Quando se discutem os problemas macroeconômicos do Brasil, frequentemente surge o diagnóstico de que a causa de nossos males é a alta taxa de juros. Basicamente, há quatro canais pelos quais os juros altos prejudicariam a economia:
i) os juros altos desestimulam o investimento, o que, por sua vez, reduz a aumento da capacidade produtiva. Ao final do processo, a economia não cresce e cria-se um círculo vicioso: a baixa oferta provoca mais inflação, que faz os juros subirem mais, que inibe novos investimentos, o que, ao final, leva a taxas de investimento mais baixas;
ii) os juros altos também desestimulam o consumo, porque tornam o consumo presente (em contraposição ao consumo futuro) muito caro. O indivíduo passa a considerar mais seriamente a hipótese de consumir menos hoje e utilizar os recursos poupados (acrescidos dos juros) para consumir mais no futuro. Sem ter consumidores, os empresários decidem reduzir sua produção, e diminuem as contratações. Mais gente sem emprego significa menos consumo, e o círculo vicioso se perpetuaria;
iii) em situações favoráveis no mercado internacional, os juros altos apreciam a taxa de câmbio porque tornam aplicações em títulos brasileiros mais atraentes. A taxa de câmbio apreciada reduziria a competitividade da indústria nacional, prejudicando nossas exportações e emprego;
iv) os juros altos aumentam o custo da dívida. O governo tem então de desviar cada vez mais recursos do orçamento para pagar a dívida, deixando de realizar gastos considerados mais produtivos, seja investindo em infraestrutura, educação ou em programas sociais.
Pretendo argumentar neste artigo que a taxa de juros não é causa, mas conseqüência de outros desequilíbrios de nossa economia. Para tanto, explicarei como funciona o regime de metas para a inflação. Por falta de espaço, não discutirei a importância de se manter a inflação baixa e estável. Mas, para citar somente um dos problemas com inflação alta, basta lembrar que, quanto mais alta e volátil a inflação, mais difícil se torna fazer previsões sobre inflações futuras. Assim, quanto mais alta a inflação, maior o desestímulo para contratos de longo prazo, com sérios prejuízos para o desenvolvimento econômico.
Explicaremos então por que o regime de metas para a inflação pode contribuir para que a inflação seja mantida em níveis baixos e estáveis. Aproveitaremos a oportunidade para responder a segunda pergunta do título: o Copom (Comitê de Política Monetária, órgão colegiado do Banco Central que decide a taxa de juros) pode ser substituído por um computador? A resposta para essa pergunta é um claro não.
Sinteticamente, um regime de metas para a inflação é um regime em que o banco central utiliza os instrumentos de que dispõe para fazer com que a inflação atinja uma meta pré-estabelecida.
Uma característica fundamental do regime de metas é que a inflação é o único objetivo da política monetária. Ao descartar outros objetivos, como câmbio ou taxa de crescimento do PIB, o regime de metas ajuda a ancorar as expectativas dos agentes, aumentando a previsibilidade da inflação. Não é que câmbio e PIB não interessem para o banco central. Indiretamente, como essas variáveis afetam a inflação, elas influenciam as decisões sobre política monetária.
Há várias críticas no sentido de que o banco central não se importa com o crescimento do PIB. Em primeiro lugar, já vimos que isso é incorreto porque o nível de atividade influencia a inflação. Em segundo lugar, conforme será discutido mais adiante, há situações em que o banco central deve optar por deixar a inflação subir, para não prejudicar o crescimento econômico. Mas, por que o banco central não deve ter o PIB como meta? Trata-se da escolha do instrumento correto para cada tipo de problema. O crescimento do produto é uma variável real, que depende de fatores estruturais da economia, como disponibilidade de capital (físico e humano), de recursos naturais, produtividade, garantia do direito de propriedade e ambiente institucional. A política monetária consegue influenciar o PIB, se muito, no curto e médio prazo. No longo prazo, a política monetária influencia somente o nível de preços. É mais eficiente, portanto, que a política monetária cuide somente dos preços, utilizando os instrumentos de forma a conduzir a expectativa dos agentes econômicos em direção à meta, e deixar que outros instrumentos sejam utilizados para garantir a estabilidade do produto.
