Constitui lugar comum afirmar que o Brasil é um país caracterizado por desigualdades. Qualquer político ou acadêmico quando afirma ou quando aborda o problema dos desequilíbrios do país cita o desequilíbrio entre indivíduos, isto é, o problema da desigualdade interpessoal de renda, e o desequilíbrio entre regiões, vale dizer, o problema da desigualdade interregional de renda. Dir-se-ia que é ‘politicamente correto’ mencionar um após o outro. Como duplas que não podem ter existência própria. Esta pequena nota argumenta que provavelmente o problema regional é muito menor do que se imagina, não justificando que a ele seja dado o mesmo grau de importância do problema da desigualdade interpessoal de renda.
Há dois enfoques ao problema da desigualdade regional de renda. O primeiro refere-se ao problema da desigualdade regional de renda per capita entre regiões. Neste enfoque deseja-se investigar e propor políticas que reduzam as diferenças de renda per capita entre regiões. O segundo refere-se ao problema da desigualdade regional da renda total, isto é da concentração da produção ou da distribuição espacial da produção. É comum a produção não ser distribuída uniformemente entre as regiões. Neste caso há desigualdade na renda absoluta de cada região: em geral uma região pequena e altamente industrializada produz uma fração substancial do PIB nacional.
Os dois problemas são muito distintos, demandando políticas diferentes. Em particular, não é muito claro o porquê do problema da concentração produtiva ser considerado um problema. A diferença básica entre uma economia regional e uma economia nacional é a mobilidade do fator trabalho. Há grande mobilidade do capital entre economias nacionais: o capital é internacionalmente móvel. Entre regiões de uma mesma economia nacional há mobilidade do capital e mobilidade da mão-de-obra. Desconsiderando alguns períodos em que houve expressiva mobilidade internacional da mão-de-obra – segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX -, a principal distinção entre uma economia nacional no mundo, de uma região no interior de uma economia nacional, é a mobilidade da mão-de-obra em uma economia nacional.
Com mobilidade perfeita de mão-de-obra, se esta tiver as mesmas características nas diversas regiões, não pode haver diferença de renda per capita entre as regiões. Qualquer diferencial seria eliminado por meio de migração. Poderíamos até imaginar que, por algum motivo, houvesse diferença na dotação de infra-estrutura entre as regiões. Por exemplo, que uma região fosse muito mais bem servida de portos e estradas do que a outra. Esta maior oferta de infra-estrutura elevaria a produtividade da mão-de-obra, elevando os salários e, portanto, a renda per capita. Mesmo assim, se o fator trabalho for igualmente produtivo a migração reduziria a oferta de trabalho na região em que há menor oferta de infra-estrutura até os salários igualizarem-se. Esta região seria menos populosa, mas a renda per capita do setor privado, exclusive renda do governo na forma de remuneração dos serviços gerados pelos bens públicos locais, não seria diferente entre regiões.
A moral desta história é que a mobilidade do trabalho produz uma grande força igualizadora das rendas per capita entre as regiões. É possível afirmar que a mobilidade de mão de obra é imperfeita. Ninguém disputaria esta proposição. O mais difícil é justificar que a imperfeição da mobilidade espacial de mão-de-obra consiga impedir que diferenciais de renda substanciais não sejam eliminados. Teoricamente, é possível argumentar que imperfeições na mobilidade consigam reduzir a velocidade de ajustamento, mas não impedir eternamente que o ajustamento se dê. De fato, não há motivo para que uma possibilidade de arbitragem nunca seja explorada. Podemos concluir que do ponto de vista teórico só pode haver diferenças de renda per capita entre regiões se as características dos trabalhadores das regiões diferirem.
