As receitas da Infraero são suficientes para garantir aeroportos de boa qualidade?

Há quase cinco anos do “apagão” ocorrido em dezembro de 2006, são reiteradas e duradouras as manifestações para melhoria da prestação dos serviços aeroportuários brasileiros.

Seja por ascensão da chamada “classe C” ao mercado de transporte aéreo, seja por sucateamento da infraestrutura existente ou, mais recentemente, pela demanda de vultosos investimentos em virtude de grandes eventos esportivos (principalmente a Copa do Mundo de 2014), o tema constantemente ocupa a pauta dos noticiários jornalísticos.

De modo geral, em todas as análises empreendidas a Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero) é percebida como causa central de todos os males apontados. Por isso, diversas soluções vêm sendo apresentadas, sendo a principal delas associada à necessidade de aporte de capitais ao setor, seja por intermédio da abertura de capital da empresa, seja por venda do seu controle acionário, ou, mais recentemente por intermédio de concessões de aeroportos.

Independente de qual venha a ser a solução adotada, será fundamental a geração de receitas para remunerar a empresa prestadora dos serviços e para garantir investimentos em modernização e ampliação de aeroportos. Portanto, há que se responder uma questão central: as receitas geradas pela prestação de serviços hoje providos pela Infraero são suficientes para financiar investimentos em serviços aeroportuários de qualidade?

O que se mostra nesse artigo é:

(a) a Infraero gera um volume significativo de recursos (aproximadamente R$ 10 bilhões no período 2002-2010) que poderiam ser empregados em investimentos e serviços aeroportuários;

(b) esses recursos são, em sua maior parte, transferidos ao Tesouro e ao Comando da Aeronáutica, não revertendo em investimentos no setor;

(c) a Infraero obtém receita mediante a aplicação financeira desses recursos entre o momento da arrecadação e o momento da sua transferência ao Tesouro ou à Aeronáutica, o que gera distorção de foco na gestão da empresa, que passa a se preocupar mais com a gestão desse caixa do que propriamente com os serviços que deve prestar.

A infraestrutura aeroportuária pública no Brasil é explorada, com pequenas exceções, pela União por meio da Infraero, empresa pública criada pela Lei nº 5.862/72. Atualmente, a Infraero administra 67 aeroportos, opera 69 grupamentos de navegação aérea e 34 terminais de carga, e mantém 51 unidades técnicas de aeronavegação.

A Infraero é uma empresa de natureza comercial cuja função primordial é a de prestar serviços aos passageiros e às companhias aéreas operacionalizando embarques, pousos e oferecendo serviços de armazenagem e capatazia, entre outros.

A Infraero utiliza a infraestrutura aeroportuária da União para desempenhar suas atividades operacionais, aufere receitas a partir deste uso e realiza investimentos nesses ativos.

Parte dos recursos tarifários arrecadados, pagos por passageiros e por empresas aéreas, é classificada como receitas da Infraero, outra parte dos recursos é transferida para o Comando da Aeronáutica e para o Tesouro Nacional. A tabela abaixo apresenta os recursos que são classificados como receitas na Demonstração do Resultado do Exercício (DRE) da Infraero.

Receitas da Infraero

Receitas na Demonstração de Resultado do Exercício (DRE)
AeronáuticasComerciais
Tarifa de pouso e permanência, tarifa de embarque e 41% das tarifas de telecomunicação e auxílio à navegação aérea – TAN e TATTarifa de armazenagem e capatazia, concessão de áreas – esta especificamente registrada como ‘comerciais’ na DRE – e outros serviços

Fonte: demonstrações contábeis da Infraero disponíveis em www.infraero.com.br.

Os recursos tarifários que não são classificados como receitas da Infraero, enquanto não transferidos ao Comando da Aeronáutica e ao Tesouro Nacional, ficam registrados num grupo de contas do passivo chamado de ‘Recursos de Terceiros’. Este grupo é dividido em três contas: a) recursos de terceiros do Comando da Aeronáutica, b) recursos de terceiros do Tesouro Nacional, c) recursos de terceiros vinculados a investimentos.

Realizamos uma análise de rentabilidade da Infraero com base na fórmula de Dupont[1] e seus resultados foram cotejados com os fluxos de caixa gerados pelas atividades empreendidas.

A análise foi realizada como se os aeroportos fossem parte integrante do balanço da Infraero. A fórmula de Dupont revela que a rentabilidade da empresa é extremamente amplificada pelas receitas financeiras.

Observou-se que a alavancagem financeira e o spread são responsáveis por mais da metade da lucratividade da empresa na maioria dos períodos examinados. O retorno da atividade financeira da Infraero é tão preponderante que ajuda a sua rentabilidade a subir muito nos anos em que a atividade operacional gera lucro e impede que o prejuízo seja maior nos anos em que a atividade operacional gera prejuízos.

Ou seja, a empresa ganha muito mais, proporcionalmente, aplicando no mercado financeiro do que nas suas atividades finalísticas. Essa é uma grave distorção.