No Brasil, a meta é estabelecida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) e, atualmente, está fixada em 4,5% para o IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo, divulgado pelo IGBE), com intervalo de tolerância de 2 pontos percentuais. A meta é estabelecida para o ano calendário. Assim, o Banco Central do Brasil (Bacen) terá cumprido a meta se a inflação acumulada no ano até dezembro ficar entre 2,5% e 6,5%. Se não tiver cumprido, terá de redigir uma carta aberta ao Ministro da Fazenda explicando por que não cumpriu, o que fará para que a inflação retorne à meta e em quanto tempo espera que esse retorno se verifique. Observe que, se ao longo do ano, a inflação acumulada nos doze meses anteriores superar 6,5%, não há problemas: a meta só é aferida em dezembro.
O Bacen dispõe de alguns instrumentos para conter a inflação. O principal deles é o controle da taxa de juros básica da economia, chamada de taxa Selic. A meta para a taxa Selic é decidida nas reuniões do Comitê de Política Monetária (Copom), que se reúne oito vezes por ano. O Comitê é formado pela diretoria do Banco Central, e a decisão sobre a Selic é tomada pela maioria dos membros, não havendo (e, frequentemente, não ocorrendo) necessidade de unanimidade. Um aumento da taxa de juros ajuda a combater a inflação por meio de dois canais principais: demanda agregada e câmbio.
Um aumento da taxa de juros desestimula o investimento e o consumo, conforme explicado nos primeiros parágrafos deste texto. Diante de uma menor demanda, os preços tendem a cair, o que reduz a inflação. Há também o canal do câmbio, descrito no início do texto: um aumento da taxa de juros estimula a entrada de capital externo no país. Isso aumenta a oferta de divisas, o que faz com que seu preço caia. Visto de outra forma, a queda do preço das divisas corresponde a uma apreciação do real. Isso torna os produtos importados mais baratos, e limita a capacidade de reajuste de preços em reais dos produtos exportáveis. Assim, pelo canal de câmbio, um aumento da taxa de juros também tem o impacto de reduzir a inflação.
Destaca-se que há várias outras taxas de juros na economia: as taxas variam conforme o prazo do empréstimo, conforme o tomador (pessoa física ou jurídica, governo ou setor privado), conforme a modalidade do crédito (cartão de crédito, cheque especial, crédito para aquisição de veículos, financiamento imobiliário, hot money, etc). Ainda assim, as demais taxas tendem a acompanhar a Selic, de forma que, quando a Selic varia, as demais taxas tendem a variar na mesma direção. Dessa forma, ao ter o poder de fixar a Selic, o Bacen consegue influenciar (o que é diferente de determinar) as demais taxas de juros da economia.
Há outros instrumentos à disposição do Banco Central, como alíquota de depósitos compulsórios, requerimento de capital ou a taxa de assistência financeira de liquidez. Mas, para o argumento que se segue, é indiferente discutir qual o instrumento utilizado, de forma que podemos simplificar a exposição nos referindo somente à taxa Selic, ou taxa de juros.
A regra geral para a atuação do banco central em um regime de metas seria aumentar os juros (ou usar outros instrumentos com o objetivo de reduzir a inflação) quando projetar uma inflação acima da meta, e reduzir os juros (ou usar devidamente os demais instrumentos) quando a inflação projetada for inferior à meta.
Mas as decisões do Copom são bem mais complexas do que o descrito acima. Em primeiro lugar, não existe a projeção de inflação. Haverá tantas projeções quantos modelos existentes. Haverá modelos projetando inflação acima da meta, outros abaixo da meta. Haverá ainda modelos projetando inflação acima da meta para o ano corrente, e abaixo da meta para o ano seguinte.
Em segundo lugar, há também incertezas sobre como a inflação reagirá a variações nos juros. Não somente as estimativas oferecem diferentes respostas, como essa reação dependerá de circunstâncias específicas do momento em que a decisão for tomada. Por exemplo, o anúncio de um aumento da taxa de juros terá um impacto mais forte sobre a inflação se a diretoria do banco central gozar de maior credibilidade junto à sociedade.
Em terceiro lugar, a melhor resposta do banco central depende dos choques que atingem a economia: se o choque é de demanda ou de custos.
Choques de demanda são choques associados a aumentos inesperados de componentes da demanda agregada, como consumo, investimento, gastos do governo ou exportações. Por exemplo, um aumento de gastos do governo; um estado de maior euforia da população, que estimula o consumo (digamos, em decorrência de ganhar a Copa do Mundo); ou um aumento da demanda externa por nossas exportações.