Portanto, no que se refere à desigualdade de renda per capita, proponho que seja considerada a distinção entre dois problemas de natureza totalmente diversa. O problema da baixa renda per capita por motivo regional do problema da baixa renda per capital por motivo social. No primeiro caso uma região apresenta baixa renda per capita por características embutidas na região, enquanto que no segundo caso a região é pobre por características embutidas nos moradores da região. Empiricamente, a maneira de distinguir entre o problema regional e o social é estudar os diferenciais de renda entre trabalhadores de diversas regiões, controlando pelas características do trabalhador. Para um dado diferencial de produto per capita entre regiões, dizemos que há um problema regional se o diferencial de renda entre trabalhadores com as mesmas características, em diferentes regiões, explicarem uma parcela elevada diferenciais de produto per capita. Por outro lado, se após controlarmos pelas características do trabalhador, o diferencial regional de renda reduzir-se muito ou desaparecer, dizemos que não há problema genuinamente regional, mas sim há um problema social, que é altamente correlacionado com a região. Em outras palavras, a região pobre é majoritariamente povoada por indivíduos com características que se correlacionam com baixa renda.
A evidência empírica suporta a visão de que no Brasil a baixa renda percapita de algumas regiões deve-se principalmente a um problema de natureza social, não constituindo problema genuinamente regional. Savedoff (1990) conclui que “(…) a categoria região metropolitana explica 2,8% da variação do log dos rendimentos.”(p. 544) Observa-se diferenciais de salários estatisticamente significantes entre regiões metropolitanas, mas estes são quantitativamente de ordem de grandeza muito inferior às diferenças de renda per capita entre as regiões. Trabalhando com os dados de Savedoff, Barros e Mendonça (1997) mostram que estes diferenciais variam de -10% para Belém até 25% para Curitiba, como desvio da média. Estes números, comparados com os diferenciais de até 600% que se observam entre a renda per capita de Estados, são desprezíveis. Como observado por Savedoff, eles também são desprezíveis para explicar a péssima distribuição de salários da economia brasileira. Por outro lado, é possível que estes diferenciais sejam próximos, em valor presente, ao custo fixo de mudar de local de residência. Também pode-se argumentar que para algumas cidades este diferencial revela amenidades e serviços que a cidade oferece. Em todo caso, mesmo não trabalhando de forma perfeita, a segmentação regional do mercado de trabalho não explica os diferenciais de renda per capita observados entre regiões. Do ponto de vista dos diferenciais de renda per capita entre os Estados brasileiros, o mercado de trabalho funciona bastante bem.
Assim, tanto teórica como empiricamente a baixa renda per capita de algumas regiões não constitui problema de natureza regional. Os diferenciais de renda per capita entre as regiões existem por características dos indivíduos que moram na região e não por características da região. Assim, dado que o problema é social e não regional, parece-me que a política tem que ser focada no indivíduo e não na região. Estas características podem ter sido geradas na região. Não obstante, encontram-se ‘embutidas’ nas pessoas: por exemplo, se a qualidade do ensino público for pior nas regiões pobres isto terá impacto negativo, tanto qualitativamente quanto quantitativamente, sobre a qualificação da mão de obra. De fato, para este problema uma política de subsídios à indústria não parece ser a melhor recomendação!
Resta a questão da concentração da produção. Este sim não constitui questão de crescimento ou desenvolvimento, mas constitui genuíno problema regional. Teoricamente, é bastante simples gerar modelos de concentração produtiva. Em excelente trabalho, Krugaman (1991) nos oferece alguns exemplos. Em geral economias de aglomeração desempenham papel importante para concentrar a produção, enquanto que custos de transporte constitui força contrária. Se estes custos forem baixos, pode haver um equilíbrio com um centro e uma periferia. No entanto, a renda dos indivíduos no centro e na periferia serão iguais. Se a densidade populacional no centro for muito elevada, de forma que a congestão dos bens públicos e a falta de espaço em geral acarretem desutilidade aos indivíduos, não haverá igualização dos salários, mas sim do bem-estar. Segue a indagação: qual é, neste caso, o problema regional? Qual é o problema de haver concentração produtiva? Do ponto de vista econômico e social não há problema, a menos que no centro esteja havendo deseconomias de escala que não sejam corretamente captadas pelos mercados. Portanto, visto que tanto teórica quanto empiricamente não há problema regional, em geral, políticas de desenvolvimento regional são indicadas em função de algum motivo não econômico. Evidentemente, ao adotar uma política de desenvolvimento regional é preciso que fique bem claro o motivo extra-econômico que a sustenta.
