta e única entre a população e governador.
O formato de responsabilidade exclusiva é um movimento de descentralização política que nos aproximaria do federalismo americano, pois aumentaria o controle do contribuinte sobre os gastos e a qualidade destes serviços prestados. Assim, não teríamos a “cooperação técnica” prevista na Constituição, que torna difusa a responsabilidade no atendimento às demandas do cidadão e, portanto, não estaríamos submetidos a situações de truculência federativa como a do atual presidente, que se ausenta da gestão da saúde e sugere o uso da cloroquina como solução única para o enfrentamento da pandemia. Evitaríamos, também, o uso dos recursos federais para cooptar politicamente as bancadas estaduais e municipais através de programas centralizadores, como fez a presidente anterior, com objetivo de ampliar a influência política do governo central.
No entanto, ao contrário da possível janela de descentralização com a reforma tributária, a aprovação do FUNDEB, cujo novo texto amplia a participação financeira da União, passando de 10% para 23% em seis anos, aponta na direção da centralização da gestão dos recursos da educação.
Na perspectiva da sua organização, o FUNDEB é um fundo de natureza contábil, com a arrecadação de recursos dos três níveis de poder, sendo a distribuição de recursos realizadas pela União e estados, com a participação de agentes financeiros do Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal. Os créditos são automaticamente realizados em favor dos estados e municípios de forma igualitária com base nos alunos atendidos, equalizando a distribuição dos recursos. Possivelmente, o novo FUNDEB elevará o gasto mínimo por aluno de R$ 3,4 mil para R$ 5,5 mil em 2026.
Este formato de disponibilização de recursos permite aos municípios e estados planejar as suas ações educacionais e o desafio é atrelar o financiamento a uma efetiva melhora da qualidade. Temos na vocação deste fundo a combinação da centralização financeira com descentralização de gestão. No entanto, os municípios têm autonomia vinculada no gasto destes recursos, o que significa a obrigatoriedade de gastar em educação, mas não impede de fazer políticas educacionais equivocadas.
Se com este fundo adotássemos uma organização parecida com o Bundsrat alemão, seria possível uniformizar as ações educacionais no tocante a salários, ambientes escolares e um núcleo de disciplinas estratégicas para elevar os resultados obtidos no processo educacional de aproximadamente 17 milhões de crianças. Isso seria um bônus de investimento educacional para esta e as próximas gerações de estudantes.
No entanto, temos no atual espaço político duas janelas de oportunidades contraditórias, a reforma tributária com o IBS do Senado com possibilidade de ser descentralizadora e o FUNDEB.
A definição de uma nova ordem federativa – totalmente centralizada ou descentralizada – precede qualquer reforma estrutural. Devemos responder com clareza qual ordem federativa queremos, pois o cidadão tem o direito de saber, com transparência, qual governo recolhe seu tributo e que ente federativo responde suas demandas.
Caso a escolha seja pela descentralização, a União, os estados e os municípios deverão definir o seu novo leque tributário e as suas responsabilidades explícitas na oferta de serviços públicos. Caso contrário, se a opção for aumentar a centralização, devemos criar um órgão gestor semelhante ao Bundesrat, a fim de reduzir a influência política e aumentar a qualidade técnica dos gastos públicos.
Renaldo Gonsalves é professor doutor do Departamento de Ciências Atuariais na PUC-SP.
E-mail: gonsalves.renaldo@gmail.com.