Já choques de custos estão normalmente associados a fatores que aumentam os custos de produção, ou a variações na oferta. É o caso de quebras de safra, de uma mudança no estado de confiança dos mercados internacionais (que afetam diretamente a taxa de câmbio), de aumentos salariais acima da produtividade do trabalho (por exemplo, em decorrência da fixação de um novo salário mínimo) ou de tragédias naturais.
A reação dos juros também depende da duração esperada do choque. O problema é que só sabemos a duração do choque quando ele termina. Quando o Copom se reúne, tem de definir a taxa Selic sem saber qual será a duração desse choque (por exemplo, quanto tempo durará a crise financeira internacional).
De acordo com a teoria econômica, o banco central deve tentar neutralizar integralmente o impacto inflacionário de choques de demanda. Intuitivamente, choques de demanda tendem a aumentar a inflação e deixar a economia superaquecida (produzindo acima daquilo que é capaz de produzir em condições normais). Um aumento da taxa de juros teria o efeito simultâneo de pressionar a inflação para baixo e permitir que a economia volte a operar em um ritmo normal.
Já choques de custos tendem a pressionar a inflação e a levar a economia para uma situação de desemprego porque desestimulam a produção. Se o banco central tentar neutralizar totalmente o impacto inflacionário de um choque de oferta, aumentando os juros, poderá ser bem sucedido em fazer a inflação voltar para a meta, mas agravará o problema do desemprego. Por esse motivo, a teoria recomenda que o banco central acomode parcialmente um choque de oferta, deixando a inflação subir um pouco, para preservar o produto no curto prazo.
Observe que isso não é contraditório com o fato de o banco central ter como único objetivo controlar a inflação. Está-se apenas sacrificando um pouco da inflação para evitar uma queda forte do produto no curto prazo, o que é diferente de dizer que a política monetária está orientada para garantir que o crescimento do PIB atinja determinado nível. Por outro lado, se o custo a ser pago pela manutenção do crescimento do PIB for uma forte aceleração da inflação, o banco central poderá optará por elevar os juros e manter a inflação na meta.
Novamente, a teoria é bem mais fácil que a prática. Muitas vezes, o mesmo fenômeno traz impactos semelhantes a choques de demanda e de oferta, simultaneamente, e em sentidos opostos. Por exemplo, no início da crise financeira internacional, no segundo semestre de 2008, o aumento da aversão ao risco fez com que houvesse uma tendência de desvalorização do real. Isso corresponderia a um choque de custos. Mas, ao mesmo tempo, a crise financeira empurrou o mundo para uma recessão, o que provocou queda no preço das commodities e na demanda por nossas exportações. Isso corresponde a um choque negativo de demanda. Coube ao Banco Central avaliar qual desses impactos seria o mais relevante para a nossa trajetória de inflação.
Outro exemplo de evento com conseqüências em direções opostas é o terremoto acompanhado de tsunami que atingiu o Japão em março. Por um lado, há um claro choque de oferta: perda de capital físico, problemas para geração de energia, e os estragos em geral diminuíram a capacidade produtiva da economia e, portanto, tem um impacto inflacionário em todos os países que têm vínculos econômicos relevantes com o Japão. Mas a tragédia natural trouxe também uma forte deterioração nas expectativas dos agentes acerca do ritmo da atividade econômica, o que pode ser interpretado como um choque de demanda negativo, com impacto deflacionário.
Todas as incertezas colocadas acima mostram o quão difícil e subjetivo deve ser a decisão a respeito da taxa de juros. Ao contrário do que muitos supõem, a decisão sobre taxa de juros pode ser tudo, menos mecanicista. Modelos econômicos podem ajudar a orientar o Copom, mas a decisão é, antes de tudo, subjetiva: a opção entre diferentes modelos de previsão; a interpretação da natureza do choque; e o quanto o Banco Central está disposto a tolerar de inflação para reduzir o sacrifício em termos de produto; tudo isso depende da interpretação e das preferências de cada membro do Comitê.
Tendo respondido a segunda pergunta (o Copom pode ser substituído por um computador), retornemos à primeira pergunta: os juros são a causa de nossos problemas?