Um possível motivo não econômico para justificar uma política de desconcentração regional é que, eventualmente, dada a base física de uma região, se não houver desconcentração produtiva, criando-se um pólo industrial na região, por exemplo, a região não teria capacidade de sustentar uma grande população, isto é, a densidade populacional teria que ser baixa ou a região seria condenada à miséria. Parece ser esta a preocupação de Celso Furtado, no GTDN, quando escreveu: “Caso se demonstre que a solução é inviável [a industrialização], não restaria ao nordeste senão a alternativa entre despovoar-se ou permanecer como região de baixíssimo nível de renda.” De outra forma, se houver, por exemplo, um grande ganho de dotação de educação que capacite a população nordestina tão ou mais qualificada do que a média da população brasileira, haveria um grande fluxo migratório e o nordeste despovoar-se-ia. Este parece ser o pesadelo de Celso Furtado. No entanto, não está claro que tal ocorreria desta forma. Dado o custo fixo da migração, é possível que, uma vez dotado de uma mão de obra bastante qualificada, as indústrias decidam deslocar-se para a região. Em economia regional faz sentido esta afirmação, pois acredita-se que a mobilidade do capital seja maior do que do trabalho.
Outro aspecto que não tem sido muito enfatizado é que não é obrigatoriamente verdade que política de desconcentração produtiva implique melhora da distribuição interpessoal da renda. Talvez o maior problema da economia brasileira seja a concentração interpessoal da renda. É possível melhorar a distribuição regional de renda piorando a distribuição interpessoal de renda: basta retirar recursos dos pobres que vivem na região rica e transferi-los aos ricos que vivem na região pobre. Por outro lado, este risco não existe em uma política redistributiva entre pessoas que não discrimine por regiões. Quando se tira de pessoas ricas, estejam elas onde estiverem, para transferir a pessoas pobres, estejam elas onde estiverem, faz-se automaticamente redistribuição regional de renda: a região rica por ter um número maior de ricos cede mais recursos, o inverso ocorrendo com a região pobre.
Assim inicia Celso Furtado o GTDN: “A disparidade de níveis de renda existente entre o Nordeste e o Centro-Sul do País constitui, sem lugar a dúvida, o mais grave problema a enfrentar na etapa presente do desenvolvimento econômico nacional.” Nesta frase eleva-se região a uma categoria independente de análise: independente das pessoas que nela vivem. Como se fosse possível abstrair os indivíduos da região. Por que o problema regional é mais grave do que a pobreza dos indivíduos? Por que o problema distributivo entre os cidadãos é menos grave do que o problema distributivo entre regiões? Por que a região está acima dos indivíduos? Se lembrarmos que o Nordeste é a região que de longe apresenta a pior distribuição interpessoal de renda e os maiores índices de pobreza ficamos mais perplexos. Em particular, é possível imaginar experimento em que uma política de desenvolvimento regional que eleve a participação na renda da região nordeste redunde simultaneamente na redução do bem estar dos nordestinos em comparação com uma situação de ausência da política. O motivo é que um ganho de renda na região nordeste, dada a péssima distribuição de renda encontrada nesta região, tem impacto muito pronunciado nos nordestinos ricos. Uma elevação de renda no sudeste tem um impacto relativamente mais acentuado nos salários dos trabalhadores mais pobres, dada a melhor distribuição de renda encontrada nesta região, acarretando por meio de migração, impacto sobre o bem estar dos nordestinos pobres. É possível que o efeito líquido sobre o bem estar dos nordestinos seja maior neste segundo caso. A probabilidade disto ocorrer será tão mais acentuada quanto mais o critério de bem estar social der peso aos pobres. Consequentemente, além de não haver justificativa teórica e empírica para políticas de desenvolvimento regional baseadas no subsídio ao capital privado, o fato que o impacto destas sobre a distribuição interpessoal de renda é, na melhor das hipótese neutro, retira destas políticas qualquer conteúdo social.