A explicação para a existência de receita financeira tão vultosa encontra-se no ganho de floating que a empresa aufere em virtude da atividade de administração dos recursos da conta “Recursos de Terceiros”, especialmente aqueles repassados à União, por intermédio do Tesouro Nacional e do Comando da Aeronáutica, e os relativos à Ataero vinculados a investimentos.

Qualquer incentivo a incrementar os serviços finalísticos de administração de serviços de embarque, capatazia e armazenagem, típicos do mercado aéreo, que gerariam mais receitas e a consequente eficiência operacional são minados em virtude da necessidade de a empresa repassar parcela considerável das tarifas para os “proprietários” controladores.

O incentivo, portanto, não é voltado à lucratividade operacional como forma de maximizar dividendos para os “proprietários” (a União, no caso), já que parcela considerável das tarifas que poderiam cobrir os custos operacionais, gerar uma boa rentabilidade operacional e fazer face às necessidades de investimento em infraestrutura aeroportuária é repassada ao Comando da Aeronáutica e ao Tesouro Nacional.

Como contrapartida, à empresa é concedido o direito de administrar esses recursos e obter receitas financeiras com seu floating. Assim, a empresa desvia-se da sua vertente operacional e concentra seus esforços na administração do fluxo de caixa dos “Recursos de Terceiros”. Com esses incentivos inversos, o modus operandi da empresa mais se assemelha ao de uma instituição financeira do que ao de uma administradora e prestadora de serviços aeroportuários.

A transferência dos recursos ao Tesouro e ao Comando da Aeronáutica não seria um problema se eles retornassem ao setor aeroportuário, por meio de investimentos públicos nos aeroportos. Mas não é isso que acontece. Para melhor entender o caminho dos recursos no setor, a figura abaixo apresenta o fluxo de recursos entre União e Infraero.

O Tesouro Nacional faz aportes de capital na Infraero, e dela recebe tanto dividendos quanto a transferência das receitas que são destinadas ao Comando da Aeronáutica ou à amortização da dívida pública.

Fluxo de recursos entre União e Infraero (veja tabela em versão pdf)

A tabela abaixo apresenta os valores desses fluxos.

Transações da Infraero com a União

Transações com a União201020092008200720062005200420032002Total
Aportes de Capital33915733500,719221.215
Dividendos719387650322414052861
Comando da Aeronáutica (a)6291.1321.1101.0469517677464894397.309
Tesouro Nacional2362201982411642342252011421.861

Nota. Em R$ milhão; (a) no Comando da Aeronáutica os recursos são repartidos entre Fundo Aeronáutico, Departamento de Controle do Espaço Aéreo (Decea) e Secretaria de Economia e Finanças (Sefa). Fonte: demonstrações contábeis e notas explicativas da Infraero de 2002 a 2010 disponíveis em www.infraero.com.br.

Somando os dividendos com as transferências ao Tesouro e à Aeronáutica, temos que, no período 2002-2010, a Infraero repassou ao Governo Federal R$11,5 bilhões. Deduzindo os aportes de capital feitos na empresa, o volume líquido transferido ao Governo foi de R$ 10,3 bilhões.

Os recursos repassados ao Tesouro Nacional são destinados à amortização da dívida pública federal, nos termos das Leis nos 9.825/99 e 10.744/2003. Os recursos repassados ao Comando da Aeronáutica, nos termos do art. 1º, §1º, da Lei nº 7.920/89, são destinados à “aplicação em melhoramentos, reaparelhamento, reforma, expansão e depreciação de instalações aeroportuárias e da rede de telecomunicações e auxílio à navegação aérea”.

Se o dinheiro transferido ao Comando da Aeronáutica fosse, efetivamente, investido nessas finalidades, teríamos o significativo valor de R$ 7,3 bilhões adicionais com destinação específica para investimentos em infraestrutura aeroportuária.

A questão é saber se esses recursos foram efetivamente empregados na sua destinação obrigatória prevista na Lei nº 7.920/89.

Nas demonstrações contábeis e no relatório de administração elaborados pela Infraero, não existem informações específicas sobre a realização desses investimentos compulsórios. Os dados disponíveis apresentam os investimentos com recursos próprios e de outras fontes que não os recursos do Comando da Aeronáutica, conforme descrito na tabela abaixo.

Fonte dos RecursosTotal201020092008200720062005200420032002
Recursos próprios1771320,171,563,8241,7209,9228,8260,296,9278,1
Recursos do orçamento fiscal781,4117,772,7145,395,896,1253,8
Recursos Ataero (parte Infraero)1651,9205,87162,4101,6225198,1241,1407,2139,7
Recursos de convênios426,2297,439,99,210,769
Total4630,5643,6215,2271,5439,1828,4720,6510,5514,8486,8

Nota. Em R$ milhões. Fonte: demonstrações contábeis e notas explicativas da Infraero de 2002 a 2010 disponíveis em www.infraero.com.br.