Ora, se os juros constituem uma ferramenta para conter as pressões inflacionárias, as causas de nossos problemas não podem ser os juros. O problema está nos fatores que causam as pressões inflacionárias. Nos últimos anos vimos que, dificilmente, conseguimos sustentar taxas anualizadas de crescimento de 4,5% a.a. por vários semestres seguidos, sem pressionar a inflação. O Banco Central é então obrigado a reagir, aumentando a taxa de juros. Mas, e se o Bacen não reagisse? A economia continuaria crescendo indefinidamente a 5% a.a.? A resposta é não!
A inflação é resultado de um excesso de demanda em relação à oferta (seja porque a demanda aumentou ou porque a oferta diminuiu). Quando o Banco Central aumenta os juros, o desequilíbrio entre demanda e oferta é solucionado, principalmente, via redução da demanda (embora não se possa ignorar que a apreciação cambial permite um aumento da oferta de bens, via importações).
Se o Banco Central não reagir, o equilíbrio, a solução de mercado é um aumento da inflação, pois o aumento de preços reduz a renda real e desestimula a demanda (também é possível um impacto favorável sobre a oferta, pois aumentos de preços estimulam as empresas a produzir e vender mais, mas esse impacto tende a se reduzir à medida que a inflação se torna mais alta e menos previsível).
É possível também uma solução extra-mercado, por exemplo, um racionamento. O racionamento faz justamente o papel do aumento de preços para conter a demanda, porém, de forma mais ineficiente e insustentável no longo prazo. Ou seja, em todas as opções, a economia retornará para um novo equilíbrio, com demanda (e, consequentemente, renda) menor. A diferença é que, com o Banco Central atuando de forma correta, esse equilíbrio é atingido com inflação mais baixa.
E por que não aumentar a oferta? Em primeiro lugar, isso é muito difícil no curto prazo (a não ser via aumento de importações). No médio e longo prazos, é possível, aumentando a produtividade da economia e os investimentos. Mas, para tanto, são necessárias diversas reformas, frequentemente divulgadas na imprensa: redução do tamanho do Estado na economia; maior eficiência dos gastos públicos, com aumento da proporção de investimentos em relação aos gastos correntes; maior investimento (público e privado) em educação e qualificação de mão-de-obra; melhoria do ambiente institucional, com maior garantia para cumprimento de contratos; e aumento da poupança pública e privada, necessário para financiar o aumento de investimentos[1]. Para tanto, devem-se aprovar reformas que reduzam os gastos públicos e o consumo privado. Desvinculação do uso de receitas governamentais, redução de gastos obrigatórios, uma política mais realista para o salário mínimo e uma reforma da previdência que migrasse para o regime de capitalização individual poderiam contribuir para o aumento da poupança doméstica.
Em suma, a taxa de juros Selic é um instrumento para conter a inflação no curto prazo. Garantir as condições para crescimento mais acelerado e inflação mais baixa no longo prazo depende de políticas e instrumentos que estão fora do controle do Banco Central, e que devem ser da responsabilidade de todo o governo, em especial dos Ministérios da Fazenda e do Planejamento.
Leituras sugeridas
CLARIDA, Richard, Jordi Gali e Mark Getler: “The Science of Monetary Policy: A New Keynesian Perspective.” Journal of Economic Literature. Vol. XXXVII (December, 1999), p. 1661-1707.
FUNDO MONETÁRIO INTERNACIONAL. “Does Inflation Targeting Works in Emerging Markets?” in World Economic Outlook September 2005. IMF Graphics Section. Washington, DC, Estados Unidos, 2005. Texto disponível em: http://www.imf.org/external/pubs/ft/weo/2005/02/pdf/chapter4.pdf
[1] Há uma identidade básica em economia que diz que poupança é igual a investimento. Em situações normais, se a poupança doméstica é menor do que o investimento, a diferença pode ser suprida via poupança externa, que corresponde ao déficit em transações correntes. O Brasil tem hoje uma poupança doméstica de 16% do PIB. Se quisermos atingir níveis de investimento da ordem de 25% do PIB, será necessária poupança externa, ou déficit em transações correntes, de 9% do PIB. Trata-se de um fluxo extremamente alto e improvável – usualmente, déficits em transações correntes permanentemente acima de 5% já levam um país à crise cambial –, o que aponta para a necessidade de aumento de nossa poupança doméstica.