Desta forma, a simples constatação de que o diferencial de renda entre o nordeste e o sudeste reduziu-se não é evidência que a política regional fora bem sucedida. Primeiro, porque não está claro que as políticas de fomento nos moldes da praticada pela SUDENE o pelo programa FINOR são causadoras desta redução de distância relativa. Segundo, porque é possível que esta redução não tenha elevado o bem estar dos cidadãos nordestinos. Por outro lado, mesmo sob a hipótese que tenha havido crescimento causado pela política com elevação do bem estar da população nordestina, não é verdade que a política tenha sido bem sucedida. É necessário mostrar que, dado o custo de oportunidade do recurso público, um emprego alternativo não produziria maior elevação de bem estar. Isto é, a análise da eficácia das políticas regionais tem que levar em consideração o benefício mas também o custo destas. Esta verdade óbvia escapa a muitos entusiastas da política regional, que sempre apontam a redução do diferencial de renda entre as regiões como um indicador do sucesso das mesmas. É um possível indicador do benefício. O sucesso mede-se pela distância entre o benefício e o custo.
Algumas vezes argumenta-se, em justificativa de políticas de subsídio ao investimento em alguma região específica, que práticas desta natureza ocorrem em todos os lugares do globo. É comum apontar-se como exemplo os casos dos Estados Unidos, Itália, Canadá e Comunidade Econômica Européia. O argumento padrão é: “Se eles praticam porque nos não faríamos?” O motivo é a pobreza relativa da economia brasileira em comparação a estes exemplos citados. Explico-me. Devido a ausência de justificativa econômica e social para políticas de subsídio a acumulação de capital privado, estas somente justificam-se por um motivo extra-econômico e extra-social. Quanto maior a renda per capita de uma economia, mais ela tem condições de satisfazer objetivos não econômicos e sociais. Em outras palavras, políticas de desenvolvimento regional apresentam elevada elasticidade renda, constituem-se, portanto, em bem de luxo. Devido aos enormes problemas sociais enfrentados pela economia brasileira ela não tem recursos para dar-se ao luxo de gastar em políticas regionais de subsídio ao capital privado. Todo o recurso disponível tem que ser aplicado no melhoramento das condições de vida e de infra-estrutura social da faixa mais pobre da população brasileira. A Comunidade Econômica Européia pode dar-se ao luxo de investir uns trocados na industrialização de Portugal, nós não temos estes recursos, nós não somos tão ricos quanto a CEE.
Concluindo, a constatação de que para a economia brasileira o diferencial regional de renda entre trabalhadores com as mesmas características é muito baixo em comparação ao diferencial regional de produto per capita, aponta na direção que todo o esforço de desenvolvimento regional tem que ser focado no homem (bens meritórios, como saúde e educação) e em infra-estrutura (bens públicos). Não há motivo teórico e/ou empírico que sustente políticas de subsídio ao capital privado.
Para ler mais sobre o tema:
Barro, R. e Sala-I-Martin, X. 1995. Economic Growth, McGrow Hill.
Barros, R.P. e Lam, D. 1996. “Income and Educational Inequality and Children’s
Schooling Attainment” em Opportunity foregone: education in Brazil.
Washington: Inter-American Development Bank.
Barros, R. P., Mendonça, R. S. P. 1997. “Os determinantes da desigualdade no Brasil.” Programa de seminários acadêmicos do IPE/USP. Seminário número 22/97-02/10/97.
Barros, R. P., Mendonça, R. S. P., Duarte, R. P. N. 1997. “Bem-estar, pobreza e desigualdade de renda: uma avaliação da evolução histórica e das disparidades regionais.” Texto para discussão número 454, IPEA.
Furtado, C. 1997. Obra autobiográfica. Paz e Terra.
Hanushek, E. e Kimko, D. 2000. “Schooling., Labor Force Quality, and the
Growth of Nations,” American Economic Review 90(5): 1184-1208.
Krugman, P. 1991. Geography and trade. The MIT Press.
Razin, A. e Yuen, C. 1997. “Income convergence within an economic union: the role of factor mobility and coordination,” Journal of Public Economics, 66, 225-245.
Revista Econômica do Nordeste, v. 28, n. 4, out./dez.
Savedoff, W. D. 1990. “Os diferenciais regionais de salários no Brasil: segmentação versus dinamismo da demanda.” Pesquisa e Planejamento Econômico, v. 20, n. 3, dezembro.