Vê-se que, no período de 2002 a 2010 foram realizados investimentos de R$ 4,6 bilhões em infraestrutura aeroportuária. Se aqueles outros R$ 7,3 bilhões, transferidos ao Comando da Aeronáutica, tivessem sido aplicados na sua destinação compulsória, o sistema aeroportuário teria realizado, nesse mesmo período, investimentos na casa de R$ 12 bilhões em nossos aeroportos.

A tabela abaixo apresenta o fluxo de recursos para o Fundo Aeronáutico e os dispêndios realizados pelo Comando da Aeronáutica.

Recursos do Fundo Aeronáutico e aplicações em despesas do Comando da Aeronáutica

20102009200820072006
Fundo Aeronáutico
Receita do Fundo Aeronáutico2.017,301.805,881.734,471.437,151.336,54
– Receita de Serviços (a)1.333,601.200,411.246,12973,99858,91
– Receita Patrimonial (b)323,64318,38189,54222,29259,47
– Outras (c)360,06287,09298,81240,87218,16
Despesas do Fundo Aeronáutico0,000,000,000,000,00
Comando da Aeronáutica
Despesa do Comando da Aeronáutica (d)621,48990,54787,62670,96700,41
– Adestramento e Operações Militares da Aeronáutica0,000,003,414,373,55
– Proteção ao Voo e Segurança do Tráfego Aéreo0,000,00560,85471,04522,17
– Desenvolvimento da Infraestrutura Aeroportuária114,31320,14196,68176,54146,87
– Apoio Administrativo37,2134,7226,6819,0127,61
– Serviço de Saúde das Forças Armadas0,000,000,000,000,21
– Segurança de Voo e Controle do Espaço Aéreo469,84631,210,000,000,00
– Preparo e Emprego da Força Aérea0,124,470,000,000,00

Notas: Em R$ milhão. (a) Inclui as seguintes naturezas de receita: 1600.31.00 (tarifa e adicional sobre tarifa aeroportuária), 160031.01 (tarifa aeroportuária), 1600.31.02 (adicional sobre tarifa aeroportuária), 1600.31.03 (parcela da tarifa de embarque internacional), 1600.33.01 (tarifas de uso das comunicações e dos auxílios e navegação aérea em rota), 1600.33.02 (adicional sobre tarifas de uso das comunicações e dos auxílios à navegação aérea em rota). (b) Remuneração das disponibilidades aplicadas no “caixa” do fundo aeronáutico. (c) Inclui, entre outros, arrendamentos, taxas de ocupação de imóveis, convênios, etc. (d) Despesa realizada com recursos das fontes de recursos advindas da Infraero pelo Comando da Aeronáutica em nome do Fundo Aeronáutico. Fonte: balanços-gerais da União (BGU).

Pelas informações apresentadas, há um considerável volume de recursos arrecadados e um valor substantivamente menor de despesas realizadas. O constante e expressivo superávit somado aos recursos depositados no caixa e arrecadados em exercícios anteriores, conforme apresentado na próxima tabela, sugere que o sistema aéreo brasileiro, por meio da cobrança de tarifas, gera recursos suficientes para praticamente triplicar o montante de investimentos em sua infraestrutura aeroportuária.

Recursos do sistema aéreo e aplicações em despesas do Tesouro Nacional

20102009200820072006
Caixa do Fundo Aeronáutico3.043,422.693,242.271,562.091,081.878,69
– Depositados na Conta Única209,06570,47143,79238,9824,89
– Aplicados (basicamente em LTN)2.834,362.122,772.127,771.852,101.853,80

Notas: Em R$ milhão. Fonte: balanços-gerais da União (BGU).

Conclui-se, portanto, que a estrutura tarifária já garante recursos vultosos ao setor aeroportuário. Contudo, o atual sistema de partilha gera incentivos perversos: a Infraero é estimulada a maximizar receitas financeiras, em vez de se concentrar na gestão dos aeroportos; e o Tesouro é estimulado a reter recursos que deveriam financiar os investimentos aeroportuários.

Qualquer mudança no setor, seja ela no sentido de privatizar a Infraero, abrir seu capital ou fazer concessão dos aeroportos precisará corrigir esse sistema de partilha de recursos. O Tesouro precisa estar consciente de que perderá recursos hoje destinados à geração de superávit primário. Esse será o preço para buscar um sistema aeroportuário mais eficiente.

“O artigo expressa opiniões pessoais dos seus autores. Nenhuma responsabilidade é assumida pelos autores em razão das consequências da utilização das suas opiniões e/ou de qualquer informação contida neste artigo, que de forma alguma devem ser vistas como sendo as visões, posições ou opiniões institucionais do Tribunal de Contas da União.”


[1] Método de análise financeira que decompõe o retorno sobre o patrimônio líquido (RSPL) em: retorno sobre o ativo operacional líquido (RSOL) + spread (diferença entre o RSOL e a rentabilidade do ativo financeiro) x alavancagem financeira (grau de endividamento da empresa).